“Imagine uma TV falando uma língua e os alunos não entenderem o que o professor está falando nessa TV”, diz Alessandra Korap Munduruku, liderança indígena do Pará. “Aula online não serve para nós!”, afirma sobre a educação indígena. Há 14 dias, Alessandra e mais de 500 pessoas, entre professores, lideranças e famílias indígenas e ribeirinhas, protestam contra uma nova lei do estado.
Eles dizem que a lei pode reduzir o número de aulas presenciais nas aldeias, e fazer os alunos terem aulas gravadas e transmitidas pela televisão. “Tem escolas que nem têm isso. Os alunos estudam, muitas vezes, em uma casa de palha caindo aos pedaços”, afirma Alessandra, nas redes sociais do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA).
Segundo os manifestantes, os professores que vão dar aulas nas comunidades precisam conhecer os alunos e seus modos de vida, participando minimamente da rotina nas aldeias. “Isso os deixam aptos a ensinar e a aprender. Mas não pode ser feito à distância, de forma virtual com a intermediação de uma máquina”, ressalta o antropólogo Uwira Xakriabá (William Domingues), coordenador do Curso de Etnodesenvolvimento do Campus Altamira, da Universidade Federal do Pará.
“A educação indígena escolar, como lugar de fronteira de mundos, precisa estar baseada no chão da aldeia.”
Educação indígena é amparada por lei federal
A Constituição Federal prevê que a educação indígena priorize o direito à preservação da língua e da cultura tradicional. Porém, a lei estadual 10.820/2024, sancionada no final de dezembro do ano passado, no Pará, tem lacunas sobre a garantia de uma educação indígena territorializada.
Isso porque, o texto prevê novas regras para o magistério público estadual. Dentre as principais estão, por exemplo, os planos de cargos e carreiras, as jornadas de trabalho e demais remunerações. No entanto, não cita o Sistema de Ensino Modular (SOME) e o Sistema de Ensino Modular Indígena (SOMEI), principal ponto questionado pelas lideranças. Por isso, as comunidades se sentem inseguras quanto à continuidade de um ensino presencial e dentro de seus territórios.
Ensino à Distância para povos originários não é garantido pelo MEC
“Nós queremos um direito que é nosso, de cada povo que está aqui, que quer as suas escolas e os seus professores. Que quer as políticas públicas chegando como devem”, explica o pedagogo Poró Borari, coordenador do Sistema Modular de Ensino Indígena (Somei), da Terra Indígena Maró, em Santarém (PA). Ele conta que além de não citar a continuidade do SOMEI, a nova lei aponta a liberação de “aulas mediadas por tecnologia” para estudantes que vivem em regiões remotas. Ou seja, o texto abre brechas para reduzir as aulas presenciais em comunidades indígenas.
“Quando falamos em educação indígena, falamos de valorizar os conhecimentos tradicionais. Porque eles protegem a biodiversidade e garantem o futuro de nossas comunidades”, disse Borari, em entrevista a Um Só Planeta.
Na sede da Seduc-PA, em Belém, representantes de diversas etnias como os Arapiuns, Boraris, Tembés, Mundurukus, Xikrim e Tupinambás aguardam uma reunião com o governador Helder Barbalho, anfitrião da COP-30. Eles pedem a revogação da lei e a exoneração do secretário de educação, o gaúcho Rossieli Soares, ex-secretário de educação de São Paulo. Nesta segunda-feira (27), a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, chegou ao local para conversar com os manifestantes.
Até o momento, Helder Barbalho não foi à ocupação da Seduc para conversar com as lideranças que estão no local. Na semana passada, ele se reuniu com representantes políticos e indígenas para divulgar um Grupo de Trabalho que vai elaborar a nova lei para a educação escolar indígena do estado. Porém, os manifestantes da sede da Seduc afirmam que não foram chamados para esta reunião, e que os participantes não os representam.
Sobre a educação à distância para os povos originários, o Ministério da Educação (MEC) divulgou uma Nota Técnica. O texto afirma que “aulas telepresenciais ou sistemas interativos de oferta educacional não encontram sustentação nos marcos legais da educação”. O MEC diz ainda que esses modelos não contemplam a garantia da “diversidade e inclusão das comunidades rurais”. Isso inclui a educação do campo, indígena e quilombola, de comunidades tradicionais e ribeirinhas.
Por que a educação indígena precisa ser presencial?
Não ter professores nas aldeias e demais comunidades tradicionais implica em transformações sociais dentro e fora dos territórios. O antropólogo Uwira Xakriabá, diz que os impactos seriam “amplos e variados, de acordo com cada etnia”. Mas ele cita, entre os principais, a falta de contato com a língua materna e a saída dos estudantes indígenas de suas comunidades para ter aulas na cidade, ficando expostos a várias formas de violência.
“A agressão mais imediata seria em relação à possibilidade da manutenção de nossas línguas maternas no ambiente escolar. Porque sem estar no território, os professores não teriam condições de aprender o básico necessário para conduzir o processo ensino-aprendizagem”, diz.
Além disso, o antropólogo ressalta a precarização da educação, abandono escolar e os riscos para a preservação da identidade e cultura originária. “Falar de educação remota na Amazônia real, onde não tem energia elétrica, saneamento ambiental e acesso a serviços básicos do Estado é, no mínimo, de mau tom”, afirma. Segundo ele, “esse projeto é danoso para a manutenção da diversidade cultural e dos modos de vida de todos os povos da floresta”.
Xakriabá explica que a educação indígena não se limita ao estudo formal, em sala de aula, pois as crianças também se educam com a comunidade. “Por vezes, nas escolas das aldeias, a aula é no rio, na mata, na roça ou mesmo em nossas mobilizações, porque, para nós, a educação não é um processo descolado do resto de nossas vidas”, conta. “Ensinamos e aprendemos todos juntos, de modo que a comunidade escolar é a comunidade como um todo e os professores são absorvidos nesse processo.”
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Observando, portanto, os possíveis impactos nos saberes tradicionais, o antropólogo confirma que a nova lei estadual deveria ser questionada por toda a sociedade e não somente pelos povos indígenas. “Isso porque nós também somos parte da sociedade brasileira. Não somos os sujeitos do passado que ajudaram a formar o povo brasileiro e desapareceram. Nós resistimos e existimos hoje ainda.”
“O que está em jogo diz respeito a toda a sociedade que partilha a vida na mãe terra.”
O que diz o outro lado?
A Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc) informou ao Lunetas, em nota, que não encerrará o atendimento do Sistema Modular nem substituirá por aulas remotas. Além disso, disse que a continuidade do programa está garantida, conforme artigo 46 e anexo V, da Lei 10.820/2024.
Segundo a secretaria, o Governo do Pará está em diálogo com as lideranças indígenas e que esse processo resultou em um Decreto Estadual, que criou um Grupo de Trabalho para a elaboração de uma legislação específica para a educação escolar indígena. No site da Seduc-PA, o secretário Rossieli Soares afirmou que o SOME não irá terminar e que “grupos políticos querem se aproveitar da situação”.
Como funciona o Sistema de Ensino Modular
Presentes há mais de 40 anos no estado, o SOME e o SOMEI garantem aulas presenciais a estudantes que vivem em comunidades mais afastadas de centros urbanos e de difícil acesso. Os professores viajam até essas localidades para dar aulas em esquemas modulares, em espaços cedidos pelas prefeituras ou dentro das comunidades por um determinado período de tempo. De acordo com a Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc-PA), atualmente há 13.729 estudantes matriculados no SOME e 178 no SOMEI.