Arquivo pessoal

Alice, 7, e Isabella, 9 anos, cuidam das mudas de plantas medicinais na comunidade Xucuru, no interior de Pernambuco. O viveiro serve como uma espécie de farmácia natural que os indígenas utilizam no dia a dia.

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Na comunidade, as crianças participam da produção e do plantio das mudas como uma maneira de conhecerem cada espécie medicinal.

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As crianças Xucuru e as plantas que curam

Imagem mostra duas crianças Xucuru de Ororubá: duas meninas negras de cabelos cacheados segurando mudas de plantas.

Para os povos Xucuru, a terra é mãe. O próprio nome da etnia significa “cuidado do homem com a natureza”. Então, por gerações, eles ensinam crianças como as irmãs Isabella, 9, e Alice, 7, a cultivar uma relação íntima e respeitosa com o meio ambiente. Assim, as meninas conhecem desde cedo as propriedades medicinais das plantas, ervas e sementes, e quando usar cada uma.

“Alecrim, capim santo, boldo, pitanga, goiaba, manga”, lista Alice. “Um dia, meu irmão me deixou muito irritada. Então, eu peguei folhinhas de goiaba, manga e laranja. Enchi um balde com água e fiquei esfregando as folhas com a mão até mudar a cor da água. Aí tomei um banho para acalmar”, explica.

Já Isabella conta que, na comunidade, não se usa remédio de farmácia a qualquer hora. Uma dor de cabeça simples, por exemplo, é tratada com chá de tapete de oxalá, uma plantinha de onde brotam pequenas flores roxas, mais conhecida como boldo de jardim.

As crianças também participam de patrulhas que mapeiam plantas e ervas tradicionais em risco de extinção para realizar o replantio. Uma das plantas que estava quase extinta na aldeia, era o mulungu de jardim, popularmente chamado de mulungu roxo. Isabella conseguiu, com a ajuda de outros moradores, produzir mudas da espécie na tentativa de salvá-la. “Eu conheci o mulungu na hora de ir plantar. Ele serve para fazer dormir, é antidepressivo.”

O território Xucuru de Ororubá fica na cidade de Pesqueira, região agreste de Pernambuco, a 216 km de Recife. São 24 aldeias, uma delas chamada Couro Dantas, ladeada por uma serra coberta com uma vasta biodiversidade.

Educação ambiental mantém o conhecimento entre as crianças

O plantio é uma das formas que as crianças Xukuru têm de conhecer as propriedades medicinais dessas plantas. Na aldeia, há um viveiro com 50 mil mudas que servem para a produção de medicamentos e para conservar espécies ameaçadas de extinção.

As crianças também aprendem na Escola Indígena Clarimen sobre educação ambiental e o uso das plantas locais. “A professora levou a gente para a horta e explicou que temos que respeitar a natureza, não jogar lixo para não poluir, e plantar”, detalha Alice. “Temos que cuidar pois a natureza é a nossa mãe.”

Além disso, o Coletivo Jupago Kreká, que retoma a agricultura de maneira ancestral e não predatória, proporciona mais espaços de aprendizado sobre as plantas medicinais. A pedagoga e estudante de Ciências da Natureza, Rayanne Feitosa, explica que o coletivo usa metodologia lúdica.

Um dos recursos é o jogo de cartas feito a partir de um catálogo que mapeou todas as espécies medicinais da terra indígena. “O jogo ‘Quem sou eu’ traz em um dos lados de cada carta apenas a foto da planta. No verso, há o nome e qual o seu poder medicinal”, conta Rayanne. “Pedimos às crianças para adivinhar qual é a espécie e explicamos os detalhes.”

A partir desses conhecimentos, as crianças Xucuru entendem “a importância da mata em pé e da mata verde”, observa a educadora. Por essa razão, elas são ensinadas sobre como coletar folhas, galhos e flores do pé sem danificar a planta. Entendem, por exemplo, que não podem cozinhar as plantas, para que não percam o poder medicinal.

“Não é chegar lá, tirar o galho inteiro, quebrar e trazer. Podamos só a parte que precisamos e trazemos para o laboratório, para a sala de medicina. Então, a outra, nós deixamos lá para o solo”, explica Rayanne.

O cuidado com a terra movimenta o cotidiano das famílias

A cultura das plantas medicinais é milenar entre os povos originários, e, em Pernambuco, isso é um elo que conecta as crianças às suas raízes. Portanto, manter a sabedoria Xucuru viva depende de deixar a terra produtiva.

Depois de terem seus direitos de viver no território negados durante séculos, os Xucuru entendem que preservar a terra se tornou a herança mais valiosa para as novas gerações. Por isso, eles consideram que, além da mãe biológica, que gesta os parentes, existe a mãe natureza, que oferece o sustento de vida.

“A gente tem que amar as duas mães”, diz Alice. “A nossa mãe Bella e a natureza”, complementa Isabella, fazendo referência à mãe biológica Angela Neves Pereira, conhecida como Bella Xucuru, uma das guardiãs de plantas e conhecimentos.

Bella recorda que a relação da família com o poder medicinal das plantas iniciou antes das filhas começarem a falar. Quando Isabella, ainda bebê, ficou doente, “fizemos muitas viagens ao hospital, mas não tinha jeito”. Ela tinha cansaço, febre alta, tosse, falta de apetite e desnutrição. “Demos mastruz batido e coado com leite e ela foi curada”, conta.

A líder indígena explica que, com o passar do tempo, o conhecimento sobre como trabalhar com as plantas vai crescendo junto com as curumins e isso fortalece a comunhão com a natureza. Essa troca acontece com os mais velhos, que sempre falam de algumas plantas que curam, mas a mata também tem sua participação.

“Tem coisas que são passadas pelos mais velhos, mas tem coisas que a gente deixa a mata conduzir, porque a mata ensina, cuida, cura.”

Saberes que vão além da floresta

Atualmente, essa tradição de cura do povo Xucuru rompeu as serras e chegou aos não indígenas. A produção de medicamentos naturais com as plantas do território são comercializados pelo Coletivo Jupago.

A iniciativa, além de gerar renda para as famílias Xucuru, aproxima as pessoas da cidade à cura que vem da mata. Há emulsões cicatrizantes, borrifadores para atrair bons fluídos para o ambiente, pomadas, óleos e loções que misturam sementes, ervas e plantas.

Esse legado chega na vida das crianças como ensinamentos de mãe, conforme aprendem Isabella e Alice. Elas honram os saberes de seus ancestrais, que olharam para os descendentes do seu povo e cultivaram o conhecimento em forma de semente.

Com a colonização, em 1654, os povos Xucuru perderam o direito às terras que foram doadas aos senhores de engenho pelo Rei de Portugal. Foram 350 anos de apagamento cultural e disputa pela terra. Com o acirramento dos conflitos, em 1998, o Cacique Xicão, líder do território, foi assassinado. O Pajé Zequinha Xucuru assumiu então a liderança do povo. Em 2005, eles conseguiram a homologação da Terra Indígena Xukuru de Ororubá.

Fonte: Pesquisa “História, memórias e identidade entre os Xukuru do Ororubá”, do historiador Edson Silva, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

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