As crianças são mestres em confiar. Precisamos aprender com elas

Em tempos de adultos errantes em construir um mundo seguro, é hora de transformar as crianças em nossos Mestres

Alexandre Coimbra Amaral Publicado em 03.07.2018

Resumo

Alexandre Coimbra Amaral propõe que façamos como as crianças e voltemos a confiar: "É só olhar, depois sorrir, depois mostrar que se pode confiar". Confira o texto!

Estavam ali meu pai e meu filho, unidos por um manto sincero de ternura. Não havia nenhuma palavra para atrapalhar o toque silencioso a que eles se propuseram, nestes acordos tácitos que o amor sabe tecer. Eu estava de costas para eles, e por isso mesmo quis retratar o laço sem a pose, sem o sorriso que se fabrica ao sentir que há uma objetiva pela frente. Há verdades que se mostram, ainda sem saber que estão sendo notadas, quando os olhos não vêem. Meu pai e meu filho, sem saber, remeteram-me a uma ausência que tem marcado em negrito inclusive as almas que só se olham de costas.

Podemos considerar que estamos doentes mesmo, quando algo que nos é fundação começa a ficar escasso por nossa própria ação destrutiva. Os vínculos nos constituem, deixam um cheiro de quem somos, ficando apenas à espera das palavras que venham nomear a força que eles têm para desenhar as margens de nossas identidades. Se eles não estão, se eles estão longe, se eles estão empobrecidos por nossas dificuldades de contato genuíno, transformamo-nos em seres vulneráveis ao embrutecimento, à amargura, à tristeza, à perda da empatia, à raiva, às invejas e cobiças.

Quem tem mais vínculos pra chamar de seus está mais protegido de sombrear sua própria ação no mundo.

Não existimos sem vínculos, e particularmente sem vínculos de confiança.

Existir sem confiar é entrar no rio limpo, e ainda assim sentir a água desertificar o coração.

Façamos um trato coletivo, uma amarração de nós que digam do melhor de nós. Precisamos recuperar a coragem de confiar, trazer o coração como umidificador dos nossos olhos. A desconfiança nos resseca, e ao mirarmos nossa secura no espelho, podemos acreditar que somos aquilo que se materializa como imagem. Não somos. O ressecamento que a desconfiança provoca é um arremedo do nosso vir-a-ser. Nossa potência humana se desconhece na desconfiança. Ela se esconde, à espreita de um futuro menos degradante para o amor esperançoso.

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Arquivo pessoal

Meu pai e meu filho são apenas dois entre sete bilhões de abraços que podem ser dados entre nós.

Está em nossos olhos a capacidade de confiar. Não é um atributo que começa no outro, e sim na nossa disposição de viver algo diferente. Um sorriso que quer confiar é o milagre que pode aparecer por uma suprema decisão da esperança. Ele faz o desconfiado à sua frente ter dúvidas de poder, quiçá, confiar. Ele faz o deserto do outro receber algumas gotas de antídoto para o cenho franzido.

Meu pai e meu filho são apenas dois entre sete bilhões de abraços que podem ser dados entre nós.

As crianças são estes que chegam ao mundo com a confiança no outro como pressuposto existencial, sem o qual não há vida possível. As crianças, sábias, entendem visceralmente que há em nós a capacidade de fazer da confiança um encontro, e dos encontros parte do sentido em existir. Por isso estou sempre rodeado de crianças: elas são como o totem ao qual retorno, quando sinto que me distanciei de como deveria levar meus dias.

As crianças são nossos Mestres. Nossos Mestres em confiar, em fazer do sorriso a gota que encharca o deserto de um coração sombreado. Por eles, por nós todos, eu proponho que façamos da noite da virada o início de um movimento interno cheio de reentrâncias para os próximos trezentos e sessenta e seis dias. Andamos precisados disso.

Andamos pelas misérias de nossas curtidas virtuais, que mentem tantas vezes sobre nossa capacidade de fazer laços que nos confortem.

É só olhar, depois sorrir, depois mostrar que se pode confiar. Não vale esperar isso do outro, e sim fazer de si o instrumento de transformação do chão em que pisa. Se a gente se encontrar por aí, eu quero lhe dar um abraço e um beijo, um sorriso e uma gargalhada, deixando sempre espaço para as lágrimas que quiserem brotar como surpresa.

Feliz confiança nova. E que ela venha aos montes, deixando sua desconfiança atônita, envergonhada de ter existido como se fosse a sua mais completa tradução.

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