Ao assumir o ensino remoto como única forma de vínculo entre professor e aluno, seguimos aprendendo que segregar é razoável
Mariana Rosa reflete sobre as distâncias que separam as diferentes realidades do ensino remoto adotado pelas escolas durante a pandemia. Entre as crianças mais prejudicadas, estão aquelas com deficiência que, mais uma vez, têm negados seus direitos à participação.
De quantos abismos se faz a palavra distância? Ainda que ela tenha se estabelecido de modo íntimo e habitual em nossas vidas em meio à pandemia, será que sabemos das lonjuras que nela habitam? Quando seis brasileiros têm riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país, que nome damos a essa distância? Quando homens escolhem corpos de mulheres para a violência doméstica, que nome damos a essa distância? Quando a população que ganha até dois salários mínimos é composta por 80% de pessoas negras, que nome damos a essa distância? Quando crianças com deficiência enfrentam mais dificuldades em permanecer na escola que as outras, que nome damos a essa distância?
A distância, aqui, é a medida que protege a vida de poucos, muito poucos.
Ela se interpõe verticalmente: permite que um pequeno grupo olhe de cima para milhares de pessoas e determine a hierarquia entre as vidas que importam e aquelas que são dispensáveis.
Os mais de 60 dias de quarentena escancararam que a distância é aquilo que se sustenta com privilégios e desigualdades. Uma realidade que atravessa as escolas que, de maneira irrefletida ou consciente, têm funcionado como aparato de reprodução das coisas como estão. A adoção das videoaulas como única ou principal estratégia de manutenção do vínculo entre professores e alunos dá conta de uma urgência em restabelecer um modo de operar, de funcionar, de retomar o curso do que havia sido planejado. Não há espaço nem tempo para acolher incertezas, para pensar na diversidade de desafios que se apresentam de maneira tão nova. Não há ponderação que considere que o currículo pensado antes da pandemia talvez responda pouco ou nada à necessidade de compreensão do momento, à necessidade de intervenção consciente pela preservação da vida de cada um e de todos.
Essa educação que segue adiante a qualquer custo, de maneira inflexível, uniforme, padronizada; que faz do conteúdo o foco de uma ação alienada às realidades; que sobrecarrega professores; que assume por ideal de aluno o ideal de sujeito produtivo; essa é a educação de sempre, agora no modo virtual. Ali estão, de novo, as distâncias.
Nesta oferta da escola para o momento ficam segregados todos aqueles e aquelas que não souberem ou não tiverem condições de responder a contento à proposta. É razoável? Quem são essas crianças e jovens que ficam para depois? Entre tantas – das periferias, das comunidades rurais, ribeirinhas, daquelas que vivem em ambientes de violência doméstica, das migrantes ou refugiadas -, estão também as crianças com deficiência. De novo. Aquelas para quem o plano de aula nunca é pensado. Aquelas para quem nem a matrícula na escola é garantida. Aquelas de quem nunca se presume competência. Aquelas cujo direito de estar em uma escola “comum” ainda é questionado. Aquelas cujas mães têm se desdobrado para adaptar materiais. Aquelas de quem se pensa que nada tem a oferecer. Aquelas que são vistas como falhas, doentes, obstáculos. Aquelas cuja presença na escola precisa ser permanentemente negociada. Aquelas que não são vistas, porque há sempre um laudo em primeiro lugar.
Os direitos das crianças com deficiência são tão frágeis que tudo vira pretexto para flexibilizar dignidade.
E assim, replicando esse modelo de escola que deixa crianças para trás, seguimos aprendendo que segregar é razoável. Que tipo de sociedade se ergue nessas bases?
Agora, como antes, a nossa possibilidade de conviver está sob ameaça. Estejamos atentos para o que foi assumido como excepcionalidade pelas escolas não se estabeleça como regra. De novo. Para que não consideremos banal que uns avancem enquanto outros ficam pelo caminho. Para que nossa experiência no mundo não seja empobrecida, reduzida e limitada, porque fizemos razoável a hipótese de abrir mão de gente. Para que nossa possibilidade de aprendizado não seja medida pelas respostas padronizadas que damos aos desafios, mas pela nossa capacidade de nos modificarmos, de nos transformarmos frente às experiências. Ai, as distâncias…
É sempre exaustivo lutar pelo óbvio. A mim, tem sido particularmente cansativo provar, todos os dias, que minha filha é gente.
Mas me ponho a pensar: se a ela, e a tantas outras, são negados direitos, será mesmo que é ela que precisa se provar humana?
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