Agressividade na infância deve ser valorizada, diz psicanalista

Será que emoções historicamente consideradas negativas, como a raiva e o ódio, no fundo não são apenas expressões inevitáveis do ser humano?

Camilla Hoshino Publicado em 17.12.2017
Foto em preto e branco mostra close de um menino chorando com a boca aberta.

Resumo

"A criança que nunca fez uma birra ou nunca mostrou resistência a imposição de um limite, deve nos precocupar mais", diz a psicanalista Teresa Carvalho.

Birras, gritos, chutes, mordidas e outras atitudes comumente relacionadas à agressividade na infância podem deixar pais, mães e cuidadores de cabelo em pé. Mais do que isso, de acordo com a intensidade e ocasião em que se apresentam, podem ser considerados comportamentos negativos a ponto de caracterizarem crianças como “problemáticas” ou “preocupantes”.

Observando esse repertório de maneiras de se expressar na infância, que podem se tornar motivo de queixas e repreensão por parte dos adultos, fomos investigar o que a psicanálise compreende por agressividade, afinal.

Uma parte indissociável do indivíduo

O pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott é um dos principais marcos teóricos utilizados por profissionais no estudo do tema. De acordo com ele, a agressividade representa uma parte constituinte do sujeito. Para o especialista, ela faz parte do rol de recursos básicos acessados pelos indivíduos, desde muito pequenos, para sobreviver e se desenvolver.  

Há uma agressividade necessária para a convivência e conquista do mundo. De certo modo, em algumas situações, ela é sinônimo de ação, portanto, necessária para a vida”, afirma a psicanalista e mestre em Psicologia da Educação pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), Maria Teresa Venceslau de Carvalho. 

Um exemplo disso pode ser percebido ainda na vida intra-uterina, quando o feto “chuta” a barriga mãe. Ou após o nascimento, quando o bebê suga com força o seio materno*. (*Essas e outras referências podem ser encontradas no livro “Psicanálise e Educação – Questões do Cotidiano”, da autora Renate Meyer Sanches, publicado pela editora Escuta, em 2002)

É essencial reconhecer que cada criança possui sua individualidade, e considerar as relações que são estabelecidas no contexto de cada uma. Essa é a opinião da professora doutora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Infância e Educação Infantil (NEPEI), Iza Rodrigues da Luz.

Ela chama atenção para as emoções consideradas negativas como a raiva e o ódio, mas que no fundo não passam de sentimentos humanos como tantos outros. “É preciso evitar o tratamento moralista”, sugere, e ajudar as crianças a compreender que não há nada de errado em sentir raiva, assim como nós mesmos precisamos apender a expressar todos os sentimentos.  

“Há uma agressividade necessária para a convivência e conquista do mundo. De certo modo, em algumas situações, ela é sinônimo de ação, portanto, necessária para a vida”

Comunicação e acolhimento

Mesmo sendo uma alternativa comum de seu uso, não se pode dizer que a agressividade na infância é sinônimo de ataque ou destruição. Ela se apresenta como algo bem mais amplo. Isto é, quando uma criança reage à frustração, por exemplo, por não receber aquilo que deseja ou necessita, vários mecanismoa podem ser acionados por ela para lidar com a situação.

Conforme apresentam os psicanalistas abordados, que entendem o “potencial de agressividade” como algo inerente ao ser humano, as crianças que apresentam esse tipo de comportamento geralmente estão tentando dizer algo e pedindo uma intervenção do ambiente a seu redor.

Porém, pelo fato de “incomodar”, elas são mais percebidas negativamente do que as crianças que se adaptam excessivamente a tudo.

A criança que não brinca e não se movimenta, que nunca fez uma birra ou nunca mostrou resistência à imposição de um limite ou regra, deve nos preocupar mais”, afirma a psicanalista Teresa Carvalho, formadora de professores e gestores de educação infantil na rede pública e particular de ensino.

Não sendo destrutiva ou construtiva em si, a agressividade depende de muitos fatores que influenciam sua manifestação. “A qualidade das relações vividas pela criança é fundamental, assim como a diversidade de experiências expressivas”, diz Carvalho. Por isso, algumas atividades se tornam primordiais na infância.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que nos respondeu por meio de sua assessoria de imprensa, apresenta uma leitura complementar à questão. Para a instituição, nos casos em que o potencial da agressividade se expressa por meio da violência, tanto o agressor quanto a vítima devem ser encaminhados para diagnóstico e tratamento adequado.

“Tratar a psicopatologia é a prevenção mais eficaz contra um desfecho ruim”, assinala. No caso da vítima, que pode se colocar em situação de submissão e silêncio, não é incomum que transtornos como ansiedade e depressão sejam desenvolvidos.

No entanto, a SBP confirma que falar em agressividade na infância, não é a mesma coisa que falar em “crianças violentas”, e aponta algumas formas como se apresenta. “Agressividade pode ser autodirigida, ou seja, a criança se autoagride. Ou ela pode se manifestar também com um quadro de irritabilidade apenas e de oposição persistente”, explica.

O papel dos adultos

Segundo a psicanalista Teresa Carvalho, o ambiente é um fator preponderante na formação das crianças, tendo consequências sobre o aprendizado, o desenvolvimento e a formação da personalidade.

O caso de uma criança que vive em um contexto de violência deve ser pensando de forma diferente daquele em que a criança presenciou isoladamente uma cena de violência, por exemplo. “Tudo vai depender de que violência é essa e em que momento ela foi vivida”, diz Carvalho.

Por isso, a necessidade de pensar sobre o conjunto das experiências vividas por cada uma. Isso é muito mais complexo do que o pensamento que se reduz à afirmação “quem vive situação de violência vira violento”.

Em casa e nas instituições de ensino, cuidadores e profissionais de educação podem dar atenção aos comportamentos tipicamente ligados à agressividade, tentando compreender os motivos e, consequentemente, as demandas de cada criança.

“É essencial ter um amplo repertório expressivo: brincar de faz de conta, ouvir histórias dos mais diferentes gêneros, inclusive que possuam conflitos e que tragam a adversidade como realidade em alguns momentos. Não ajuda ter sempre final feliz ou só gente boa, pois a vida não é assim. Além disso, é saudável brincar ao ar livre, poder se movimentar livremente, utilizar o corpo nas brincadeiras, gastar energia e experimentar a própria força”, indica a psicanalista.  

Cabe aos adultos, portanto, mostrar às crianças que a agressividade é um sentimento legítimo e, ao mesmo tempo, orientá-las a demonstrar o que sentem de uma maneira que não cause prejuízos para as próprias crianças e que seja aceitável e compatível com a convivência das pessoas ao redor dela. Ajudando, dessa forma, a proporcionar um ambiente adequado para que possam surgir comportamentos construtivos.

“A qualidade das relações vividas pela criança é fundamental, assim como a diversidade de experiências expressivas”

Em uma análise sobre práticas adotadas nas instituições de ensino infantil no Brasil, a professora Iza Rodrigues da Luz, a partir da concepção de Winnicott, ainda afirma que esses espaços devem funcionar como um “ambiente facilitador” do desenvolvimento emocional saudável.

Sendo assim, segundo ela, educadores devem aguçar o olhar sobre as singularidades de cada criança, tendo em vista que a agressividade deve ser pensada como uma tendência que precisa ser manifestada. Consequentemente, sugere maior cuidado com as formas de “correção”, pensando mais sobre as formas de se relacionar, seja entre adultos e crianças ou de crianças entre si.

“Compreendendo que o modo como os bebês e crianças se sentem afeta esse processo do desenvolvimento psíquico e social, a construção de um ambiente firmemente tranquilizador, como colocado por Winnicott, é algo que deve pautar o trabalho pedagógico, pensando que a compreensão de nossas normas éticas e morais é algo que está em processo nos primeiros anos de vida”, destaca Luz.

 

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