As Câmaras de Vereadores têm um corre-corre próprio da política institucional, com adultos apressados pelos corredores. Mas, por vezes, esses lugares têm também o corre-corre das crianças. A cena é um tanto rara, porém, acontece com mais frequência à medida que as mulheres — muitas delas mães — passam a ocupar os espaços de poder. Isso porque a chegada de mais mulheres na política pode trazer visibilidade para diversos debates sociais que dizem respeito às infâncias no país.
Neste ano, 10.603 vereadoras assumiram novos mandatos nos municípios do Brasil. Ou seja, a cada 10 Câmaras, de 8 a 9 têm vereadoras mulheres. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), elas representam 18% das cadeiras, o que significa um aumento em relação às eleições de 2020, em que eram 16%. Nas capitais, o número é um pouco maior, pois as mulheres são agora 21% do total de pessoas na vereança. Diante deste cenário, surge a pergunta: de que modo a presença de mais mulheres criando as nossas leis pode influenciar os direitos das crianças e adolescentes?
Piedade Marques, porta-voz da iniciativa social “Eu Voto em Negra”, aponta que, diferente dos homens vereadores, as mulheres eleitas permanecem em seus territórios. Desse modo, ela percebe que isso “mantém a conexão com a população e com as necessidades reais das pessoas, especialmente as de outras mulheres”.
Igualmente, a co-fundadora do coletivo Política é a Mãe (Poema), Ana Castro, concorda com esse apontamento. Ana, que também é ativista pelos direitos humanos, das crianças e das mulheres, considera que, atualmente, se existem políticas públicas que protegem as crianças, elas são fruto da atuação das mulheres. Especialmente das que são mães e que se mobilizam dentro e fora da política partidária.
“Um homem decidindo sobre transporte público pensa se a frota precisa ser renovada e no lucro das empresas que participarão da licitação. Mas, quem se preocupa em suprir necessidades reais das pessoas que vivem nas cidades são as mulheres. É fácil subir nesse ônibus com carrinho de bebê? A rota desse ônibus facilita a vida das mães – sejam elas mães de crianças com deficiência ou mães periféricas?”
Força política depende de quantidade maior de mulheres
Ana Castro defende que uma cidade pensada para crianças e pessoas mais vulneráveis será boa para todos os cidadãos e cidadãs. Por isso, ela alerta que não se pode esquecer que ainda é preciso lutar pelo básico. Isso passa por acessos e melhorias da segurança alimentar, da qualidade das escolas, da mobilidade urbana dentre outros assuntos.
Nesse sentido, a ativista tem expectativas para São Paulo, lugar onde mora. A capital paulista ficou com 36% da Câmara composta por vereadoras, e é uma das cinco capitais brasileiras que atingiu ou superou o marco de 30% das cadeiras ocupadas por mulheres. As outras cidades são Curitiba (32%), Porto Alegre (31%), Boa Vista (30%) e Cuiabá (30%), conforme dados do TSE.
O marco de 30% é uma referência frequentemente usada para pensar a equidade de gênero no trabalho ou na política. O conceito foi popularizado pela pesquisadora Rosabeth Moss Kanter, da Harvard Business School. A explicação se baseia em uma ideia simples, de que abaixo desse percentual, as mulheres (ou outros grupos sub-representados) tendem a ser vistas como exceções ou figuras isoladas sem força para influenciar. Isto é, sem essa quantidade necessária de representantes, o grupo não teria impacto real. Portanto, o marco de 30% é como um ponto de partida para uma transformação que, aos poucos, pode mudar não apenas quem ocupa os espaços, mas também como as decisões são feitas.
Representatividade: de quais mulheres estamos falando?
Apesar da ideia de um grupo de mulheres ser homogêneo, existem camadas de diversidade observando os diferentes marcadores identitários, como os de raça, classe, orientação sexual e identidade de gênero, com ou sem deficiência. Assim, essa diversidade também pode implicar no olhar de cada representante às pautas políticas.
“Penso que um dos principais ganhos ao termos mulheres negras, indígenas e periféricas no poder é porque elas trazem visibilidade para temas que poderiam ser facilmente ignorados”, diz Piedade Marques.
Ela lembra que, na época da alta dos casos de microcefalia e malformação cerebral em função da epidemia do vírus zika, no Nordeste, foram as mulheres nordestinas, negras e periféricas que conseguiram chamar atenção para o problema, melhorando o atendimento da saúde pública.
Atualmente, considerando alguns marcadores identitários, a partir dos dados do TSE analisados pela Funai, Alma Preta Jornalismo e Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), o cenário é de um aumento de pessoas negras e indígenas eleitas. Já entre as pessoas trans, houve uma pequena redução comparada a 2020.
Conheça duas mulheres eleitas e que representam grupos minorizados
É a única mulher indígena eleita entre as capitais brasileiras, de acordo com dados da Campanha Indígena, iniciativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ingrid é uma das 39 mulheres indígenas eleitas vereadora em relação a todos os municípios do país. Ela é uma exceção, considerando que a maior concentração de candidaturas indígenas (incluindo todos os cargos) se encontrava nos partidos de direita e no estado de Roraima — enquanto Santa Catarina possuía o maior número de candidaturas brancas —, conforme o estudo Análise de Candidaturas – Perfil Geral, produzido pelo Inesc e Common Data. Como Ingrid também é mãe, suas pautas principais são: educação inclusiva e de qualidade, segurança alimentar, justiça climática e igualdade de gênero.
Nas capitais, é a única mulher trans negra eleita vereadora, e ainda representa uma dentre as 26 mulheres trans eleitas no total. Em termos raciais, os partidos de esquerda são os com maior concentração de pessoas negras, de acordo com o estudo do Inesc e Common Data. Por meio de Santos, temas como igualdade de gênero, justiça climática e cultura local devem estar no centro do debate.
Diversidade política e as principais pautas para mulheres e crianças
“As bancadas do cocar e do turbante (como se refere às mulheres eleitas que são indígenas e negras, respectivamente) possibilitam um salto qualitativo nos debates políticos”, considera Piedade Marques. Ao mesmo tempo, ela aponta quais são, na sua perspectiva, os temas que mais vê e espera ver em evidência a partir da atuação dessas mulheres no poder:
- Enfrentamento da violência contra mulheres
- Proteção às mulheres políticas, combatendo a violência política de gênero
- Proposição de melhorias na saúde pública, inclusive com perspectivas alternativas, como o uso medicinal do Canabidiol (CBD), presente na planta Cannabis sativa
- Mitigação das mudanças climáticas, com estratégias que passem por um recorte de gênero, raça e classe
Para além da diversidade nas identidades das mulheres eleitas, é também preciso observar o espectro político em que elas se encontram, pois isso tem grande influência sobre as pautas que prevalecerão no centro do debate.
Com base nos dados do TSE e análise do Portal Lunetas, observa-se que das 179 mulheres eleitas vereadoras nas capitais, 58% delas estão filiadas a partidos de direita ou até de extrema-direita — tendo em conta de MDB (direita mais próxima ao centro) a PP (extrema-direita). O dado corresponde ao cenário nacional, em que 55% das mulheres eleitas estão nesse mesmo lado do espectro político, conforme a pesquisa Perfil dos Eleitos – 1º e 2º turnos, do Inesc e Common Data.
O que defendem as vereadoras de partidos opostos?
Os partidos Socialista e Solidariedade (Psol) e o Progressitas (PP) figuram entre os que estão, respectivamente em pólos de esquerda e de direita. Ao mesmo tempo, foram expressivos na eleição de suas candidatas. Além disso, ocuparam o segundo lugar em número de vereadoras eleitas nas capitais em cada um dos seus lados. Considerando os posicionamentos dos partidos, o que esperar, então, dessas vereadoras sobre as pautas das infâncias?
Karen Santos, mulher negra eleita pelo Psol, em Porto Alegre (RS), e Elzinha Mendonça, mulher branca, pelo PP, em Rio Branco (AC) exemplificam as diferenças e similaridades. Ambas foram as mais votadas entre as mulheres eleitas em suas cidades.
Enquanto Karen Santos está em sua reeleição e representa uma voz potente para as populações negras e periféricas do sul do Brasil, Elzinha Mendonça se destaca pela defesa dos direitos das mulheres e pelo envolvimento com pautas relacionadas à valorização da família e à infraestrutura urbana.
Fazer política para um bem comum
Ana Castro, do Política É a Mãe, sugere que mulheres no campo progressista e mulheres no campo conservador compartilham de mais pautas em comum do que imaginam. “Uma mulher, especialmente se for mãe, nos dias de hoje, está cansada. Não importa em qual ponto do espectro político-ideológico em que ela esteja”, diz.
Ela ainda relembra que este foi um ponto de concordância para mulheres muito diferentes entre si em um evento que conduziu. Por isso, afirma que a sobrecarga que atinge a mulher não tem partido político. Isso recai, portanto, sobre todas e pode ser um ponto de partida para debates que levem ao consenso.
A fim de que as pautas das crianças e adolescentes, bem como das mulheres, possam se fortalecer, a ativista ainda destaca que devemos nos desapegar da ideia de que algumas mulheres são mais sábias do que outras. Isso porque a afirmação impede um debate.
Outro ponto relevante é que os diálogos e a escolha de palavras que aproximem mais do que afastem devem ser atitudes práticas para a construção de uma política diversa e justa. Por isso, as mulheres na política precisam, antes de tudo, manter uma gestão focada nas necessidades imediatas da população. Priorizando, assim, as ações práticas que impactam diretamente o dia a dia das famílias e, por consequência, a vida das crianças.
Você sabe como se forma a “régua” do espectro político?
Há diferentes métodos de definir em que posição do espectro político um partido se encontra, como por exemplo, pela consulta de especialistas. Para os pesquisadores Bruno Bolognesi, Ednaldo Ribeiro e Adriano Codato, autores do artigo Uma Nova Classificação Ideológica dos Partidos Políticos Brasileiros (2023), esse posicionamento pode alterar de acordo com a finalização, fusão e o surgimento de partidos. Por isso, pode variar de tempos em tempos.