Mãe de três, a jornalista e escritora Bianca Santana se inspirou nas conversas difíceis que teve com seus filhos Cecília, Pedro e Lucas para escrever o livro “Diálogos feministas antirracistas (e nada fáceis) com as crianças” (Camaleão).
“Com meus filhos, tenho experimentado ser questionada sobre qualquer coisa, mesmo que eu não tenha resposta”, diz Bianca. A autora defende que é possível conversar sobre qualquer assunto com os pequenos, por mais difícil que seja, se contrapor e ter diferentes perspectivas.
“Nessa relação entre adultos e crianças, seja na escola ou em casa, os adultos se colocam na posição de quem tem as respostas. Isso traz muita angústia”, confessa.
No entanto, se não têm respostas, os adultos geralmente tentam encerrar um assunto. “Então, muitas vezes as crianças ficam com a sensação de que esconderam algo delas ou que mentiram”, afirma. Ou também pode acontecer de os adultos darem muito mais informação do que elas são capazes de processar e compreender.
“Evitar as conversas difíceis vai nos deixando num piloto automático, sem consciência da nossa vida, da realidade”, diz. Bianca observa que, às vezes, para evitar o sofrimento, as pessoas acabam fechando a possibilidade de sentir qualquer coisa e “a vida fica mais difícil e mais triste”.
Responder “a verdade sem excessos” é o caminho que ela escolheu para tecer esses diálogos.
Dessa forma, a autora percebe que seus filhos, hoje com idades entre 12 e 16 anos, estão se preparando para diálogos maiores também fora de casa. A coleta das conversas registradas no livro foram feitas antes da pandemia, em 2019, quando os três eram ainda crianças, são todas reais e se passaram no cotidiano da família.
Temas difíceis que, comumente, são evitados pelas famílias em conversas com as crianças são o mote deste livro. Em diálogos curtos que vão direto ao ponto, Bianca Santana traz um convite a deixar o conformismo ou o medo de lado. As realidades presentes nos diálogos que teve com seus filhos e retratou no livro são duras, sim. Mas existem e não podem ser jogadas para baixo do tapete em uma tentativa de proteger as crianças. As ilustrações de Tainan Rocha amplificam as conversas.
Evitar conversas difíceis não é a melhor saída
Questionar é da natureza das crianças. É assim que vão descobrindo mais sobre o mundo do qual fazem parte. Quando os adultos se veem desconcertados com perguntas para as quais não têm resposta pronta ou fácil, é comum escolher o silêncio ou algo como ‘porque as coisas são assim’.
“Evitar conversas difíceis pode gerar muito mais insegurança nas crianças”, observa. Por isso, segundo ela, é importante deixar claro quando não se tem uma resposta exata. Isso vai trazer mais confiança para elas”, reforça.
“Se não sabe, afirma que não sabe e vai aprender junto. Assim criamos uma relação mais verdadeira”, defende a autora.
Muitas vezes o silêncio espelha a incapacidade dos adultos de lidar com assuntos difíceis que fazem parte da sociedade. Temas como racismo, machismo, gênero, classe, política e religião, mais cedo ou mais tarde, podem aparecer entre as curiosidades das crianças. Seja porque viram ou viveram algo que as incomodou, por ouvir conversas de adultos e até pelos comerciais na televisão ou internet.
Em entrevista ao Lunetas, a jornalista e escritora conta sobre as conversas da sua infância e com os seus filhos, os livros que já produziu e realidades do país que temos dificuldade de encarar.
Lunetas – Este é seu primeiro livro destinado às infâncias. Foi desafiador escrevê-lo?
Bianca Santana: Foi desafiador e ao mesmo tempo muito prazeroso. Eu tenho uma premissa que eu aprendi na educação popular de ouvir a pessoa que é a nossa interlocutora nos processos de aprendizagem. Como mãe eu tento trazer essa experiência da educação popular para minha casa e sempre buscar uma escuta ativa ao que as crianças e adolescentes falam e também ao que perguntam. A partir dessa escuta, eu fui escrevendo pequenos textos e a Deise Bragantini, que é diretora da Revista Cult, me sugeriu publicar as pequenas histórias. Quando eu sentei para, de fato, aprimorar a escrita, fiquei com muita vontade de colocar as perguntas e os diálogos, na tentativa de estimular mais conversas, algo mais aberto e convidativo ao diálogo.
Os diálogos são curtos, vão direto ao ponto e deixam aquele gostinho de “e aí? Como continua?”. É como um convite a cada família que tiver contato com o livro a continuar a conversa a seu modo?
BS: Os diálogos curtos são esse convite para que as famílias, as salas de aula ou os grupos se sintam convidados a conversar mais. É como se tivesse ali uma provocação para que tenhamos condição de conversar mais.
– Estou com medo.
– Medo do quê?
– Não sei bem… Tenho medo porque você e o papai ficam falando de política.
– Entendo o seu medo. Nós sentimos também. Mas precisamos lidar com o medo. Ou você acha que a gente deveria parar de falar?
– Parar, não. Precisa mesmo falar.
O irmão interrompe:
– Quando eu for adulto, não vou falar sobre nada disso. E tudo bem também. Quem quiser falar de política pode, mas quem não quiser falar tudo bem também. As duas coisas estão certas.
(Trecho do livro ‘Diálogos feministas antirracistas (e nada fáceis) com as crianças’)
O quanto dos seus outros livros você acha que tem em ‘Diálogos’ com uma linguagem acessível a leitores de todas as idades?
BS: O “Quando me descobri negra” [Fósforo, 2023 e SESI-SP, 2015] tem pequenas narrativas. No “Arruda e Guiné: resistência negra no Brasil contemporâneo” [Fósforo, 2022] eu tenho ensaios, artigos, crônicas, que são gêneros diversos. Eles explicam mais. No “Diálogos” é como se tudo ficasse mais aberto. Então, por um lado, acho que ele traz muito dos temas que eu abordo, mas de um jeito bem diferente, que é mais um convite para reflexão conjunta.
Quando os temas dessas conversas passaram a fazer parte da sua vida, em especial o racismo e o machismo?
BS: Não sei precisar quando esses temas passaram a fazer parte da minha vida. Eu era muito pequena, quando eu queria fazer perguntas para minha família, mas eu achava que não tinha espaço. Lembro de, na escola, estudar a história do Brasil de uma perspectiva branca, e dava muita vontade de conhecer a perspectiva indígena, a negra e sempre que eu queria saber onde está o livro para me contar o outro ponto de vista, ouvia que esse livro não existia.
Desconfiava desde criança de que isso não era verdade. No “Quando me descobri negra” conto que minha avó prendia meu cabelo bem para trás, eu pedia para deixar solto ou só metade preso e ela falava que não podia, ‘senão ia parecer essas neguinhas’. Sabia que falar ‘essas neguinhas’ era racista. Queria perguntar ‘mas eu não sou essas neguinhas?’ porque sabia que eu era, mas eu tinha medo. Eu já estava na universidade quando comecei a fazer perguntas sobre racismo.
Você teve conversas como a do livro com sua família, quando era criança ou adolescente?
BS: Apesar de o racismo não ter sido um tema na minha casa na infância e na adolescência, a minha mãe sempre foi uma pessoa muito disposta a dialogar. Ela sempre explicitou para mim desigualdades de classe, de gênero e eu podia perguntar as coisas. Então eu tive conversas com a minha mãe.
Entre os temas que você traz nos diálogos, qual acredita ser o mais rejeitado ou ignorado pelos adultos? Isso acaba dificultando a abordagem com as crianças?
BS: Não ouvimos as pessoas no Brasil falando sobre encarceramento, por exemplo. Temos uma população carcerária que cresce e vive numa situação de extrema violência e esse é um assunto ignorado. Outro caso é a abordagem policial violenta. É algo que aparece no noticiário, que as famílias negras e periféricas temem, mas é um tema ignorado por muitos adultos. E aí como os adultos não elaboram isso entre si, fica ainda mais difícil conversar com as crianças. Mas é uma realidade e precisa ser transformada, o que só acontece se tivermos consciência sobre ela, então precisamos estudar, ler e dialogar sobre esses assuntos.
De todos os diálogos que o livro traz, qual foi o mais difícil para você?
BS: O que minha filha chegou em casa contando que todo mundo na sala dela tinha alguém da família na prisão. E outro, talvez esse o mais difícil, quando meu filho contou que o irmão de uma amiga, um adolescente de 13 anos, estava preso porque roubou carne. Isso acabou comigo, me destruiu. Infelizmente, é uma realidade no país e precisamos conversar sobre ela para que façamos escolhas melhores, não só nas urnas, mas na organização política coletiva, porque essa realidade precisa ser transformada.