Tom Zé: ‘a criança é um futuro que nasce todos os dias’

Conversamos com o artista para conhecer de perto o que ele pensa sobre a infância, a criança, o brincar, e tudo o que cabe entre todas essas coisas

Renata Penzani Publicado em 09.10.2017
Foto em preto e branco mostra Tom Zé cantando em um show enquanto olha para a mão esquerda, que está levantada.

Resumo

Aos 81 anos, Tom Zé está mais jovem do que nunca, e lançou o seu primeiro disco infantil. Conversamos com ele para conhecer de perto sua visão sobre infância (a sua própria e a do mundo).

“As letras inventam as palavras. As palavras inventam as ideias, e as ideias inventam os futuros”. É assim que o cantor e compositor baiano Tom Zé define para que serve o alfabeto, tema de seu mais novo disco, “Sem Você Não A”, o primeiro dedicado ao público infantil.

Aos 81 anos – que ele completa no próximo dia 11 de outubro, não por acaso praticamente Dia das Crianças – Tom Zé criou o disco em parceria com o amigo de longa estrada, o desenhista Elifas Andreato, autor das letras.

No disco, a letra “A” foge do abecedário, provocando uma grande confusão no mundo, que de repente não consegue mais escrever a vida como antes.

Conversamos com o artista para conhecer de perto o que ele pensa sobre a infância, a criança, o brincar, e tudo o que cabe entre todas essas coisas.

“Não há quem cure a curiosidade”

Os motivos que movem um artista do porte de Tom Zé, autor de inúmeros discos históricos considerados os melhores da música brasileira – como “Estudando o Samba” (1976), “Nave Maria” (1984) e “Todos os olhos” (1973) –  a dedicar-se a um público totalmente novo aos 81 anos, vai além do que podemos supor.

“Por que um disco infantil sobre o abecedário?”, foi a pergunta que fizemos a ele.

“As crianças, como diz um poeta português de quem nem sempre nos lembramos, Guerra Junqueiro, ‘são o mundo a começar de novo’

“As crianças atraem olhares, atenção e autores. Eu e Elifas também fomos pescados por esse futuro que nasce todos os dias na humanidade”, explica.

Para ele, a palavra é pressuposto inevitável de tudo o que existe, e constitui parte fundamental das descobertas da infância.

“Estou justamente lendo um livro que fala sobre a conquista humana da fala, da palavra. É o que nos torna o que somos. As crianças, perceptivas como são, sabem disso. Uma letra que foge do alfabeto, como conta a fábula do disco, provoca alterações da má hora”, conta.

Uma fábula alfabética de Tom Zé e Elifas Andreato – “Esta fábula não começa com ‘Era uma vez…’, porque ela acontece no Abecedário, terra onde vivem os habitantes do alfabeto. Nesta história, não há reis nem rainhas, não tem princesas, sapos ou fadas. As protagonistas são mesmo as letras. No Abecedário, não há personagens mais ou menos importantes. São todos iguais. As maiúsculas sabem que precisam das minúsculas; e as vogais, das consoantes. Elas bem entendem que letra nenhuma escreve nada de fundamental sozinha.

Das letras às cores da cenografia e do figurino, tudo neste disco parece celebrar a criatividade, a capacidade humana de criar e se conectar com um olhar disposto a renovar o mundo e a si mesmo. Então, o que pensa Tom Zé sobre o brincar e suas transformações ao longo do tempo? Qual a importância de dar tempo para a criança ser criança?

“É claro que criança e adulto precisam de tempo e de espaço. Fingimos que nos esquecemos disso, mas o silêncio é a entrada e estrada para o sonoro, é por ele que a música, o suspiro, a voz, o ritmo do coração e da circulação do sangue, caminham”, defende.

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Vitor Penteado/Sesc Pinheiros

Estreia do show “Sem Você Não A”, no Sesc Pinheiros.

“Vejo crianças interessadas no que não seria, à primeira vista, um  brinquedo: é preciso cobrir tudo quanto é tomada, em casa e esconder objetos ‘de valor’. Bola ou sapato são igualmente dignos de atenção, para um pequerrucho. São invenções e os pequenos adoram invenções, inventam todos os dias.  O encanto da manipulação do objeto, do brinquedo, é sempre uma revelação.

“O que cura a humanidade é que não há quem cure a curiosidade”, diz a canção “Curiosidade”, que conta a fábula de Adão e Eva para chegar aos dias atuais e explicar por que o ser humano tem tantos porquês.

Depois que apresenta a música, tocada pela primeira vez, Tom Zé bate um papo com as crianças, oferece uma cobra de brinquedo para conhecerem, em uma alusão à serpente bíblica da tentação. “Tá vendo? Se o mundo fosse começar de novo, seria tudo igualzinho. A curiosidade inventou a humanidade, é um dos bens mais preciosos que nós temos”, defende ele.

No palco, o que se vê é uma alma brincante que rodopia, dança e saltita. Por vezes, esquece a letra, volta atrás, se embaralha nos trava-línguas ritmados que ele mesmo criou. Mas tudo faz parte da performance de um artista que respeita as crianças a ponto de dedicar um álbum inteiro só para elas.

E se engana quem pensar que as letras das músicas são fáceis ou didáticas. Se ouvidas em conjunto, da forma como o álbum foi pensado, elas constituem uma narrativa sobre a missão das letras para reencontrar o “A” que fugiu do alfabeto, e de como acabaram encontrando o esconderijo do silêncio.

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Vitor Penteado/Sesc Pinheiros

Tom Zé, 81 anos e alma de criança.

Mas, se ouvidas separadamente, percebe-se que cada canção se dedica a um valor do universo infantil que a criança descobre e constrói nos primeiros anos de vida. Tem música para a curiosidade, a liberdade, a imaginação, a felicidade, o silêncio. Os tais marcos do desenvolvimento infantil também aparecem no disco, com letras sobre aquisição da fala, alfabetização e reconhecimento do outro.

As crianças são bem-vindas no palco, onde sobem, dançam junto, cantam e sugerem coisas. “Qual a maior palavra do mundo?” Depois de muitos palpites, as crianças acabam descobrindo: “A maior palavra do mundo é ‘Eu'”, na divertida “A Maior Palavra do Mundo”, que fala sobre egocentrismo e alteridade. “E como não se sabe como no mundo já tem tantos Eus, cada eu que mora no mundo é dentro de um milhão de Eus”, diz a letra da música.

O que é ser criança? 

“É começar o mundo de novo, fazendo arrastão de poeta”

A brincadeira é, para ele, o que define a criação – artística ou não. Por isso, ele discorda que o adulto de hoje deixou de brincar. A brincadeira está lá, ainda que não seja valorizada ou mesmo reconhecida.

“A criação está bem ligada à brincadeira, não é? Sem ela se ousa pouco. Até se apoia na matemática, em certos jogos, verbais ou não, porque a criação se quer eficaz, é esperta. Em inglês “to play” está ligado à interpretação teatral, a jogos”, diz.

“O mundo adulto até hoje não dispensou a brincadeira. Que pode ser séria, pois a criança tem seriedade”

Quem acompanha o trabalho do autor, ou mesmo conhece uma ou outra canção, pode perceber que o que chamamos de “lúdico” está presente de muitas formas. As clássicas “Tô” (“Eu tô te explicando/Pra te confundir/Eu tô te confundindo/Pra te esclarecer”), “Conto de Fraldas” ou “Augusta, Angélica e Consolação” são alguns exemplos de como ele brinca com os sons, com as palavras e tudo aquilo que eles significam ou poderiam significar.

Existe uma divisão entre o que é feito “para crianças” e “para adultos”? “Vou pensar mais nisso a partir de agora, me aproximando desse público pequenino. É preciso tocar o interesse que está ávido de alimento na mente de todos, pequenos e grandes”, conta.

“Criança merece alegria, reflexão participativa. Os adultos que não se esquecem disso viram grandes arquitetos, engenheiros, sapateiros. Ou artistas”

Para ouvir o disco novo, dá o play aqui embaixo

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