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Resumo
O educador Severino Antônio - autor de "Uma Pedagogia Poética para a Infância" conta como enxerga a infância, suas necessidades e ameaças à sua vivência plena e respeitosa.
Uma infância livre para a brincadeira, a experimentação, a descoberta do mundo e de si, livre das pressões do mercado e do consumo, com amor e amparo. É por essa infância que Severino Antônio, escritor (“Uma Pedagogia Poética para a Infância”; “Nascentes”, dentre outros) e doutor em Educação pela Unicamp, ele se dedica há mais de 40 anos ao ensino e à formação de educadores.
“A infância não é uma preparação para a vida adulta, não deve ser pensada assim. Devemos pensar que cada criança recria a vida humana”
Conselheiro do Instituto Alana, professor do Mestrado em Educação Sociocomunitária/Unisal e um dos entrevistados do documentário “O Começo da Vida”, Severino conversou com a gente sobre a forma como enxerga a infância, suas necessidades e os fatores que impedem as crianças de viver plenamente esse momento de suas vidas.
Leia a nossa conversa na íntegra
Lunetas: O que é ser criança para você?
Severino Antônio: Penso hoje que o mais significativo é que a criança é uma dimensão da vida humana. A infância não é uma preparação para a vida adulta, não deve ser pensada assim. Devemos pensar que cada criança recria a vida humana. É uma ideia antiga essa de que nascemos inacabados, que não estamos inteiramente feitos, no sentido de que temos que descobrir e inventar a nós mesmos e ao mundo. Por isso é tão fundamental entender a natureza própria e específica da criança, mais especialmente não reduzir a criança a consumidor, especialmente de tecnologia, de produtos sem fim e das últimas novidades. Esse é um dos desafios do nosso tempo e uma das minhas maiores preocupações.
Lunetas: Nesse contexto e nessa era de tanta informação, qual é o papel da escola e do educador?
Severino Antônio: Nessa era saturada de informações, muitas vezes sem necessidade, confusas e desconexas, a escola é fundamental mais do que nunca, tem um papel imprescindível de ajudar a criança a lidar com a informação. É muito mais grave o excesso irracional de informação do que a carência, porque, quando havia pouca informação, tínhamos essa consciência. Hoje temos ilusão de conhecer, mas poucas vezes conseguimos refletir e criar em cima disso. Além disso, grande parte dessa informação é de estereótipos, o que impede a criança e todos nós de olhar com olhos livres e novos. A escola é muito importante para que a criança possa transformar a informação em conhecimento vivo, vivido, e para que saiba escolher a informação, saiba relacioná-la e entender seus diferentes modos. Outra questão fundamental nesse contexto é que a criança possa encontrar seu lugar como criadora de conhecimento.
Lunetas: E também nesse momento, como conciliamos o fato de que temos cada vez menos tempo e proporcionamos cada vez menos tempo livre para as crianças?
Severino Antônio: São faces diferentes da mesma questão. Estamos adulterando a criança e tirando seu tempo de singularidade de infância. Ela precisa ter tempo para brincar livremente. Está sendo plenamente criança quando brinca com outras crianças ou sozinha, quando aprende metáforas, aprende a simbolizar, aprende a conviver. Estamos tirando essa dimensão da infância. Aliás, há muitas escolas de crianças pequenas tirando o recreio. Já impõem à criança que se coloque em fila, faça tarefas, enfim, condenam a criança ao mutismo, é uma insanidade. Perdemos esse tempo de vida e estamos tirando das crianças, mas devemos fazer o contrário e aprender com elas: aprender a ter tempo, a respirar livremente, ter tempo de criação, de admiração, um trabalho vital dos nossos tempos.
Lunetas: Qual é a importância, hoje, para a infância, de discutir a igualdade de gênero?
Severino Antônio: É uma questão importante, mas altamente arriscada porque tem muita intolerância e uma dicotomia irracional em tudo que estamos vivendo. Por um lado, é preciso pensar que a diversidade educa, a vida é isto, afinal, essa multiplicidade e ao mesmo tempo essa série de condições únicas. Por outro lado, é importante que não caia na moda nem na dicotomia, senão perdemos sentido, compreensão, capacidade de escuta para a singularidade e para aquilo que temos em comum. Muitas vezes o risco de falar de diversidade é esquecer que temos coisas em comum. Existem universais da infância em todas as culturas, universais humanos. O brincar de faz de conta, por exemplo, é primordial para a infância para que cada um elabore sua imagem. Precisamos cuidar do universal e do singular, e hoje ou olhamos para um ou para o outro.
Lunetas: Por que uma sociedade deve valorizar a infância? Quais são os ganhos dessa ação?
Severino Antônio: São ganhos imensuráveis, desde ver crianças mais felizes e, não muito a longo prazo, mudar o conjunto das relações sociais. Tem pesquisas que mostram que a valorização da primeira infância tem incidência enormes sobre as questões sociais, como a diminuição da criminalidade, o aumento da capacidade econômica e outros. Tem imensa relação entre valorizar a primeira infância e as pessoas que cuidam das crianças – que precisam ser cuidadas e valorizadas – e a qualidade de vida, a cidadania, a política e a economia. Estamos falando de questões primordiais e, nesse sentido, queria sugerir os trabalhos e as pesquisas feitos pelo Instituto Alana e pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Mas o mais importante para mim é que, assim, as crianças seriam mais felizes, e nós também.
Lunetas: Falando um pouco de mídia e publicidade infantil, como enxerga essa influência sobre as crianças?
Severino Antônio: Existem muitas conversas no Brasil e fora do Brasil sobre o assunto. O tempo todo associações médicas mostram o impacto muito desfigurador sobre crianças pequenas de publicidade destinada a vender algo a elas ou para vender algo a adultos por meio delas. Ainda não temos a lucidez de não tratar as crianças nem como adulto consumidor nem como instrumento para o consumo de adultos. É um imenso ganho de vida não dirigir propaganda diretamente para crianças. Por um lado, você estereotipa a criança cada vez mais, porque parte de manipulações e produções de desejos que não são os da criança, mas são os da criança para o mercado. Por outro lado, você impede a criança de escolher livremente a vida que ela quer viver. Ela passa a ser objeto do cruzamento incessante de solicitações da lógica do hiperconsumo. Sem essa lógica, poderíamos ter uma sociedade mais livre, mais feliz. Isso teria que ser posto acima das razões do mercado.
Lunetas: E nessa sociedade que nos exige sempre consumir mais, portanto sempre trabalhar mais, como conciliamos o tempo para cuidado e criação dos filhos?
Severino Antônio: Essa questão é decorrente da mesma lógica perversa: gera-se um desespero nas pessoas pelo consumo, que têm que trabalhar mais, por isso têm menos tempo. Mas o vínculo com a criança é fundamental. Ele é, ao mesmo tempo, afetivo e cognitivo, e ajuda a reconhecer projetos de vida. Mas, primeiro, temos que repensar, se for possível, o tempo que temos. Se não for possível, temos que ter olhar e escuta para os momentos em que estivermos com as crianças. Eles têm que ser de alta qualidade, de estar inteiramente junto. É imprescindível o brincar junto e ficar perto das crianças, enquanto fazemos algo. Elas aprendem infinitamente assim. O vínculo é o que sustenta tudo, mostra que há sentido na vida. A criança se reconhece no contato com o adulto, ela precisa conversar com o adulto sobre as perguntas dela, que são as mesmas do princípio da Ciência, da Filosofia. Há de haver o tempo vivo do vínculo, do contato, da brincadeira, da curiosidade, da indagação. Os pais precisam de contato com a criança, de tempo livre perto da criança.
Lunetas: Por fim, em um país como o nosso, de tantas desigualdades sociais, como podemos contribuir para mudar isso, e como o seu trabalho atua nesse sentido?
Severino Antônio: Por um lado, existe a viva vivida no cotidiano. Existe a parte que nos cabe na história de vida de cada um. O que pudermos escutar as crianças, estar perto delas é fundamental. Mas existe também a macrorrelação, que envolve a luta por políticas públicas de valorização da primeira infância. Isso é fundamental nos vínculos comunitários e políticos, principalmente no Brasil, com esses abismos de desigualdade e milhões de crianças que poderiam ser muito felizes e que poderiam ajudar a humanidade a ser muito feliz. Quanto ao nosso trabalho, dia e noite eu e Kátia ajudamos a formar professores, conversamos com as pessoas, com comunidades, com pais e pessoas que cuidam de crianças. Tentamos fazer livros, textos e vídeos, mas é muito difícil mensurar tudo. É, contudo, o que dá sentido para a nossa vida, o que faz com que ela possa continuar tendo sentidos nascentes, circulação de vozes, troca de ideias, de experiências e projeto de vidas.