Nesta reportagem, o Lunetas conta a trajetória do canabidiol para uso medicinal no tratamento de epilepsia e outras doenças crônicas e sem cura em crianças
De um lado, crianças com doenças sem cura. De outro, um remédio ainda inacessível. Conheça a luta das famílias que lutam pela maconha medicinal no Brasil, e a trajetória do canabidiol para uso medicinal no tratamento de epilepsia e outras doenças sem cura.
A pequena Sofia, do Rio de Janeiro, tem hoje oito anos. É uma criança que tem alegria e sonhos de sobra. Uma criança que vive sua infância ao mesmo tempo em que vivencia um desafio que parece não ter fim. Ainda bebê, ela foi diagnosticada com uma doença rara, a Síndrome de Rett atípica, causada por uma mutação no gene CDKL5, que causa crises convulsivas constantes e sem cura permanente. Sofia tinha 45 dias de vida quando sofreu as primeiras. De lá para cá, nunca chegou a experimentar a vida sem elas. Eram dezenas por dia. A família testou todo tipo de medicamento – do Brasil e do exterior – mas nada foi suficiente para conter as convulsões de forma efetiva.
Até que um dia, sua mãe, a advogada Margarete Santos de Brito, 45, soube de uma família americana que usava um composto extraído da maconha no tratamento do filho, e vinha conseguindo excelentes resultados. Não teve dúvidas, e foi direto à fonte. Ela entrou em contato com a empresa fabricante e conseguiu importar, pelo correio, uma amostra grátis do canabidiol – também conhecido como CBD.
Àquela altura, o que foi um gesto urgente em busca de alívio e alguma dignidade para a filha seria configurado como tráfico internacional de drogas. Margarete poderia ter sido presa por crime hediondo, com pena de cinco a 15 anos de reclusão. Na melhor das hipóteses, seria enquadrada como “tráfico privilegiado” — quando o agente é primário, de bons antecedentes, não se dedica a atividades criminosas nem integra organização criminosa. Por sorte ou acaso, passou ilesa. Até hoje, o extrato da maconha é o único remédio que surte efeito para abrandar as convulsões de Sofia, e Margarete – que teve mais uma filha – Bia, hoje com sete anos –, relembra com orgulho aquele era só o primeiro passo de uma luta na qual ela se empenha até hoje.
“Nossa principal luta é o acesso justo e democrático de todas as famílias”, defende
Até 2013, era esse o tipo de medo que marcava presença constante na vida de dezenas de famílias brasileiras que infringiam a lei para obter um remédio não legalizado pela Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Um medo que só não era maior do que perder seus filhos.
Sofia, Maria Luisa, Alfredo, Any, Gabriel. O que esses nomes têm em comum vai além da pouca idade e do diagnóstico de um mal sem cura: compartilham pais e mães que não se curvam à lei, e estão dispostos a insistir em uma luta diária para descriminalizar o cuidado com sua saúde.
De lá para cá, alguns passos foram tomados no rumo da democratização do tratamento, mas nenhum deles é definitivo para garantir o acesso das famílias, sobretudo porque são medicamentos de alto custo.
O primeiro deles foi a regulamentação da importação. Hoje, é permitido trazer o extrato de canabidiol do exterior, desde que com prescrição médica – hoje, o Conselho Federal de Medicina autoriza médicos a prescrever qualquer tipo de medicação, incluindo o Cannabidiol. Mas, vencida essa barreira, outra muito maior se impõe: quem é que pode pagar isso? O tratamento, descontados os impostos de importação, pode variar entre R$ 1.500 e R$ 3 mil.
Nesta reportagem, o Lunetas conta a trajetória do canabidiol para uso medicinal no tratamento de epilepsia e outras doenças crônicas e sem cura em crianças no Brasil. Uma história que é um misto de organização comunitária e familiar, tabu social, pressão popular, rigidez legal e burocracia. Um caminho feito a passos curtos, e que comemora cada pequena batalha como se fosse a guerra inteira.
Você tomaria um remédio sem saber a dose? É o que centenas de famílias estão fazendo porque é a única opção. Juntos podemos mudar isso agora! Doe e compartilhe esse projeto! Faltam poucos dias! https://www.catarse.me/pt/farmacanabis?ref=intbr #maconha #maconhamedicinal #canabidiol #ufrj #projetocientifico
Posted by Apepi on Friday, February 10, 2017
Rubens Wejnsztejn, Presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil, é médico neurologista e prescreve canabidiol para pacientes com transtornos diversos, principalmente no caso de distúrbios que comprometem o sistema nervoso, como a epilepsia e a esquizofrenia.
Um de seus pacientes é o menino Alfredo, de dez anos, que após o início do tratamento com o CBD viu suas crises de forma considerável até desaparecerem por completo – hoje, ele já não apresenta nenhuma crise. O médico do menino é quem nos explica o que é esse composto capaz de trazer tanto alívio – muitas vezes, o único.
“A Cannabis Sativa, a maconha, é uma planta que contém aproximadamente 60 compostos farmacologicamente ativos. O Cannabidiol (CBD) é apenas um deles. Trata-se do principal composto não psicotrópico da Cannabis. O CBD constitui até 40% dos extratos da planta, e seu efeito terapêutico foi identificado em 1963.
“Tem as características de ser não psicoativo (ou seja, não causa alterações psicosensoriais), de ter baixa toxicidade e alta tolerabilidade em seres humanos e animais”
É o que explica o neurologista, que também é professor da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil. Ao contrário do que o senso comum pode pensar quando o assunto é maconha, o CBD também não possui nenhum efeito alucinógeno. Seus efeitos medicinais são comprovados cientificamente desde a década de 80, em um estudo realizado na Escola Paulista de Medicina.
“O Cannabidiol possui um amplo potencial terapêutico no sistema nervoso central, demonstrando grande importância no tratamento de diversos distúrbios neurológicos”
“Em seres humanos, esses efeitos correspondem à analgesia, alteração de humor, estímulo do apetite em indivíduos tratados com quimioterapia (pacientes portadores de HIV e câncer), alterações nas atividades psicomotoras, na percepção, na cognição, na memória, bem como no controle da espasticidade em pacientes com esclerose múltipla, efeito benéfico sobre o glaucoma, propriedade brocodilatadora e anticonvulsivante, entre outras”, esclarece Rubens.
A epilepsia – que é uma das principais motivações pela procura da maconha medicinal no Brasil – é uma doença sem cura. Portanto, o tratamento é a única via de alívio para os pacientes, seja ele halopático, homeopático, psicoterapêutico ou natural, no caso das plantas medicinais. Cabe a cada família avaliar qual deles oferece melhores resultados, e persistir na aposta pela melhora significativa a longo prazo.
“Aproximadamente 1% da população mundial é acometida pela epilepsia. A constante ocorrência de crises epilépticas pode prejudicar gravemente a qualidade de vida do indivíduo, causando danos cerebrais, especialmente no período de desenvolvimento”, explica o médico, ressaltando que o tratamento nos primeiros anos de vida são fundamentais para o desenvolvimento da criança.
“O tratamento da epilepsia visando o controle dos episódios convulsivos é extremamente importante, pois, quando não tratada de maneira adequada, a repetição das crises poderá ocorrer em intervalos cada vez mais curtos. Os medicamentos anticonvulsivantes disponíveis atualmente não são capazes de promover a cura da doença, porém, são apropriados para controlar a repetição das crises convulsivas. O controle das crises sempre traz uma tranquilidade maior aos pacientes e familiares, pois o objetivo de uso da medicação é ter uma vida normal, o que nem sempre ocorre com os indivíduos epilépticos”, fundamenta Rubens.
“Eu sei que o canabidiol não vai curar o meu filho, mas sei que ele terá qualidade de vida. Sei que, quando ele crescer, vai se lembrar da infância dele. Antes, quando ele ficava dopado por conta das medicações, eu achava que ele não teria lembranças da infância”.
A fala acima é da pernambucana Kilmary Oliveira Sequeira, mãe de Alfredo, paciente de Rubens, diagnosticado com epilepsia. Em 2014, ela requisitou à Anvisa a autorização para importar o Real Scientific Hemp Oil (RSHO) – óleo de cânhamo rico em canabidiol, fabricado pela HempMeds Brasil, primeira empresa autorizada pela Anvisa a trazer o produto ao Brasil. Em outubro de 2015, a família iniciou o tratamento e a melhora foi expressiva – desde então, Alfredo teve apenas uma crise tão forte como as anteriores.
“O cânhamo e a maconha são plantas da mesma espécie, a Cannabis sativa. No entanto, ambas são geneticamente distintas e geralmente utilizadas para finalidades diferentes. Para uma planta de cannabis ser considerada cânhamo, ela deve conter no máximo 0,3% de tetrahidrocanabinol (THC), o princípio ativo que causa efeitos psicoativos” (FONTE: HempMeds Brasil). Ou seja, o cânhamo pode ser entendido como a porção “pura” da maconha, livre de THC ou com quantidades residuais da substância.
Caroline Heinz, Diretora de Operações da empresa, conta como foi esse caminho:
“A primeira compra legal de canabidiol (CBD) no Brasil aconteceu por meio de uma decisão judicial, em 2014. Esse foi o caso da Anny Fischer, cuja história é retratada no documentário “Ilegal – A vida não espera” (disponível na Netflix). Assista ao trailer abaixo:
A Anvisa passou então a receber pedidos de importação da substância, que eram julgados de forma excepcional. A partir desse momento, esforços foram travados em diversas regiões do Brasil para possibilitar a obtenção do canabidiol pelas famílias brasileiras. Essas conquistas se somaram a diversos estudos no mundo todo que confirmaram a eficácia do canabidiol no tratamento de epilepsia, Parkinson e outras condições de saúde e, com isso, a discussão sobre o uso medicinal da substância passou a se popularizar”, explica.
Como consequência de todo esse processo, em janeiro de 2015, a Anvisa retirou o CBD da lista de substâncias proibidas no Brasil. Em maio do mesmo ano, foi publicada a RDC 17/2015, resolução que definiu o passo a passo para a importação de produtos à base de canabidiol, associados a outros canabinóides, por pessoas físicas, desde que com prescrição médica. Em agosto, a Anvisa autorizou a compra excepcional do produto não só para pacientes com epilepsia, como ocorria anteriormente, mas para várias outras patologias, como dores crônicas e Parkinson.
“Hoje, para adquirir o produto, os pais precisam seguir o passo a passo estabelecido pela Anvisa – disponível aqui. A primeira etapa é consultar o médico da criança para obter uma prescrição para o canabidiol e também um laudo médico. A prescrição deve conter o nome do paciente e a dosagem de canabidiol que será administrada. O laudo médico deve trazer o CID (código referente à condição de saúde do paciente), descrição do caso do paciente e justificativa para a utilização de uma medicação que não está registrada no Brasil pela Anvisa. Além disso, médico e paciente (ou responsáveis legais), assinam uma declaração fornecida pela Anvisa”, explica Caroline.
Com essa documentação em mãos, o segundo passo é solicitar a autorização de importação. Essa parte do processo é toda feita pela internet, no site da Anvisa. O tempo para processamento do pedido é de até dez dias.
Apesar de essas conquistas serem significativas e simbolizarem o resultado de muita pressão popular de uma fração da sociedade civil unida nesta causa, a luta não para por aqui. Para muitas famílias, é aí que ela apenas começa.
Os altos custos do remédio ou mesmo a dificuldade de ter acesso às informações necessárias para requerer seus direitos faz com que muitas famílias fiquem à deriva, sem tratamento. A opção de solicitar o remédio ao SUS – Sistema Único de Saúde – que deve ser feita via Defensoria Pública de cada Estado, atestando a impossibilidade de pagar pelo medicamento – é ainda mais marcada por obstáculos de muitas naturezas.
Margarete conta que conhece muitas pessoas que tentaram e continuam na espera, ou aquelas que chegaram a conseguir e tiveram o direito negado no meio do tratamento, o que é prejudicial para o paciente.
Para esses casos, existem dois caminhos alternativos, considerados por muitos mais seguros do que a importação: cultivar maconha em casa e fazer a extração de forma caseira; ou ainda recorrer ao chamado “mercado não formal” de extratos de CBD.
Margarete e a filha Sofia são exemplo disso. Para explicar sua escolha, ela compara a aquisição do óleo de canabidiol caseiro ao de um medicamento como outro qualquer, e explica que o principal receio das famílias é não saber qual a dosagem correta utilizar na criança, que neste caso já tem a saúde mais frágil.
Uma das grandes lideranças do país na luta pelo acesso ao CBD, Margarete criou uma ONG – Organização não governamental – , a Apepi (Associação de Pais de Pessoas com Epilepsia Refratária) para formalizar sua militância.
Em 2016, com o apoio de um grupo de professores da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro – , ela criou um projeto de financiamento coletivo na plataforma Catarse para custear a estruturação de um laboratório destinado a analisar as dosagens dos extratos importados e também de orientar a utilização dos óleos caseiros.
“Você tomaria um remédio sem saber a dose? É o que centenas de famílias estão fazendo porque é a única opção”
Em fevereiro de 2017, o projeto não só superou a meta – de 60 mil – como conseguir firmar uma parceria com empresas que apoiaram a proposta e viabilizaram a compra dos maquinários, insumos e vidrarias para montar o laboratório. Nasceu assim o FarmaCanabis, que conta com a coordenação da professora Virginia Carvalho, pós-doutora em toxicologia pela USP. Conheça o projeto:
Hoje, o laboratório está equipado “para analisar gratuitamente os teores de canabinóides como THC, THCA, CBD, CBDA e CBN nos medicamentos importados e produzidos pelas famílias brasileiras. Essa análise é fundamental para que as famílias avaliem e desenvolvam junto com médicos e cientistas um tratamento seguro e eficaz para os seus filhos”, diz a descrição da iniciativa.
Uma ressalva importante, porém, é que o cultivo domiciliar de maconha no Brasil é proibido. Por isso, até que o Supremo Tribunal Federal descriminalize o plantio para fins medicinais, cabe às famílias buscar respaldo na justiça para adquirir um habeas corpus; o documento serve para dar proteção e resguardo às famílias. A burocracia e dificuldade de acesso a informações e assessoria jurídica é também responsável por anular qualquer possibilidade de acesso ao tratamento em muitas situações.
Há duas ações correndo no STF: uma sobre uso medicinal e outra sobre uso recreativo. O ministro Teori Zavaschi, morto em janeiro de 2016 em um acidente aéreo, foi quem pediu vistas do processo de descriminalização da maconha no Supremo Tribunal de Justiça em 2015.
O processo para uso medicinal e bem-estar terapêutico foi proposto pelo PPS (Partido Popular Socialista) com o auxilio de uma associação de Belo Horizonte chamada AMA-me, mentora da ação. Foi dada entrada em junho deste ano, pelas mãos da ministra Rosa Weber. A ação pedia a descriminalização do plantio, cultivo, colheita, armazenamento, transporte, prescrição e uso da maconha para fins medicinais e de bem-estar terapêutico.
Em julho deste ano, a Anvisa protocolou, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), um parecer negativo à liberação do cultivo de cannabis para uso medicinal. A alegação do orgão é a necessidade de desenvolver, antes, um plano de regulamentação sobre o assunto, a fim de não criar uma situação desordenada de cultivo. Assim, a informação da agência é que está sendo analisado um conjunto de regras para o uso da maconha medicinal. A previsão é de que a norma de regulação esteja pronta até o fim deste ano.
A Lei 11.343, de 2006, proíbe plantio, cultura, colheita e exploração de Cannabis, “ressalvada hipótese de autorização legal” para fins medicinais e científicos, em local e prazo predeterminados e mediante fiscalização.
Assim, a desobediência civil O único caminho possível para muitas famílias. Embora não haja uma resposta segura para isso, existem muitas especulações sobre a resistência de aprovar o registro legal do óleo de canabidiol. Uma delas é que há um interesse da indústria farmacêutica de manter longe das prateleiras o que seria possivelmente o maior concorrente aos fármacos tradicionais.
“Eu acho que existem interesses comerciais, de patente. Porque se essa planta entrar, vai quebrar muito anticonvulsivante. Rivotril não vai existir mais”, diz o carioca Alexandre Meirelles – pai de Gabriel, que faz tratamento com a planta – no vídeo da campanha do FarmaCanabis.
A militância que Margarete iniciou em 2013 deu frutos positivos, e vêm dela duas frases que podem definir sozinhas o que é a militância pelo canabidiol no Brasil. “É um movimento de muito mais perguntas do que respostas”, diz ela. “Toda lei injusta deve ser desrespeitada. É desobediência civil”.
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