Entre uma superporca criada em laboratório e uma menina que ainda não conhece a maldade humana, nasce uma poderosa amizade.
A crueza delicada e a temática urgente de "Okja" fazem dele o filme do momento, que suscita uma série de reflexões fundamentais para discutir com as crianças.
“Um projeto de beleza”. É assim que o cineasta coreano Joon-Ho Bong (mesmo criador de “O Expresso do Amanhã”) define seu filme “Okja”, realizado pela Netflix e que acaba de estrear na plataforma.
Depois de uma estreia um tanto torta em Cannes – a exibição foi marcada por vaias do público francês à parceria com a marca e ao fato de o lançamento do filme ter desobedecido uma das regras do festival, segundo a qual uma produção não pode ser veiculada nos cinemas caso já esteja disponível na internet -, o fato é que o filme está vivo nas conversas de cinéfilos cults e fãs das produções originais da Netflix.
Capaz de cativar e assustar na mesma proporção, o filme conta a história de uma porca gigante chamada Okja, e sua amizade com a pequena Mikha (Seo-Hyun Ahn), uma menina órfã que vive com o avô em uma casinha isolada no meio das montanhas. Parando por aí, “Okja” poderia facilmente ser confundido com uma obra de Miyazaki, cheia de ternura e fantasia. Mas tem mais pontos de comparação com o cineasta japonês. Marcadamente político, o pano de fundo dessa amizade é uma engenhosa ação de marketing de uma poderosa corporação do agronegócio chamada Mirando.
Interpretada por Tilda Swinton, a empresária Lucy faz de tudo para que seus consumidores comprem a ideia de que Okja foi criada por um fazendeiro, em razão de um concurso para eleger o melhor superporco.
Porém, a porca na verdade é fruto de um experimento em laboratório que deu origem a milhares de aberrações genéticas que iriam diretamente para as bandejas de supermercado e, consequentemente, para a mesa das pessoas. O objetivo da empresa era induzir as pessoas a acreditar que essas criações seriam o futuro auto-sustentável da indústria de alimentos, e a solução para a futura escassez de carne no mundo.
Crítico sem ser panfletário e propositalmente caricato, o filme conversa com o consumidor comum, acostumado a adquirir alimentos sem questionar de onde eles vêm. É uma denúncia irônica à produção em massa e ao consumo passivo.
O filme é dono de uma delicadeza digno do cinema de arte, ao mesmo tempo em que transmite sua mensagem de forma clara e sem floreios. Apesar de não ser voltado diretamente para o público infantil, “Okja” se junta a uma série de filmes que transformam temas “de adulto” em assuntos de criança, ao narrar tudo do ponto de vista de uma menina. Assim, pode ser usado em sala de aula para abordar temas como indústria alimentícia, consumo massivo, direitos dos animais e muitos outros assuntos pertinentes ao desenvolvimento do espírito crítico.
Listamos cinco motivos para prestar atenção nessa produção e não deixá-la passar desapercebida.
Sem spoilers, dá para dizer que a menina é quem domina toda a situação. Tem gente até dizendo que ela é uma espécie de versão coreana da Dora Aventureira. Brincadeiras à parte, é ela quem luta o filme todo para salvar a pele de sua melhor amiga das mãos da empresa. Mikha é protagonista até mesmo em sua casa. Depois de perder os pais, ela vive com o avô, um senhor frágil que toma conta da casa. Com ajuda de Okja, que com um só mergulho consegue garantir dezenas de peixes para o jantar, ela sai à caça dos alimentos que a família consome, abre trilhas em meio às montanhas e guia um bicho três vezes maior do que ela pela mata fechada. Assim, o filme coloca a menina em um lugar de extremo respeito, e mostra a criança como um ser capaz, pleno de vontades e sujeito ativo da vida em comunidade.
Em um certo momento, o filme mostra o evento de lançamento do mais novo produto da marca Mirando, uma espécie de petisco de linguiça defumada. Ao som de alto-falantes comemorando a nova empreitada, o povo se acotovela na rua para garantir o produto, e acredita passivamente no discurso da marca. A cena reacende a reflexão sobre consumo consciente e a importância de questionar as empresas pela qualidade e procedência dos produtos que oferecem. A publicidade, aqui, é uma das maiores vilãs, responsável por maquiar a imagem da empresa a ponto de ela ser querida pelas pessoas.
Uma das cenas mais marcantes do filme (alerta de spoiler!) é o momento em que a menina entra no lugar onde os animais são abatidos e levados para corte. Sem filtros, o filme mostra cada detalhe de uma cruel linha de montagem, tudo para atrair o olhar do espectador para a real importância de saber o que verdadeiramente acontece por trás da imagem maquiada da produção de alimentos. Não se trata de deixar de consumir carne ou de fazer uma apologia ao veganismo como única solução viável, e sim de lançar um olhar crítico aos modos questionáveis de funcionamento da indústria alimentícia. A Netflix, conhecida por sua abordagem irreverente nas redes sociais, publicou um vídeo ironizando a reação das pessoas à crítica do filme: “Antes e Depois de Okja”. Assista:
O filme é uma fábula do crescimento, e, apesar do tema difícil, oferece uma narrativa de aventura com muita sensibilidade e um olhar delicado sobre o papel da fantasia no desenvolvimento da criança. Na história, a menina Mikha é a primeira a acreditar na versão da empresa de que a porquinha foi criada em uma fazenda, e vive feliz em seu conto de fadas particular, movido pela amizade que nutriu com a porca que acompanhou crescer. Quando descobre a farsa, ela reúne todas as suas forças para resgatar Okja.
Apesar de a história focar na relação da menina com a porca, há uma série de relações no filme que evidenciam como as relações humanas estão desgastadas e pautadas em ideais distorcidos. Em nome do lucro, de se autopromover ou garantir o poder nas mãos dos mais ricos, os personagens passam por cima uns dos outros e de seus próprios princípios. O personagem de Jake Gyllenhaal, por exemplo, é um caricato apresentador de TV, responsável por apresentar a competição de superporcos, a quem é dada a missão de extrair a carne de Okja de forma suspeita e mascarada, coisa que ele faz para manter o emprego, mesmo se autodeclarando um “amante dos animais”. No filme, outro núcleo protagonista é o da Frente de Libertação Animal, liderado pelo personagem interpretado por Paul Dano (de “Pequena Miss Sunshine” e “12 Anos de Escravidão”), que é traído por um de seus membros e tem suas ideologias e certezas no movimento questionadas a todo tempo.
“Okja” aborda de um jeito honesto e assertivo uma realidade atual preocupante, que suscita infindáveis discussões sobre o rumo do planeta, os direitos dos animais e a sociedade de consumo. Um filme para ser visto com dois olhos atentos a tudo o que ele comunica, e que pode encantar (e abismar!) adultos e crianças.
Comunicar erro