Uma simples caminhada pela cidade pode virar um aventura pelo olhar de crianças que transformam o que veem a apenas 95 cm do chão em possibilidades lúdicas
Ao acompanhar a aventura que é o trajeto de uma menina até a escola, o livro “Vou a pé” propõe reflexões sobre como as cidades precisam se adaptar para garantir a segurança e o brincar livre das crianças.
“O olhar da criança observa tudo o que está em volta. Desde um cachorro passando, uma pedrinha ou uma fruta caída”, conta Bianca Antunes, autora do livro “Vou a pé”. É por isso que, “se você anda com uma criança pela cidade, vai levar quase duas vezes mais tempo para fazer o mesmo trajeto do que se estivesse sozinho”.
Nos caminhos mais simples e corriqueiros, as crianças conseguem fazer grandes descobertas na mínima perspectiva onde a vista alcança. Seja até a esquina de casa para buscar pão ou avançar mais alguns metros para chegar à escola. É que elas enxergam a cidade mais do que os adultos, mesmo que achem o contrário.
“Andar com uma criança requer cuidado e atenção, mas, ao mesmo tempo, pode trazer inspiração. É que o olhar da criança para a cidade nos surpreende quando vão encontrando curiosidades e encantamento em espaços pouco pensados para a infância”, diz a ilustradora Luísa Amoroso. Foram as caminhadas diárias de casa até a escola com a filha Sofia, 3, que a inspiraram a criar as cenas de “Vou a pé”.
É a menina Sossô que nos conduz pela cidade, transformando paisagens urbanas em uma aventura lúdica. “A Sossô não brinca com brinquedos, mas com o que a cidade oferece. A criança enxerga a cidade como um espaço para aproveitar, mexendo onde dá e brincando com o que vê pela frente. Sempre explorando”, diz Antunes.
Mas, durante esse passeio, a personagem principal também levanta questões problematizadoras de “quem enxerga a 95 centímetros do chão”, comenta a autora. “Uma vez, a filha de uma amiga disse que nas ruas só enxergava pernas e bumbuns.”
Entre as cenas do que a menina achava mais interessante e o que tinha dificuldade de superar, a história passeia pela criatividade de Sossô. Ela faz um gradil virar ponto de partida para o voo, rachaduras no piso se transformarem em um jogo de equilíbrio e até um degrau mais alto ser visto como trampolim. Formas simples de brincar que a sisudez do adulto não enxerga mais.
A menina Sossô conduz os leitores por suas aventuras enquanto explora a cidade como um grande playground. É sob o olhar lúdico da criança que as páginas nos mostram o que a rua nos permite vivenciar em cidades amigas das crianças. Inspirado no livro, a editora também lançou um jogo da memória, que instiga os participantes a observarem os detalhes e surpresas da cidade em seus caminhos a pé.
A história de Sossô também traz a reflexão de como as cidades precisam incluir as crianças em suas paisagens. Para Laís Avelino, arquiteta urbanista e articuladora social do projeto Urbanizar, do Instituto Alana, “é importante que a criança se relacione com a cidade para entender como ela funciona e poder criar vínculos”.
Ela explica que o ponto de partida está no bairro, no trânsito e no ir e vir da escola ou da casa dos amiguinhos. Por isso, é preciso construir espaços que incluam o brincar livre, com segurança. “Proporcionar ambientes acolhedores e educativos nos trajetos das crianças ajuda a estabelecer uma relação de afeto com a cidade onde vivem.”
Recursos como ambientes arborizados, pavimentação adequada, sinalização de segurança e acessibilidade são exemplos de como pensar na criança e no seu direito de ocupar os espaços. “Quando incluímos as crianças no processo de construção da cidade, todos ganham. Isso porque uma cidade boa para elas é uma cidade inclusiva, segura e saudável para todos os seus moradores.”
O que é uma cidade acolhedora para a primeira infância?
Para as autoras, a segurança é a primeira questão a resolver nas cidades. Além da necessidade de manter espaços verdes com a natureza disponível para as crianças. Assim, segundo Antunes, o ambiente deixa de ser um lugar só de passagem e vira um lugar de convívio. “É preciso garantir um caminhar seguro, em que seja possível soltar as mãos das crianças para que elas possam encontrar pequenas surpresas.”
Já Amoroso destaca que a segurança também deve vir do trânsito de veículos e de condutores mais conscientes ao perceberem a presença de crianças nas ruas e calçadas. “Vias com velocidade mais baixa para os automóveis, travessias seguras e calçadas mais largas são cuidados que qualificam a experiência de todos os cidadãos.”
A partir da escuta ativa das crianças – da elaboração à construção do projeto -, uma intervenção na calçada de uma escola de bairro chamou a atenção de motoristas em São Paulo para reduzirem a velocidade. Foi assim que o projeto Prototype City, do Urbanizar, ganhou o 9° Prêmio Municipal de Educação em Direitos Humanos, por proporcionar um espaço de lazer e convivência entre as crianças e as famílias nos períodos de entrada e saída da escola. “Incluir as crianças foi fundamental para a preservação e apropriação do espaço pela comunidade”, lembra Avelino.
Para refletir sobre os desafios dos espaços urbanos para crianças pequenas e seus cuidadores, projetos e inovações possíveis, o Instituto dos Arquitetos do Brasil promove a roda de conversa “Espaços públicos e primeira infância”, com a presença das autoras do livro “Vou a pé” e Laís Avelino, do Instituto Alana. O evento acontece nesta segunda-feira, 21, às 19h, na sede do IAB, Rua Bento Freitas, 306, em São Paulo.