Crianças de Caraíva protestam contra o descaso na educação

Em um paraíso turístico, falta educação para as crianças: estudantes e famílias cobram finalização da construção de nova escola

Eduarda Ramos Camilla Hoshino Publicado em 16.09.2022
Ao centro da imagem, um grupo com diversas crianças posa para uma fotografia na cidade de Caraíva, sul da Bahia. Rabiscos e papéis compõem a imagem, fazendo uma moldura para a foto.
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Resumo

As escolas de Caraíva e região sofrem com a falta de estrutura. As crianças da vila, que tem aproximadamente mil habitantes, protestam por melhorias, e a educação segue negligenciada em prol do turismo.

Um vilarejo com ruas de areia, praias paradisíacas e que acolhe uma paisagem romântica de encontro do rio com o mar: Caraíva, no município de Porto Seguro, é um destino recorrente para os turistas que passam pelo extremo sul da Bahia, na chamada Costa do Descobrimento. Apesar disso, a beleza do lugar entra em choque com os problemas de atendimento à comunidade ribeirinha. Nesta terça-feira (13), estudantes da Escola Municipal de Caraíva protestavam com panelas e pandeiros, gritando no microfone: 

“Aparece prefeito, nós queremos estudar
Se você não vier, como vai ficar?”

A instituição, que atende a educação infantil, além dos ensinos fundamental I e II, foi demolida em junho após reivindicações da população devido ao estado precário no qual se encontrava. “A escola foi construída para aproximadamente 90 alunos; hoje, temos mais de 200, com a mesma estrutura. Tinha parte do telhado cedendo, ventilador que pegou fogo, morcego no forro do telhado, chovia nas salas, portas com cupim, a escola estava caindo aos pedaços”, relata Talita*, mãe de um dos alunos. Enquanto as obras aconteciam, as crianças foram realocadas em salas provisórias. 

 

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Parte das salas provisórias também enfrentava a mesma precariedade, a ponto de haver ratos na cozinha e de qualquer atividade ficar impossibilitada quando chovia, devido ao estado do telhado. Passado o prazo e ainda sem escola, estudantes e suas famílias se queixam da falta de salas de aula, que obriga os alunos a estudarem de forma remota, por meio de atividades on-line. As crianças não querem mais estudar remotamente, percebem o quanto é difícil, e muitas famílias não possuem internet, conta Talita. A única providência foi “colocar tapumes e derrubar o telhado [da escola]”, segundo informa o Portal Bahia Dia a Dia, “sempre com uma desculpa para não continuarem as obras”, relata Regina*, outra mãe da vila.

As negligências que vulnerabilizam as infâncias

Segundo o Portal da Transparência da Prefeitura de Porto Seguro, uma sociedade empresarial especializada em construção de escola de ensino fundamental foi contratada no distrito de Caraíva, por R$ 4.656.527,10 (iniciada em julho de 2022). Outra obra, não diretamente ligada à escola, é de manutenção de prédios e equipamentos públicos próprios ou alugados vinculados às secretarias do município de Porto Seguro, por R$ 5.053.498,04 (iniciada em outubro de 2021). A empresa responsável pelas duas ações é a FP Sousa Construções Eirelli.

“Tem a escola de Caraíva, da Aldeia Xandó, da Aldeia Barra Velha, da Nova Caraíva, todas elas estão muito precárias, com janela quebrada, dando choque. A Escola da Nova Caraíva não tem nem mesa para as crianças poderem almoçar” – Regina*, mãe de estudante.

Segundo Talita, a comunidade encontrou outro espaço para as salas provisórias, “mas lá a prefeitura disse que não poderia construir um banheiro, além de levar no mínimo 30 dias para construir”. O Portal Lunetas entrou em contato com a prefeitura de Porto Seguro, mas, até a publicação da matéria, não obteve respostas. A ouvidoria alegou prazo de 30 dias prorrogáveis para o retorno, segundo o artigo 16 da Lei 13.460/2017.

As negligências relacionadas à educação de Caraíva e região não se restringem aos protestos das crianças na última semana. Em setembro de 2009, os professores sindicalistas Álvaro Henrique Santos e Elisney Pereira Santos foram assassinados em uma emboscada em Porto Seguro, acontecimento que marcou a reivindicação de direitos na educação no sul da Bahia e que deixou uma nuvem de medo e ameaças para quem denunciar a situação da vila – realidade muitas vezes distante dos olhos do turismo. 

Protagonismo infantil

Para que as reivindicações por melhorias na escola acontecessem, toda a comunidade se mobilizou. Além das reuniões feitas por moradores para que Caraíva parasse e dos pedidos das crianças para que os comércios fechassem para apoiar as demandas, indígenas canoeiros restringiram o acesso à vila, que é majoritariamente realizado por barco, numa travessia de 200 metros; o acesso via carro é possível apenas pelo sul. Outra demanda do protesto, desta vez endereçada ao Estado, é a da implementação do ensino médio, pois os adolescentes da vila precisam viajar de barco diariamente ou se mudam para o outro lado do rio para seguirem os estudos.

“Tem gente que pergunta se [o protesto] foi ensaiado com as crianças, mas tudo partiu delas. Elas tiveram a ideia, colocaram em prática, criaram as músicas e estão cobrando o que é delas por direito”, conta Regina. “O posicionamento deles foi bem legal, as crianças estão aprendendo que é direito delas e que é um dever cobrar”, arremata. Já Solange*, outra mãe que vive em Caraíva, aponta que “sempre dialogam com as crianças sobre o que temos vivenciado, e a todo momento, tentamos trazer a importância de protagonizar a própria história”.

“As crianças e adolescentes estão protestando porque estão cansados. Eles têm direitos e têm consciência de que eles estão sendo negados” – Talita, mãe de estudante.

 

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O turismo que deixa marcas

Diante da ameaça da população de fechar a vila na época de carnaval, a prefeitura agiu rapidamente para tentar atender às demandas locais, já que o turismo na região é intenso em fevereiro e março. Porém, o descaso se manteve: as crianças seriam realocadas após 30 de agosto, mas o proprietário falou que “não iria mais [disponibilizar o espaço], porque tava na boca do verão. E a galera ganha muito dinheiro no verão. Esse foi o gatilho final para as crianças se mobilizarem de forma mais forte”, diz Talita. Em Caraíva, o turismo predatório é um fator que, há anos, mobiliza os moradores. Além do mal gerenciamento do lixo em território cercado por mata atlântica, existe uma constante disputa entre os interesses comerciais e da população local, que reclama que o crescimento da região não é acompanhado por estrutura. 

“Não somente o turismo de massa é predatório, mas todas as práticas turísticas que geram impactos negativos ambientais, culturais, especulação imobiliária, trabalhos precários e mudança de modelos de vida”, afirma o consultor em turismo Yure Lobo. Apesar disso, segundo ele, o que pode reverter esse cenário é a capacidade local de articulação para reivindicação de direitos, compreendendo a própria região e o modelo de desenvolvimento que se deseja.   

O Brazil tá matando o Brasil – Aldir Blanc e Maurício Tapajós

Esse cenário não atinge apenas Caraíva, mas boa parte do litoral baiano. Em Portal Seguro, o estudo “Turismo predatório e (in)sustentabilidade social”, realizado em 2016, pelo doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, Antônio Mateus Soares, apresenta os conflitos que chegaram à cidade com o crescimento dos fluxos financeiros e a ampliação das receitas da prefeitura ligadas ao turismo. “O turismo predatório é […] expresso através de exploração sexual, aventuras eróticas com adolescentes e jovens, consumo delirante e tráfico de drogas ilícitas, o que repercute na ampliação dos índices de criminalidade e a montagem de um conjunto de teias de ilegalismos”, denuncia a pesquisa.

Em 2021, a história de Nayra Gatti, 14, encontrada morta em Caraíva com marcas de estrangulamento, repercutiu na mídia. Desde 2019, após casos de assédio e violência sexual na vila, um grupo de mulheres criou o coletivo “Caraíva sem assédio”, com o objetivo de acolher vítimas e fortalecer a rede de proteção à comunidade. 

As demandas dos alunos de Caraíva e região revelam um passado e um presente marcados pela violência e negligência estatal. O rastro de assédios e estupros associados ao turismo predatório ronda o local, além da repressão sofrida por quem vive Caraíva no dia a dia, sem ser turista.

Os nomes marcados com * foram alterados para preservar a identidade das fontes.

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