Acidente ocorre nos rios da região e as principais vítimas são meninas e mulheres
O escalpelamento é um acidente que ocorre quando os cabelos, principalmente de meninas e mulheres, são fisgados pelo eixo do motor de embarcações. Conheça histórias de ribeirinhas vítimas de escalpelamento e como lidam com os impactos à saúde física e emocional.
Desde pequena, Vanessa, 9, nada no Rio Aramã, que passa na frente da sua casa, e sempre “escapole” para tomar banho no rio, conta a mãe, Rosiane Monteiro. Foi da relação com as águas que vieram também marcas com as quais a menina está aprendendo a conviver: ela é vítima de escalpelamento, acidente que acontece quando os cabelos de uma pessoa são fisgados e enrolados pelo eixo do motor das embarcações, arrancando o escalpo (couro cabeludo) e, muitas vezes, a orelha e partes do rosto.
O acidente é bastante comum em regiões ribeirinhas da Amazônia, onde o rio está muito presente no dia a dia das pessoas e barcos são o principal meio de transporte das famílias. No dia do acidente, há três anos, Vanessa estava com seu pai, a irmã mais velha e o irmão caçula no barco da família. Ela foi tirar água do barco quando tudo aconteceu. “A necessidade de se abaixar para tirar a água que vai entrando no barco é uma das causas mais comuns do acidente. Como muitas vezes meninas e mulheres assumem essa função, isso contribui para o fato de serem elas as principais vítimas”, explica a assistente social Luzia Matos, coordenadora do Espaço Acolher, da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará.
Além dos cabelos compridos de meninas e mulheres as exporem mais a esse tipo de situação, as crianças também ficam mais vulneráveis em qualquer momento de desatenção. “As crianças às vezes ficam andando para lá e para cá. Imagina uma família com cinco filhos pequenos… Nesse vai e vem, muitos escorregam. E aí acontecem os acidentes”, descreve Luzia.
O escalpelamento começou a ocorrer na região por volta das décadas de 1960 e 1970, quando os barcos à vela e a remo passaram a ser substituídos por barcos com motor. Apesar das viagens terem ficado mais rápidas, o risco de acidente aumentou, porque esse motor muitas vezes fica totalmente descoberto.
A família de Vanessa mora numa comunidade que fica a oito horas de barco do município de Anajás, na Ilha do Marajó, no Pará. Para chegar em Belém, a viagem dura dois dias, e só dá para ir pelo rio. Mas todas as vítimas precisam se deslocar para a capital, onde fica a Santa Casa de Misericórdia, referência no tratamento das vítimas de escalpelamento. Quem vem do interior do Estado, pode se hospedar no Espaço Acolher, uma casa vinculada ao hospital que, desde 2008, oferece atendimento multiprofissional às vítimas, incluindo serviço social, psicologia e pedagogia. É lá que estão hospedadas Vanessa e sua mãe.
“Para mim, o mais difícil foi deixar a minha casa, meus filhos. Nunca tinha acontecido isso. Mas o que mais importa é a vida dela”, relata a mãe sobre as dificuldades enfrentadas durante o período de tratamento de Vanessa.
O escalpelamento deixa sequelas permanentes, que vão além da aparência. Após o acidente, em geral, as pacientes passam por diversas cirurgias, como intervenções plásticas e reparadoras. Em casos de escalpelamento parcial (quando parte do couro cabeludo é arrancado), é possível fazer um procedimento chamado expansão, que pode aumentar o tecido capilar e permitir o crescimento de cabelo na área afetada, informa o cirurgião plástico da Santa Casa, Dr. Vitor Aita. Porém, em casos de escalpelamento total (quando é arrancado integralmente), não é possível reverter. Por isso, muitas meninas e mulheres passam a usar perucas após o acidente.
“A cobertura colocada com enxerto de pele não corresponde ao couro cabeludo, que protege a cabeça da radiação solar. Esse enxerto parcial também não tem a resistência da pele e algumas pacientes podem perder a sensibilidade nesta área, fazendo com que algumas lesões (bolhas, ferimentos) passem despercebidas, podendo evoluir para um quadro pior”, esclarece. Ele explica ainda que o trauma sofrido com o baque da cabeça pode ocasionar danos neurológicos e até afetar parte do osso da caixa craniana.
A violência do acidente deixa marcas na aparência física que interferem também na autoestima das vítimas, que ainda precisam lidar com o preconceito. A psicóloga Lilian Godinho, também da Santa Casa, explica que, em geral, “as crianças conseguem redimensionar essa dor e transformam a enfermaria numa brincadeira. Quem se impacta mais acaba sendo a família”, comenta. Porém, os casos de bullying existem quando as meninas voltam para seus locais de origem, sendo comum meninas terem vergonha de voltar para a escola, relata Luzia.
Entre os impactos posteriores ao acidente, “a mudança drástica que uma criança vivencia quando é retirada do seu ambiente de origem e de repente está confinada dentro de um hospital, submetida a intervenções médicas dolorosas, pode gerar estresse e oscilações de humor”, detalha a psicóloga Lilian. “Isso quebra toda a rotina da criança e traz muito sofrimento. Elas querem voltar para casa”, conta. Ela relata que algumas meninas não aderem ao tratamento, se recusam a tomar a medicação e rejeitam a alimentação. Rosiane confirma que ““qualquer coisa que a Vanessa não gosta, deixa ela estressada”.
Campanhas de conscientização e prevenção ao escalpelamento, como a da Marinha do Brasil, e ações paralelas da Comissão Estadual de Erradicação dos Acidentes com Escalpelamento, que recomendam formas de evitar esse tipo de acidente nos rios da Amazônia, como prender os cabelos e colocar um boné antes de entrar numa embarcação, ajudam a reduzir o número de casos, informa Luzia Matos.
Mas a principal orientação das autoridades para a população ribeirinha é proteger os motores dos barcos. Por meio da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental, é disponibilizada e instalada gratuitamente uma proteção para o eixo do motor nos barcos. Contudo, muitos ribeirinhos retiram essa cobertura para guardá-la, por medo de serem roubados. Como a proteção é toda parafusada, dificulta para instalar e desinstalar todos os dias.
Vanessa, por exemplo, nunca tinha ouvido falar sobre escalpelamento e não imaginava o risco que o seu principal meio de transporte poderia representar. “Eu não sabia que existia esse tipo de acidente. No nosso interior nunca tinha acontecido. O primeiro que eu vi foi com a minha filha”, relata Rosiane. Hoje, consciente dessa realidade, ela busca sensibilizar a sua comunidade. “Eu já falei isso lá no nosso meio: não queiram passar o que eu passei, porque não é fácil. Se tiver aquela proteção, não acontece esse acidente”, alerta.
“Ninguém tem barco inapropriado porque quer, os barcos são do jeito que são porque eles não têm como ter um barco melhor”, denuncia Luzia. Além de defender políticas públicas direcionadas ao enfrentamento do acidente e que garantam melhores condições para as famílias ribeirinhas, a assistente social comenta que a doação de cabelos para a produção de perucas é uma atitude prática que está ao alcance de qualquer pessoa que queira contribuir com a causa.
Luzia também convida a combater a intolerância e a discriminação. “É uma questão da empatia, você se enxergar dentro desse contexto amazônico e perceber as nossas limitações. É preciso se livrar dos preconceitos, porque as pessoas já falam assim: ‘por que essa infeliz não prendeu o cabelo?’ ‘Por que esse pai não botou a proteção? Ele é culpado!’. Mas você não conhece a realidade dessas pessoas, não sabe sobre suas dificuldades, até para prover as coisas mais básicas”.
Antes de voltar definitivamente para casa, três anos após o ocorrido, Vanessa aguarda pela terceira e última cirurgia: um procedimento no seu olho esquerdo, que foi afetado pelo acidente. “Da feita que ela ficar boa, aí já esfrio minha cabeça”, espera Rosiane.
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Realizado em convênio com a Secretaria de Estado de Educação, o Programa Classe Hospitalar, presente em unidades de saúde da rede pública estadual do Pará, reúne profissionais da área para garantir que crianças e jovens deem continuidade aos estudos enquanto realizam tratamento de saúde longe do seu domicílio. No Espaço Acolher, duas pedagogas e três professores acompanham crianças e jovens vítimas de escalpelamento. Aliás, para receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), crianças e adolescentes não podem estar fora da escola. Para mulheres adultas, ligadas a alguma entidade associativa (colônia de pescadores, por exemplo), o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) garante auxílio por incapacidade temporária.