Com o agravamento da pandemia e as escolas fechadas, crianças que vivem em ocupações de Belo Horizonte são desafiadas a criar novos espaços de brincadeira
Com escolas fechadas, crianças em situação de vulnerabilidade social sofrem também com a falta de oportunidades para o livre brincar. Conversamos com famílias de uma ocupação em BH para entender como está a prática do brincar nesses espaços.
O aumento do desemprego e o acirramento da pandemia fizeram com que o ano de 2020, em Belo Horizonte (MG), fechasse com recorde de moradores vivendo em ocupações urbanas: foram 100 mil residentes em 34 mil domicílios em prédios vazios ou terrenos abandonados. Este é o maior número registrado desde 2008 (sendo que a prefeitura municipal passou a monitorá-lo a partir de 2016).
Em meio a estas famílias, há inúmeras crianças que crescem num contexto social de luta e resistência. Se antes da pandemia as escolas eram praticamente o único espaço de lazer para esses meninos e meninas, agora eles precisam recriar o lugar onde vivem de forma lúdica e criativa para resguardar as suas infâncias.
Afinal, vamos brincar de que diante de uma pandemia que agravou a fome e deixou famílias ainda mais vulneráveis? Vamos brincar de que quando as crianças mais velhas muitas vezes precisam cuidar de seus irmãos menores? Vamos brincar de que quando passamos o dia todo dentro de uma casa com poucos cômodos?
Tentamos buscar respostas e reflexões com adultos e crianças da Ocupação Dandara, onde vivem 2 mil famílias. Situada na região da Pampulha em Belo Horizonte, numa área de 40 hectares, a ocupação constitui-se em um dos maiores conflitos sociais de moradia do Estado de Minas Gerais. Com o nome da esposa de Zumbi dos Palmares, em homenagem à importância das mulheres negras nas construções coletivas, Dandara completou, no último dia 9 de abril, 12 anos de muitas lutas, conseguindo na justiça a legitimidade para fazer uso do terreno.
Sessão de filme com pipoca e chá. Esconde-esconde de um objeto e quem achar é o próximo a esconder. Capoeira, queimada, rouba-bandeira, bicicleta, pula-corda… As ruas das ocupações urbanas acabam virando extensões das casas.
Quando as escolas permanecem fechadas e os pais precisam trabalhar, um novo arranjo se faz necessário no cuidado das crianças. Primos se reúnem em uma única casa, irmãos mais velhos cuidam dos menores. Apesar da responsabilidade que estas crianças precisam assumir desde cedo, tal cuidado vem também de forma lúdica: meninos e meninas podem se divertir em paralelo a tarefas mais sérias.
Para a economista e doutoranda em Educação e Inclusão Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Luciana Bizzotto, não se pode homogeneizar as infâncias dentro das ocupações urbanas, pois existem formas diferentes de vivenciar o brincar nestes espaços. Segundo ela, é possível zelar pelo brincar livre mesmo em uma situação tão adversa, pois a criança ressignifica tudo ao seu redor fazendo com que a brincadeira continue dentro das mais diversas formas culturais, sociais e econômicas. “Observamos que as crianças que vivem em ocupações urbanas e aquelas que passam por adversidades ainda maiores ressignificam o espaço, os objetos e as relações que estabelecem na ocupação, conseguindo manter a sua linguagem própria do brincar”, explica.
“A brincadeira permanece mesmo em um contexto que coloca as crianças em situação de vulnerabilidade, por ser uma forma natural de se expressarem e elaborar questões”
Quando questionadas sobre o que elas mais gostam de brincar, as crianças respondem de acordo com seu cotidiano, espaços e território. Nas ocupações, as formas de brincar podem partir das próprias vivências como, por exemplo, o maior contato com a natureza no terreno onde vivem: brincar com terra, água, córregos, montes de areia e resíduos de materiais de construções. Ao mesmo tempo, são lugares onde as políticas públicas não chegam, falta infraestrutura básica e raramente há espaços de lazer para as crianças.
Transformar o espaço de moradia em brincadeira é um desafio para qualquer família durante a pandemia. Nas ocupações, crianças podem ter uma possibilidade maior de circulação e socialização, pois a vida em comunidade permite uma vigília coletiva dos pequenos.
Além disso, muitas crianças já crescem conscientes da luta, resistência e responsabilidades que o local exige. Quantas não participaram da montagem de suas próprias barracas de lona no início da ocupação? Da construção das próprias casas para ajudar suas mães?
“Gosto de andar de bicicleta com os meus amigos e brincar de casinha. Às vezes, a gente finge que a mãe ou o pai morreu e os irmãos acabam cuidando uns dos outros”
“Gosto de brincar de pentear o cabelo da minha mãe e de cavalinho com os meus irmãos”
Como muitas mães, a cabeleireira Fernanda Martins, que tem três filhos, sentiu-se sufocada com a pandemia. Até então, a casa era onde as crianças praticamente só iam para dormir. Com o fechamento das escolas, Fernanda sentiu pesar a questão da alimentação e do entretenimento dos pequenos.
Precisou inventar algo: com a ajuda de vizinhos e professores voluntários, passou a transmitir aulas on-line de capoeira e percussão por meio de uma televisão, colocada na traseira de uma Kombi, que ficava estacionada em um lote vago da ocupação. A atividade reúne até 32 crianças em encontros semanais e com lanche coletivo, sendo um momento de refúgio para os pequenos e de alívio para os pais.
Enquanto muitas organizações e coletivos se preocupam em entregar cestas básicas às populações em vulnerabilidade social durante a pandemia, o Coletivo Geral Infâncias propõe também levar o brincar para as ocupações.
O grupo foi criado em 2018 por estudantes do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFMG e busca promover momentos de escuta e troca entre adultos e crianças, para pensar as múltiplas infâncias que habitam o espaço urbano e suas fronteiras. Com a pandemia, perceberam a necessidade de mobilizar ações emergenciais em solidariedade a famílias que enfrentam o acirramento perverso das desigualdades. Foi assim que se aproximaram das ocupações Rosa Leão e Dandara, ambas em BH.
O coletivo começou a distribuir kits para as crianças, com cadernos, folhas coloridas, lápis de cor, giz de cera, tinta, massinha e alguns brinquedos (corda, quebra-cabeça, jogo de memória, pega-vareta, ioiô, bolha de sabão, bambolê, entre outros), priorizando o brincar com o corpo e com o espaço. No início, havia até um grupo no WhatsApp com famílias que queriam continuar brincando. O canal de comunicação direta servia para compartilhar fotos e vídeos das crianças e suas brincadeiras.
“Algumas famílias enviaram fotografias, vídeos, artes com massinha e desenhos produzidos pelas crianças. Outras mães partilharam dicas de locais abertos próximos à ocupação para levar os filhos para um piquenique e para manter contato com a natureza”, conta Luciana Bizzotto, que também é integrante do coletivo.
Mas o presencial era o mais necessário no momento, uma vez que nem todo mundo tem acesso à internet ou a um celular. Porém, com o agravamento da pandemia, a ida dos voluntários às ocupações diminuiu significativamente. As aulas na Kombi precisam urgentemente de um notebook e projetor para a transmissão, de modo a evitar a aglomeração e manter praticamente a única atividade destinada às crianças na Ocupação Dandara.
“A dinâmica das atividades nas ocupações se dá por meio da presença. Como a pandemia persiste, este tem sido nosso maior desafio”, ressalta Luciana.
“Vemos também um desgaste generalizado nas comunidades, que estão sobrecarregadas pelas demandas na busca por direitos básicos, em especial após a redução drástica de doações que vivemos em 2021 e com o fim do auxílio emergencial”, conta a especialista, que busca apoio e doações para o coletivo continuar o trabalho.
Com o agravamento da fome e do desemprego e a permanência de escolas fechadas, as famílias das ocupações e poucas iniciativas como o Coletivo Geral Infâncias lutam pelo brincar nas ocupações urbanas como um direito ao desenvolvimento pleno das crianças, de diálogo e trocas, de promoção da vida, de acolhimento e criatividade. Enfim, o brincar como forma de proteger e cuidar de meninos e meninas em todos os seus contextos.
“Quando as crianças brincam e eu as ouço brincar, qualquer coisa em minha alma começa a se alegrar” – Fernando Pessoa
O “Brincar na Rosa Leão” é um microdocumentário de dois minutos que pretende dar visibilidade às infâncias da Ocupação Rosa Leão, a partir dos olhares das próprias crianças e adolescentes neste contexto de pandemia. A Ocupação Rosa Leão surgiu em 2013 e é uma das mais recentes de Belo Horizonte, com cerca de 7 mil moradores. O documentário foi produzido pelo Coletivo Geral Infâncias, em parceria com a Bendita Conteúdo e Imagem.
“Ao brincarmos, as noções de singeleza, de sonhos, de imaginação, de liberdade e protagonismo se mostraram espontaneamente presentes neste território rico de infâncias” – Coletivo Geral Infâncias
“Daqui não saio. Daqui ninguém me tira. Daqui não saio. Daqui ninguém me tira. Onde é que eu vou morar? Se eu não tenho paciência de esperar. Ainda mais com sete filhos, onde é que eu vou morar?”
(Adaptação da marchinha de carnaval “Daqui não saio”, transformada em grito de guerra pelas mães da ocupação)