Coletivo dá assistência a mães que sofreram violência obstétrica

O Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, de São Paulo, presta assistência jurídica a mães que vivenciam violência obstétrica ou processos traumáticos no parto

Renata Penzani Publicado em 21.12.2017
Close em preto e branco mostra o rosto de uma mãe deitada em uma maca, beijando a cabeça de seu bebê recém-nascido.

Resumo

Quando o assunto é assistência obstétrica no Brasil, temos muito que caminhar: muitas denúncias de abuso médico ainda não são feitas, muitas violências não são reconhecidas e o tema continua desconhecido para os próprios advogados.

Cintia está no sétimo mês de gestação. Em seu último ultrassom, ouviu do médico que a posição do bebê impossibilitaria o parto normal que ela escolhera. Na terceira pergunta sobre o porquê isso acontece, ela foi questionada pelo profissional: “você não confia em mim?”. Enquanto isso, Giovana espera três horas em uma sala fria e asséptica para ter seu bebê no colo, após dar à luz em um processo doloroso e desconhecido. Após a décima segunda hora de trabalho de parto, Helena é tomada pela ansiedade e começa a chorar, em posição de cócoras, apoiada na cama do hospital; ao ver a cena, a médica diz “nem toda mulher tem força para um parto normal, eu avisei”.

As identidades acima são fictícias, mas histórias como essas se repetem todos os dias dentro dos hospitais – além de outras milhares vivenciadas em outras situações, também por mulheres. Percebê-las como violência obstétrica ou como procedimentos hospitalares ‘de praxe’ depende de uma série de fatores, a começar pela própria possibilidade de acesso ao conhecimento sobre atendimento humanizado; porém, não se pode desconsiderar o fato de que diariamente centenas de mulheres têm suas escolhas individuais postas de lado em nome de interesses do sistema de saúde.

Para a pesquisadora Ibone Olza, a violência obstétrica manifesta os mesmos sintomas de um estupro: ou seja, violência não consentida até o limite da dor, e traumas psicológicos e emocionais. Para ela, mulheres que passaram por experiências traumáticas no parto se sentem forçadas a consentir procedimentos invasivos e dolorosos, cujas consequências não foram informadas.

Para apoiar as mulheres nessa questão, o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, de São Paulo, presta assistência jurídica a mães que vivenciam violência obstétrica processos traumáticos no parto.

O projeto teve início em 2017, por inciativa das advogadas Letícia Vella e Fernanda Nunes.

O serviço oferece atendimentos individuais, considerando a necessidade de uma formação estratégica em temas envolvendo gênero e saúde. “Buscamos a construção de um novo olhar para o Direito: mais empático, sensível e aberto para as questões de gênero”, explica Letícia.

Um post publicado em agosto deste ano na página do Coletivo anunciando o serviço reforça a urgência do tema e a necessidade das mulheres. Foram mais de 1.700 reações.

O Coletivo agora tem atendimento jurídico através das nossas advogadas parceiras!

Posted by Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde on Wednesday, August 30, 2017

Sua parceira na iniciativa, Fernanda esclarece como a assistência funciona na prática, e conta que o projeto tem como um de seus principais objetivos facilitar a ponte entre a mulher violentada e a justiça.

“Nosso esforço vai no sentido de simplificar a linguagem rebuscada e antiquada comumente associada ao Direito, fazendo com que as mulheres se apropriem das ferramentas jurídicas

Para orientar mulheres que precisam de uma assessoria como esta e encorajá-las a buscar sim apoio especializado, conversamos com as idealizadoras do projeto.

  • Quais são os pré-requisitos para participar?

Letícia – “Não há nenhum pré-requisito para que a mulher possa ter acesso a esses serviços. Nosso atendimento consiste em um primeiro momento de escuta e, depois, o caso jurídico é estudado de forma aprofundada e todas as possibilidades de atuação jurídica são apresentadas em linguagem acessível.

O objetivo final do atendimento é fazer com que as mulheres tomem conhecimento de todos os instrumentos jurídicos que podem ser utilizados para proteção de seus direitos e possam realizar uma decisão informada acerca de qual o melhor caminho a se seguir, de acordo com seus desejos e necessidades.”

  • Violência obstétrica, aborto, parto humanizado. Em quais outras condições vocês atuam?

Fernanda – “Em realidade, o atendimento jurídico desenvolvido não é focado em apenas uma área de atuação. A ideia principal é atender as mulheres em todas as áreas do direito, sempre trazendo um viés mais acolhedor e um olhar específico para as questões de gênero que cercam as situações vividas por todas as mulheres. Isso do ponto de vista individual.

Porém, quando pensamos em uma atuação mais estratégica (que envolve, por exemplo, o acompanhamento em possíveis ações judiciais, como a ação que trata da descriminalização do aborto no Supremo Tribunal Federal – ADPF 442) temas como aborto, parto humanizado, violência obstétrica, violência doméstica e outros que relacionam saúde e gênero são priorizados.

Buscamos, com essa atuação, fazer com que seja levado em consideração o conhecimento de todas as profissionais que atuam no Coletivo, visando sempre a construção de um conhecimento interdisciplinar.”

  • O que define um atendimento humanizado?

Letícia – “O ensino tradicional do Direito geralmente é pautado por estudos abstratos, teóricos e distanciados de problemas sociais do concretos. Essa estrutura faz com que, muitas vezes, atendimentos jurídicos sejam conhecidos por serem impessoais e hierarquizados (a pessoa fala o seu problema e o advogado dá a solução). Entretanto, esse modelo se mostra ineficaz e insensível para lidar com realidades que envolvam afetos, relações de desigualdade e opressões.

“Acreditamos que um atendimento humanizado é aquele que conta com profissionais que exerçam uma escuta atenta das mulheres atendidas, tendo como principal base a empatia e a autoridade compartilhada”

Para isso, é essencial o cuidado com a linguagem, tornando o conhecimento jurídico mais acessível.

Além disso, entendemos que as profissionais devam ter um olhar mais amplo, enxergando a mulher como um todo em suas relações e subjetividades. Aqui, ressaltamos a importância de atuar sempre em rede, ativando os diversos serviços necessários para atender a mulher de forma completa.”

  • Como você vê os demais atendimentos jurídicos disponíveis para a mulher? A Defensoria Pública, por exemplo?

Fernanda – “Talvez como um reflexo da pouca formação em gênero e direitos das mulheres ao longo dos cursos de direito, atualmente não existem tantos serviços especializados nesse tipo de atendimento jurídico como deveriam.

Porém, isso não quer dizer que iniciativas de resistência não estejam sendo realizadas. É claro que temos bons exemplos de atuação no mundo jurídico, como o trabalho desenvolvido pela Defensoria Pública, por meio do Núcleo de Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM); a presença de algumas advogadas em Centros de Defesa e Cidadania da Mulher (CDCM) e, até mesmo, o trabalho de muitas outras profissionais autônomas que procuram ter um foco específico no tema.

Image

Leticia Amaral

Sororidade: o Coletivo mulheres advogadas para prestar atendimento jurídico humanizado. Na foto, mulheres reunidas durante o ato POR TODAS ELAS, no Vão Livre do Masp.

Reconhecemos a importância e necessidade de todas as iniciativas que buscam, em alguma medida, fazer com os instrumentos jurídicos sejam utilizados para a proteção dos direitos das mulheres. São todas formas de atuação que devem ser valorizadas e compreendidas como peças chaves na ampliação da rede de atendimento às mulheres em suas demandas.

A necessidade de acolhimento e atendimento especializado, não só no Direito, mas na criação de uma série de serviços e instituições pertencentes a diferentes setores de atuação na sociedade, é essencial para a garantia de nossos direitos e compreensão e solução de nossas demandas em toda a sua complexidade, utilizando-se de um olhar para o todo, de forma interdisciplinar.”

“As demandas de mulheres voltadas para a reparação de violações de seus direitos têm sido cada vez mais frequentes”

  • Qual sua opinião como advogada sobre a importância de tornar acessível o respaldo jurídico em caso de violência obstétrica?

Letícia – “Motivadas pelo acesso à informação, algumas mulheres passaram a desmistificar muitas das verdades que temos em relação à maternidade. O que aprendemos na nossa formação de que as mulheres têm seus direitos suspensos pelo fato de serem futuras mães, passou a ser questionado para dar lugar à necessidade de respeito aos direitos reprodutivos femininos.

Como consequência, as demandas de mulheres voltadas para a reparação de violações de seus direitos durante trabalho de parto, parto e pós-parto imediato têm sido cada vez mais frequentes. Mas um maior número de casos relatados não significa que não temos muito mais o que caminhar: muitas denúncias ainda não são realizadas, muitas violências não são reconhecidas e o tema é desconhecido por muitos profissionais do Direito.

Image

iStock

Demandas de mulheres voltadas para a reparação de violações de seus direitos durante trabalho de parto, parto e pós-parto imediato têm sido cada vez mais

Por conta disso, a importância de se oferecer um atendimento jurídico que também pense o enfrentamento da violência obstétrica possui dois papéis bastante relevantes: a expansão do acesso à informação, de forma que as mulheres sejam capazes de fazer escolhas conscientes e informadas sobre o seu parto, bem como deixem de naturalizar intervenções injustificadas, que incluem desde maus tratos verbais até o frontal descumprimento de leis, como a do Acompanhante; bem como garantir que as mulheres que desejam tomar as providências necessárias para reparação de seus direitos violados tenham acesso a um atendimento especializado e sensível em relação ao tema.

Mas não somente isso. A ideia de garantir a existência de um respaldo jurídico sobre o tema possui um papel estratégico no enfrentamento da violência obstétrica: dar visibilidade para o conceito e construir um entendimento nos meios jurídicos (juízes e legisladores) que reconheça a autonomia da mulher no processo pré-parto, parto e pós-parto, bem como a necessidade de enfrentamento à violência obstétrica.”

“A ideia de garantir a existência de um respaldo jurídico sobre o tema possui um papel estratégico no enfrentamento da violência obstétrica”

  • Há iniciativas semelhantes a essa para compartilhar como inspiração?

Fernanda – “Ressignificar as estruturas do Direito, pensando em gênero e desigualdades, é uma tarefa difícil, mas sem dúvida existem iniciativas que nos inspiram e nos apoiam sempre. Nós participamos da criação do Grupo de Empoderamento Feminino (GEF), um grupo de mulheres, estudantes de Direito da USP, que se uniram para enfrentar a questão da violência doméstica, a partir de formações teóricas a atuações práticas. O grupo teve um papel importantíssimo em nossa formação e nos fez criar uma rede de estudantes e profissionais feministas extremamente qualificadas e empenhadas no combate à violência de gênero.

Podemos citar também o trabalho desenvolvido pelo projeto Maria, Marias promovido pela União de Mulheres de São Paulo em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Sob a coordenação de Amelinha Teles, o projeto tem como principal objetivo construir redes entre profissionais que trabalham com vítimas de violência doméstica, organizações de mulheres e aparelhos especializados no atendimento de mulheres. Busca-se a capacitação e da troca de experiências, espera-se que as participantes possam ser não só agentes multiplicadoras dos instrumentos protetivos da Lei Maria da Penha, mas também peças-chave para a sua implementação.”

Para saber mais sobre a assistência jurídica e ficar por dentro das atividades do Coletivo Feminista e Sexualidade, acompanhe a página no Facebook ou acesse o site da iniciativa.

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS