Aumento da violência nas escolas e condições precárias de trabalho são os principais motivos relacionados aos transtornos mentais e afastamento de docentes
Para a professora e doutora Andressa Garcia, as saídas para este cenário passam pelo reconhecimento desses transtornos e pela construção de políticas públicas voltadas ao tema.
Quando falar sobre os usos e efeitos de remédios como Fluoxetina, Amitriptilina e Venlafaxina – fármacos da classe dos antidepressivos – começam a substituir os assuntos políticos na sala dos professores, algo, definitivamente, não vai bem. Nos últimos anos, dados nacionais e internacionais têm indicado um aumento nos casos de violência nas escolas e condições de trabalho precárias, fatores que impactaram diretamente a saúde mental dos professores e que integram um cenário de desvalorização da educação no Brasil.
Não é por falta de indicadores que o tema chama a atenção. De acordo com uma pesquisa realizada pelo site Nova Escola, com aproximadamente cinco mil docentes, 60% se queixam de sintomas de ansiedade, estresse e dores de cabeça, e 66% já sofreram com fraqueza, incapacidade ou medo de ir trabalhar. Dos entrevistados, 87% acreditam que os problemas de saúde são decorrentes ou intensificados pela profissão.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) também aponta que 71% dos 762 profissionais de educação da rede pública de várias regiões do país, entrevistados no início de 2017, ficaram afastados da escola após episódios que desencadearam problemas psicológicos e psiquiátricos nos últimos cinco anos.
A maior incidência está nos casos de estresse provocado por situações de insegurança, com 501 ocorrências (65,7%), seguida pela depressão (53,7%). Segundo os dados da CNTE, há pouco tempo, a perda de voz era a campeã entre as doenças que afastavam professores, mas fatores como deterioração das condições de trabalho e agressividade dos alunos alteraram esse ranking.
A professora de História da rede pública municipal de Curitiba (PR), Andressa Garcia, tem sentido os impactos dessa mudança a partir das conversas com indicações de psiquiatras e psicólogos pelos corredores da escola. “É triste ver colegas sendo afastados”, lamenta. Ela relaciona os casos de adoecimento à falta de perspectiva profissional, como, por exemplo, a retirada dos planos de carreira em 2017 pela gestão municipal.
Outra pesquisa sobre o assunto feita pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), em 2017, revelou que 51% dos professores da rede estadual já sofreram algum tipo de violência, percentual acima dos 44% registrado três anos antes.
Na opinião da professora Andressa Garcia, doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), esses levantamentos condizem com a propagação de um sentimento de ódio ao funcionalismo público, especialmente aos docentes. A luta por melhores condições de trabalho e contra retirada de direitos conquistados nas últimas décadas, que inclui a crítica direta à Reforma da Previdência, por exemplo, tem sido um fator polêmico que associa professores em geral ao campo progressista.
“Mas é preciso entender que quando nos organizamos para conquistar direitos, estamos lutando por melhores condições não apenas para professores, mas por qualidade de trabalho para promover a educação, portanto, pensando nos estudantes”, explica.
Parte disso, de acordo com ela, se intensificou desde a última eleição presidencial, em que a polarização do cenário político desgastou a comunidade escolar, contribuindo para o aumento de um posicionamento conservador e de acusações de “doutrinação ideológica”, com crescimento de casos de agressões e perseguições.
Para aprofundar o conhecimento das pessoas envolvidas no ambiente escolar sobre essa temática da violência, pesquisadores do Grupo de Estudos Interdisciplinar sobre Violência (GREIVI) da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP criaram a cartilha “Violência Escolar: Ações de Intervenção e Prevenção”. O material auxilia alunos, professores, familiares, diretores e outros funcionários a responderem de forma positiva em situações desse tipo, além de sugerir adoção de medidas preventivas que contribuam para a melhoria da saúde mental dos professores nas escolas.
Os números não crescem apenas nas estatísticas internacionais e nacionais, mas na composição do dia a dia escolar. Para Andressa Garcia, que trabalha com turmas do sexto ao nono ano, é desafiador lecionar em salas de aula com 35 a 38 alunos.
“Por mais estudo, engajamento ou qualificação que se tenha, essa quantidade de estudantes não permite desenvolver um trabalho de qualidade como gostaríamos.
Como vou atender e acompanhar as necessidade emocionais e cognitivas de 35 alunos ao mesmo tempo?”, questiona.
Para entender o conflito basta imaginar algumas das atividades que fazem parte da rotina dos professores: aulas expositivas, preenchimento de relatórios, correção de tarefas, cálculo de notas, anotações de frequências, reuniões periódicas com diretores e famílias, e possíveis acúmulos de jornadas, com empregos em outras escolas.
Na prática, como descreve a professora de História, isso significa muitas vezes tirar recursos do próprio bolso e trabalhar por mais tempo do que o correspondente aos salários. A equipe da escola municipal em que Andressa trabalha, na zona sul de Curitiba, chegou as 19 semifinalistas da Olimpíada de História, em que participaram mais de 400 grupos de todo o Brasil. “Foi uma grande conquista e muita dedicação, mas para isso tive que assinar um termo de trabalho voluntário”, conta.
Episódios como o narrado por Andressa foram encontrados pelo Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da UFPR que realizou um estudo com 1.021 professores do ensino público no estado do Paraná, identificando a presença de distúrbios psíquicos menores em 75% dessa população, depressão em 44% e ansiedade em 70%. Os sintomas são associados ao sexo feminino, a outras doenças e às condições de trabalho.
Entre os fatores responsáveis pelo sofrimento docente estão a desvalorização do trabalho dos professores, desrespeito por parte dos alunos, baixos salários, salas superlotadas, pressão por produtividade e cargas horárias exaustivas.
“O professor vem assumindo uma gama de funções, além daquelas tradicionalmente conferidas à especificidade de seu trabalho, sendo, ao mesmo tempo, desqualificado e sobrecarregado. Estimulam o potencial de aprendizagem dos alunos, ensinam a conviver em sociedade, cobrem as lacunas da instituição escolar, garantem a articulação entre escola e comunidade, e buscam, por conta própria, sua requalificação profissional”, relata a pesquisa.
E se crescem as funções assumidas pelos docentes, também as barreiras que os impedem de exercê-las parecem se multiplicar. Outro fator de angústia destacado pela professora Andressa Garcia são as restrições à autonomia dos professores impostas pelo governo federal.
No caso da disciplina de História, por exemplo, as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que entrou em vigência em 2016, entraram em choque com os dez anos de uma construção curricular local, fruto de uma relação construída entre a área de formação continuada de História da prefeitura e o grupo de pesquisa da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em Educação Histórica.
Isso corrobora com o contexto levantado pelo Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva de pressão por adoções de políticas e pedagogias que não correspondem ao modelo de escola instituído.
BNCC: Documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica.
A saída para melhorar condições da saúde mental dos professores passa, primeiramente, pelo reconhecimento de um problema que vem crescendo em todo o mundo: o adoecimento, fruto do trabalho.
É por isso que a síndrome de burnout, relacionada ao esgotamento físico e mental, será incluída na próxima edição da Classificação Internacional de Doenças (CID +11), para 2020.
A lista é produzida pela Organização Mundial da Saúde e inclui não apenas doenças, mas condições de saúde, que será o caso da síndrome em questão, classificada como um fenômeno decorrente da atividade profissional que afeta a saúde, podendo estar associada ao emprego ou ao desemprego.
No Brasil, de acordo com a ISMA (International Stress Management Association), 72% das pessoas inseridas no mercado de trabalho possuem alguma sequela ocasionada pelo estresse, sendo 32% delas o burnout. A expectativa de profissionais da saúde é que a decisão da OMS possa fornecer mais informação e elementos para julgamento de casos trabalhistas relacionados à saúde mental, já que 92% das pessoas que apresentam a síndrome seguem trabalhando.
De acordo com Andressa Garcia, por um lado é fácil perceber o cenário de piora da saúde mental dos professores, mas, por outro, reconhecer as causas desses transtornos passa por uma análise de questões estruturais, portanto, envolve discutir política nas escolas, aquilo que se tem mais evitado. “Se não estamos conseguindo conversar sobre esse tema, como vamos pedir auxílio?”, indaga.
Apesar disso, a expectativa é que os dados internacionais e nacionais que têm identificado este cenário possam contribuir para a construção de políticas públicas voltadas ao tema. Exemplo disso é o PL 3688/2000 aprovado em setembro pela Câmara dos Deputados, com o objetivo de melhoria do processo de aprendizagem e das relações entre alunos, professores e comunidade escolar, na rede pública.
O projeto estabelece que escolas do ensino fundamental e médio sejam atendidas por uma equipe multidisciplinar de profissionais que inclua psicólogos e assistentes sociais. Após sanção pelo presidente, os sistemas de ensino tem um ano para o cumprimento das normas, a partir da data de publicação da lei.
Sobre Andressa Garcia é professora de História da Secretaria Municipal de Educação de Curitiba, doutora em Educação pela UFPR e pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica (LAPEDUH-UFPR). É Mestre em Educação pelo Programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, na linha de pesquisa Cultura, Escola e Ensino.
A Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem 2018 (TALIS, em inglês), divulgada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em junho de 2019, revelou que, em um universo de 48 países, os professores brasileiros são os que recebem os piores salários. Além de serem os profissionais com o menor poder de compra, também não apresentam diferença salarial ao longo dos anos, ao contrário do cenário de outros países estudados, em que há aumentos salariais como parte de planos de carreira.
A TALIS 2018 entrevistou 2.447 professores da educação básica e 184 diretores de escolas brasileiras. Deste universo, 68% dos diretores afirmaram já ter presenciado situações de bullying entre alunos, dado que corresponde ao dobro identificado pela OCDE em outros países. Os abusos verbais e ameaças são realidade semanal para 10% das escolas brasileiras, enquanto a média mundial é de 3%. A pesquisa relaciona diretamente estes episódios aos níveis de estresse e permanência na profissão.