Gay e disléxico, Andrew Solomon escreveu "Longe da árvore" para perdoar seus pais. O Lunetas conversou com o escritor sobre família, diferenças e idealizações
Como as famílias lidam com as diferenças? Como lidar com o luto do filho idealizado? São essas as perguntas que norteiam o filme "Longe da árvore", um chamado para a urgência de celebrar a diversidade.
“Uma criança popular na escola, atlética, sem conflitos com o mundo e basicamente convencional”. É assim que o escritor norte-americano Andrew Solomon (autor do premiado “O demônio do meio-dia”) descreve o filho que sua mãe esperava antes de ele vir ao mundo. No lugar dessa criança potencialmente perfeita segundo padrões preestabelecidos, quem nasceu foi um menino disléxico, retraído e homossexual.
Também nascia aí o germe para o escritor se interessar por estudar o modo com as pessoas lidam com a diferença, e todas as dores que vêm da relação entre o real e o idealizado. Por que o ser humano continua sofrendo para se encaixar em padrões tantas vezes irreais, e como essa experiência acontece na infância? Levamos essas questões ao próprio Andrew Solomon.
“Precisamos ensinar nossas crianças a cumprir as suas próprias expectativas; esse é o verdadeiro fardo de ser pai”, ele defende.
Reconhecido por sua contribuição nos segmentos de Cultura e Psicologia, Solomon dedicou mais de uma década de sua vida a uma investigação que não tem fim, ao publicar um best-seller mundialmente traduzido sobre pessoas com deficiências diversas e suas experiências familiares. O livro “Longe da árvore: pais, filhos e a busca da identidade” (Companhia das Letras, 2013), com suas mais de mil páginas, tornou-se referência para quem se interessa pelo tema da inclusão e da promoção à diversidade. Não por acaso, é o título mais vendido na lista de não-ficção do New York Times, e já recebeu mais de 50 prêmios nacionais e internacionais.
Definir o que é família hoje parece ser uma grande armadilha, já que a interpretação varia de acordo com múltiplos fatores – sociais, culturais, políticos. O escritor Daniel Galera, no livro “Barba ensopada de sangue”, diz que “Há apenas dois lugares possíveis para uma pessoa. A família é um deles. O outro é o mundo inteiro”. Já o psicanalista Jacques Lacan dizia que, em um certo aspecto, todo filho é adotado, porque uma criança quando nasce nos convida a aceitá-la como ela é, e não como a imaginamos.
No entanto, ao mesmo tempo em que tudo aquilo que é uma família não pode ser restrito a uma só “caixinha”, é da falta de um entendimento igualitário sobre o tema que deriva uma série de discriminações, como a homofobia, a exclusão de diversos tipos e, claro, o preconceito contra pessoas com deficiência, cujos corpos desviantes são subversivos por sua própria natureza.
Aproveitando o lançamento no Brasil do documentário inspirado no livro, conversamos com Andrew Solomon sobre expectativas e frustrações dos pais em relação aos filhos, mas não só.
O escritor dividiu com o Lunetas a experiência de constituir uma família que foge à maioria dos padrões socioculturais normativos. “De alguma forma, eu conto essa história para perdoar os meus pais”.
Baseado no premiado e aclamado livro “Longe da árvore: pais, filhos e a busca da identidade”, de Andrew Solomon, o mais vendido na lista de não-ficção do New York Times. O documentário fala sobre a família. A família que nascemos e a família que construímos. Um olhar corajoso na jornada de acolhimento e afeto das relações humanas.
“Não há nada de sagrado na família tradicional, a única vantagem é que ela é mais amplamente aceita e muito menos questionada”, diz o autor.
“Todos os pais lidam com filhos que não são o que eles esperavam”, diz Andrew Solomon no filme, neste que é talvez um dos seus maiores trunfos: trazer para o coletivo a discussão sobre diferenças, e não restringi-la somente a famílias que convivem com algum tipo de deficiência ou transtorno. A responsabilidade desse debate é uma questão social.
Assim, Andrew chama a atenção para o tamanho da responsabilidade compartilhada que, enquanto sociedade, temos em mãos quando falamos em inclusão, considerando que muitas conquistas desse âmbito são recentes.
“Quanto mais recente for qualquer forma de tolerância, mais frágil ela será. Então, tem muita luta a ser feita”
Lunetas – Você teve duas vivências distintas em função de comportamentos socialmente considerados desviantes. A primeira, por conta da dislexia. Depois, ao assumir sua homossexualidade. Como seus pais lidaram com cada uma delas? E como a família te ajudou ou dificultou a sua experiência como sujeito?
Andrew Solomon – Minha mãe lidou com a minha dislexia de forma extraordinária, e eu só tenho a agradecer a ela por isso. Nem sei quantas horas ela ficou comigo, me ensinando a ler. Eu só fui perceber o quão disléxico eu sou muitos anos depois, quando tentei aprender russo. Eu memorizava os sons do alfabeto cirílico, mas não conseguia simplesmente ler uma palavra inteira a não ser que eu a memorizasse separadamente; a associação entre cada letra com um som não me ajudava a enxergar novas palavras e entendê-las. Minha mãe reconheceu esse déficit quando eu era muito jovem. Eu adorava histórias, livros e leitura, isso não teria acontecido sem todo esse amor, paciência e dedicação da minha mãe.
Mas não foi a mesma história em relação à minha homossexualidade. Eu era incentivado em relação aos meus interesses, recebi apoio quando eu não era tão masculino quanto os outros meninos e portanto era muito impopular na escola, sempre enterrava minha cara nos livros. Mas, mesmo que eu não tivesse um vocabulário ou consciência da sexualidade quando era criança, eu tive quando fiquei mais velho.
“Meus pais tinham muita raiva por eu ser gay. Eles não me expulsaram de casa ou pararam de me amar, mas minha mãe se sentia fracassada e tinha muita vergonha disso”
Meu pai só dizia: “isso é muito difícil para a sua mãe”. Por outro lado, eu sentia muita raiva não só pela intolerância explícita que surgiu quando eu me assumi socialmente, mas também pela intolerância implícita que havia me deixado envergonhado por tanto tempo.
Minha mãe disse todas as coisas certas antes de morrer, alguns anos depois, mas eu não acho que ela chegou ao nível de aceitação que ela sabia que deveria ter; meu pai se tornou um grande defensor meu e tem oferecido muito amor como sogro para o meu marido e como avô para os nossos filhos.
O entendimento do que é ser uma família varia muito ao longo do tempo, conforme o contexto social e político. Como essas transformações afetam as crianças?
AS – O que geralmente se diz é: “o amor faz uma família”. Eu acredito que há verdade nisso, mas também acho que é necessário mais do que só o amor: requer competência, atenção, tempo, percepção, e assim vai.
Mas, qualquer que seja a combinação das qualidades necessárias, elas podem ser alcançadas de várias formas por diversas constelações de pais. Pais solteiros (por opção ou não) podem ter sucesso ou fracassar; famílias homossexuais também podem ter sucesso ou fracassar; assim como famílias com mais de dois pais também podem ter sucesso ou fracassar. Já as tradicionais famílias heteronormativas podem ter sucesso ou fracassar, com o fracasso muito mais evidente para aqueles que estão prestando atenção. Não há nada de sagrado na família tradicional, a única vantagem é que ela é mais amplamente aceita e muito menos questionada.
Temos visto mundialmente uma guinada conservadora. De que forma esse contexto impacta a discussão sobre as diferenças?
AS – O mundo está presenciando uma onda de tribalismo e intolerância, com atos terrivelmente cruéis contra pessoas que são diferentes ou estranhas em qualquer aspecto. No momento, vemos isso com mais frequência no desdém contra imigrantes que impulsiona a presidência do Trump, o voto a favor do Brexit no Reino Unido, a ascensão do populismo de direita na Europa, o atual regime no Brasil.
Mas também é direcionado contra qualquer um que seja diferente: contra judeus; contra homossexuais ou transsexuais; contra muçulmanos; contra pessoas com deficiências. É óbvio que o preconceito afeta aqueles que estão sendo excluídos, mas talvez não se reconheça o suficiente que ele também afeta os que excluem; isso reduz o seu mundo e a sua experiência, e empobrece essas pessoas.
“A diversidade não é um projeto de caridade, mas uma atitude em relação ao mundo”
Parte da experiência de ser adulto é saber lidar com as expectativas – nossas e dos outros. Você acha que estamos ensinando as crianças a fazer isso? Como fazer isso?
AS – Precisamos ensinar resiliência para as nossas crianças, porque as expectativas de uma pessoa para outra são muito diferentes. Precisamos ensinar nossas crianças a cumprir as suas próprias expectativas; esse é o verdadeiro fardo de ser pai. Ajudamos eles a criar suas próprias expectativas, mas não forçamos as nossas pra cima eles.
Dizer que algo é “diferente” pressupõe um referencial de normalidade – ou seja, diferente em relação a que, ou a quem? Como apresentar referências saudáveis de diversidade para as crianças?
AS – “Normal” é uma questão de média, é aquele grande miolo de uma curva em forma de sino. Nossa obrigação é sempre enxergar tanto o que há de diferente quanto o que há de comum na humanidade que todos compartilhamos.
“Em relação aos nossos filhos, devemos explicar que existem muitas possibilidades e que eles vão crescer ao vivenciar todas elas”
Quando comecei a minha pesquisa sobre deficiências, eu achava que salas inclusivas eram boas para pessoas com deficiência, que recebiam uma educação melhor do que receberiam em outros contextos, mas um pouco chato para seus colegas sem deficiências, que teriam que trabalhar mais devagar por causa das pessoas com deficiência na turma. Agora, depois de passar muito tempo nessas salas de aula, eu acredito que quem mais ganha são as crianças sem deficiência, que crescem com uma humanidade mais ampla e acolhedora do que teriam de outra forma, que aprendem que existem muitas maneiras de ser humano.
Você vê avanços nas discussões que você propôs no livro lá em 2013? Em termos de visibilidade do tema, quais foram os frutos deste trabalho?
AS – O mundo caminha erraticamente, e, em muitos pontos, o momento atual é politicamente sombrio, mas eu vejo uma tolerância crescente em boa parte do mundo, com o advento do casamento gay, com a maior visibilidade dos grupos de defesa das pessoas com deficiência etc.
“Eu acho que, hoje, pais que descobrem que seu filho é diferente tem menos chances de reagir negativamente do que era antigamente“
Mas ainda existem lugares onde pessoas são executadas por serem gays, e ainda existem lugares onde pessoas com deficiência são trancadas dentro de casa por vergonha. Quanto mais recente é uma forma de tolerância, mais frágil ela é. Então, tem muita luta a ser feita.
O que é família para você?
AS – Meu marido, John, é o pai biológico de dois filhos, Oliver e Lucy, com amigas lésbicas, Tammy e Laura; elas vivem em Minnesota. Minha melhor amiga da faculdade e eu decidimos ter um filho juntos e temos uma filha, a pequena Blaine, que vive com a sua mãe e agora com o parceiro dela, Richard, no Texas. Mas John e eu queríamos ter a experiência de sermos pais integrais, então tivemos um filho, George, que vive com a gente em Nova Iorque. Eu sou o pai biológico do George, e John é seu pai adotivo; usamos uma doadora de óvulos; e nossa barriga de aluguel foi Laura, a mãe de Oliver e Lucy. Portanto, são seis pais e quatro crianças em três estados diferentes. E tem sido a maior felicidade da minha vida.
O documentário foi realizado em 2017, e pela primeira vez será exibido em salas do circuito comercial de cinema do Brasil. Com direção de Rachel Dretzin – vencedora do Emmy – e distribuição da Flow, por meio do selo Believe Films – dedicado a produções que inspiram transformações sociais positivas -, o filme traz experiências de diversas pessoas consideradas fora do padrão social e cultural, como indivíduos que apresentam transtornos, deficiências físicas, mentais, sociais, e também homossexuais e pessoas com nanismo.
Assim como o livro, o filme retrata perfis de pessoas que o autor chama de “identidades horizontais” (isto é, divergentes dos padrões familiares, linguísticos e sociais predeterminados), sujeitas em graus distintos a influências genéticas e ambientais. Ou seja, diferenças físicas, mentais e sociais que vão muito além da deficiência. Como define a editora da obra literária, “Longe da árvore” constitui um “magnífico tour de force sobre os sentidos de ser diferente e, principalmente, de aprender a amar e respeitar as diferenças”.
“Ele reúne histórias emocionantes que despertam o melhor que existe em nós”, conta Luana Lobo, sócia-diretora da Flow. “Acolher e valorizar as diferentes formas de existir no mundo é urgente e este é um pensamento compartilhado com a Participant Media – que vê esse filme como um antídoto ao atual clima de polarização que assola as sociedades globalmente.
Nas palavras do próprio Andrew Solomon, “precisamos dessa diversidade de afetos para fortalecer a ecosfera da gentileza e garantir que o planeta possa continuar”, defende.
“Eu gostaria de pensar que o filme traz uma mensagem não apenas de tolerância, mas de admiração por pessoas diferentes”, diz Solomon.
Idealizações: como elas afetam as crianças?
O dia 21 de setembro foi incorporado pela legislação como o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência (Lei Nº 11.133/2005). Quando se fala em deficiência, fala-se também da experiência de aceitação de uma criança que não é como o esperado, e passa pelo que os psicólogos costumam nomear de luto do filho idealizado. Isso porque a chamada “parentalidade atípica” está inserida em uma sociedade que normatiza corpos e comportamentos, e historicamente tende a evitar o que é desviante desses padrões.
Porém, quando o assunto é expectativa, a discussão ultrapassa as questões de uma criança com deficiência, e passa pelos muitos abismos que frequentemente existem entre o que os pais esperam dos filhos, e o que eles de fato são/podem ser.
Para provocar a reflexão, o Lunetas perguntou aos leitores como eles lidam com esses desajustes entre idealização e realidade na criação dos filhos. Entendemos que tudo isso passa pela urgência de construirmos relações mais saudáveis com as diferenças, mirando na possibilidade de um mundo justo, respeitoso e verdadeiramente inclusivo.
Confira as respostas e inspire-se a também pensar sobre o assunto:
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