- Lunetas – O que motivou a sua pesquisa “Questões de Gênero na Educação Física Escolar”, e quais foram os maiores aprendizados?
Luciano Corsino – Minha grande motivação em estudar questões de gênero na Educação Física escolar foi a prática pedagógica. Após terminar a formação em Educação Física, fui trabalhar em uma escola da rede estadual de ensino de São Paulo e deparei-me com uma realidade que me chamou a atenção de forma negativa, as meninas eram recorrentemente excluídas durante as aulas, a maior parte delas parecia conformada, algumas questionavam e muitas demonstravam desinteresse pela maioria das atividades propostas. Isso me tocou enquanto professor e passei a estudar este fenômeno. Além de todo aparato teórico sobre as questões de gênero, a pesquisa que realizei e que depois foi transformada no livro “O professor diante das relações de gênero na Educação Física escolar”, contribuiu para que eu pudesse olhar para a minha prática pedagógica de modo a entender como as relações de gênero estavam pautadas em todas as ações cotidianas e como as metodologias, avaliações e os próprios conteúdos influenciavam e se relacionavam com as hierarquizações das diferenças de gênero, possibilitando maior reflexão sobre como superar os desafios que se colocavam.
- Lunetas – Quando não recebem estímulo, as meninas podem se desinteressar pelo esporte na infância de forma permanente?
Luciano – É importante pontuar que o gosto pelas diversas manifestações da cultura corporal de movimento também é construído. O contato, não apenas com os esportes, mas com os jogos, brincadeiras, lutas, danças e ginásticas, desde cedo, é importante porque permite às crianças experienciar os movimentos e conhecer essas manifestações, mesmo que de forma adaptada às suas idades. Ao não serem encorajadas a praticar as manifestações da cultura corporal de forma diversificada, além de maior dificuldade na construção de repertório motor, as meninas apresentam maior probabilidade de não demonstrar interesse pelas manifestações ao longo de suas vidas. Um exemplo clássico é a falta de interesse da maioria das meninas pelo futebol e da maioria dos meninos pela dança. Geralmente, aquelas meninas em que a família permite brincar na rua, jogar futebol e brincar com os meninos desde cedo, tendem a construir um maior repertório motor, tornam-se mais habilidosas e acabam desenvolvendo o gosto por uma gama maior de esportes e outras manifestações.
- Lunetas – Na sua percepção, o que leva algumas pessoas a achar que meninas não são aptas para praticar determinados esportes?
Luciano – Trata-se de uma questão histórica, tivemos momentos em que mulheres não podiam praticar determinados esportes e as justificativas partiam de uma suposta natureza feminina. Hoje, os esportes são liberados para as mulheres no Brasil, porém, ainda há muitas falsas representações que reforçam o preconceito com as mulheres e meninas nos esportes e hierarquizam as práticas, determinando o que elas podem ou não praticar. Muitas vezes, por não terem vivenciado de forma adequada e por isso não apresentarem níveis de habilidade equivalente à maioria dos meninos em determinados esportes, muitas meninas acabam concordando com a falsa representação de que o esporte não é para mulheres. Este cenário tem mudado de forma lenta, mas ainda existe e é responsável por determinar quem está apto para praticar determinada manifestação da cultura corporal. Não estou dizendo que meninas devem ser obrigadas a gostar de futebol e meninos de dança, por exemplo, mas isso se torna um problema quando o gosto por uma ou outra atividade é naturalizado, ninguém nasceu para o futebol, para luta ou para a dança, tudo depende do que nos é apresentado como possibilidade ainda na infância.
- Lunetas – Como estimular nas meninas a relação com o esporte longe dos estereótipos de gênero?
Luciano – Não é possível anular os estereótipos de gênero para a realização de uma prática esportiva, pois eles estão em todos os lugares, nas falas, olhares, gestos, pensamentos, eles constroem nossa sociedade de modo desigual e hierarquiza as diferenças. No entanto, na infância, o maior estímulo para as meninas praticarem esportes e outras manifestações da cultura corporal é possibilitar as vivências de modo diversificado, permitir a reflexão sobre a participação das mulheres nos esportes, apresentar exemplos de grandes atletas mulheres que temos em nosso país e no mundo e sempre intervir e corrigir expressões usuais como “futebol não é para mulher porque é muito agressivo”, “eu não vou conseguir”, “menina não sabe jogar”. É preciso incentivarmos as meninas com palavras positivas e elogios e mostrar aos meninos que elas podem tanto quanto eles.
O que precisa mudar?
O debate sobre gênero e infância é sensível. Há muita interferência de mitos e interpretações misturadas ao medo e à falta de informação. O que se sabe, porém, é que cada criança nasce com uma genitália definida – com exceção de crianças intersexo (Explicação: Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, “O intersexo é uma condição de nascença em que os órgãos sexuais e/ou reprodutivos não correspondem ao que a sociedade espera para o sexo masculino ou feminino”. Este dado, por si só, não define comportamento. É o que defendem psicólogos e especialistas.
“Embora as desigualdades entre homens e mulheres sejam construídas na esfera cultural e social, existe uma forte ideologia cuja intenção é fazer crer que a divisão dos papéis entre eles é naturalmente determinada pela condição biológica”, diz o plano de aula elaborado pela ONU “Estereótipos de gênero, carreiras e profissões: diferenças e desigualdades”, disponível online gratuitamente.
Segundo a ONU, é esse mito de que homens e mulheres têm maior ou menor possibilidade de exercer determinada função por conta de seu gênero que faz com que profissões ligadas ao cuidado, como Enfermagem ou Pedagogia, por exemplo, sejam majoritariamente ocupadas por mulheres e por consequência desvalorizadas como oportunidade de ascensão de carreira.
Em um estudo divulgado em 2009, o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID – mostra que, apesar do recente crescimento econômico e das políticas destinadas a reduzir as desigualdades, as diferenças salariais relacionadas a gênero e etnia continuam sendo significativas em nosso país. De acordo com a pesquisa, os homens ganham mais que as mulheres em todas as faixas de idade, níveis de instrução, tipo de emprego ou de empresa.”
Ou seja, os papéis de gênero – a forma como a criança irá vivenciar o seu gênero – é algo socialmente construído e vivenciado de acordo com o ambiente onde a criança está inserida. A partir dessa premissa, discutir os motivos pelos quais há mais homens que mulheres em determinadas profissões, é falar antes de mais nada sobre identidade cultural.
Apesar de esta ser uma leitura insuficiente para a complexidade do entendimento sobre o que é a cultura, é inegável que uma cultura se faz de pessoas, e pessoas reforçam um comportamento por aquilo que dizem, fazem e consomem. Incentivar uma relação com os esportes praticados por mulheres desde a infância pode ser então uma ferramenta de transformação de mentalidade que mais tarde poderá acarretar em uma mudança cultural.
Como qualquer outro assunto relacionado à educação das crianças, cabe lembrar que a responsabilidade é compartilhada: família, escola e território compartilham a missão de promover e incentivar o contato com referenciais positivos no esporte, assim como em qualquer outra área de atuação. E isso acontece com incentivo, de acordo com Berbat.
“É essencial destacar mulheres que fizeram e fazem a diferença. Isso serve para Educação Física, Ciências, Química, Física. Não adianta discutir gênero se você só citar homens nas aulas”
“Acontece muito de os meninos monopolizarem a quadra jogando futebol e as meninas ficarem isoladas com uma bola de vôlei ou outra brincadeira. É preciso mudar essa realidade, inserir novos esportes que misturem meninos e meninas”
A ONU considera o esporte como uma ferramenta poderosa para o empoderamento de meninas e de mulheres jovens e para o engajamento de homens pelo fim da violência contra as mulheres.
“Apenas a ocupação da mulher nesses espaços quebrará a lógica vigente. E não é só a presença no espaço físico do estádio, elas têm que estar na torcida, nos campos, nos debates, na mídia”, explica Bianca Tavolari à Think Olga.
“A atividade física potencializa a autoestima, a liderança, o conhecimento sobre o próprio corpo e a ideia de direitos e deveres. Investir na liderança de meninas por meio dos esportes é uma forma de reduzir as desigualdades de gênero e modificar percepções, atitudes e comportamentos em todo o ambiente escolar”, defende Vanderson.
“Queremos usar o esporte para construir um futuro mais respeitoso para nossas filhas e filhos”
Assim, uma das conclusões possíveis diante dessa realidade nada mais é que um pensamento lógico: para que o esporte feminino se torne atrativo (para os clubes, para a mídia, para as pessoas), é preciso incentivo desde a infância; para que haja incentivo desde a infância, é preciso haver uma mudança sociocultural; e, para isso, é necessário articular comunidade, escola e família.
Sem dúvida, todos temos algum papel a ser desempenhado na hora de fortalecer as atletas femininas. Porém, políticas públicas que garantam acesso e segurança no esporte são o ponto de partida dessa mudança.