Variações hormonais, satisfação dos desejos e a chegada de gente nova na família: mulheres falam sobre percepções da sexualidade depois da maternidade
"Fazer sexo nem é o primeiro problema. O primeiro problema é dormir", diz a ilustradora Thaiz Leão, a Mãe Solo. Ouvimos mulheres de diferentes perfis e realidades para refletir sobre vida sexual pós-filhos.
“O que? Mães transam? Mães não transam”. A brincadeira é da ilustradora paulista Thaiz Leão Gouveia, mas quem nunca chamou a própria mãe de “santa” que atire a primeira pedra. Idealizadora do projeto Mãe Solo e atuando no espaço Casa Mãe, Thaiz gosta de usar a ironia e o bom humor para pensar os perrengues da maternidade: de um lado, o tesão, e, do outro, a imagem sacralizada de pureza, cuidado e amorosidade atribuída às mães. Com o peso de tantas cobranças e expectativas, como equilibrar a balança, dando lugar aos apetites, prazeres e outros devaneios do corpo?
“Fazer sexo nem é o primeiro problema. O primeiro problema é dormir”
É o que diz Thaiz, que ficou grávida do Vicente, hoje com quatro anos, no penúltimo semestre da faculdade. Com o acúmulo de duas a três jornadas de trabalho, o desgaste físico e emocional das mães fica evidente. Resultado: ver um cara cuidando do próprio filho e dando uma força nas tarefas de casa passa a ser visto não como um dever, mas como um comportamento atraente e “fora da curva”, segundo a ilustradora. “Isso acaba se tornando erótico, porque significa que estamos sendo vistas e cuidadas. É a partir dessa divisão que é possível retomar a energia”, explica.
Cirurgias plásticas, corrida pelo emagrecimento, a necessidade de “recuperar” o corpo. Tudo isso faz parte de um repertório de expectativas socialmente construído que constrange as mulheres após o parto. “Além disso, elas ainda se sentem cobradas a ter libido”, reclama Cláudia Pacheco, empresária e mãe do Joaquim, de um ano e sete meses.
Engajada em espaços de terapia e autoconhecimento, Claudia percebe em alguns grupos de maternidade uma pressão por parte de maridos e parceiros pelo retorno das relações sexuais. Aquela velha forma de violência simbólica travestida de conselho: “Mulher tem que comparecer.”
Apesar das variações hormonais que atuam no corpo da mulher durante a gravidez, no puerpério e também durante o período da amamentação, Cláudia se mostra segura quanto à origem da indisposição:
“Não é falta de libido, é cansaço extremo”
Isso porque é sobre a grande maioria das mulheres que recai a responsabilidade do cuidado com o bebê, as atividades domésticas e a administração da própria vida profissional.
A experiência da empresária curitibana ilustra um pouco como essa conversa ultrapassa as limitações anatômicas, fisiológicas e emocionais ligadas à gravidez em si, mas tem relação com a sobrecarga a qual as mulheres são submetidas na maternidade.
“Sentia muito desejo sexual no puerpério, porque eu estava descansada. Depois das noites acordada atendendo às necessidades do bebê, eu tinha tempo para dormir de manhã: o Douglas [marido] já tinha ido passear com o Joaquim, a louça e a roupa estavam lavadas”, conta.
Mas o sonho durou 30 dias e coincidiu com a licença do marido no trabalho. Depois desse período, Cláudia sentiu novamente o peso das demandas. “Às vezes, ele chegava seis da tarde e eu ainda não tinha escovado os dentes. Eu só queria entregar meu filho, tomar banho e dormir. Exausta”, conta Claudia. Foram quatro meses sem libido, segundo ela, com o corpo à disposição exclusiva da criança.
Mais alguns dilemas se somam à rotina das mães solo. A ilustradora Thaiz Leão conta que a própria decisão de deixar o filho aos cuidados de outra pessoa se torna um empecilho. “Meu filho fica com o pai a cada quinze dias. O que fazer? Pedir para o cara do Tinder esperar duas semanas?” Além disso, o custo das saídas também acaba pesando no bolso.
“Mãe também tem vagina e quer fazer uso dela. Mas é difícil da forma como somos enxergadas”
Ou os caras acham que podem fazer o que querem, porque você já é mãe mesmo e ‘queimam a largada’ ou acham que são heróis e que estão te fazendo um favor”, conta.
Segundo ela, não é possível falar de maternidade sem conseguir debater sexualidade. Da mesma forma como não se pode debater sexualidade sem falar em abuso, violência e insegurança das mulheres.
“Não nos conhecemos e nem somos convidadas a nos conhecer”, afirma Thaiz.
Fatores como hiperresponsabilização, julgamentos, condição financeira, barreiras na vida profissional e outras violências, de acordo com ela, acabam privando a sexualidade das mães.
A maternidade é um processo que faz parte da sexualidade da mulher, mas é apartada socialmente do âmbito dos prazeres. É como se a concepção, a gravidez, o parto e a amamentação fossem fases relacionadas apenas à saúde e à fisiologia, pertencendo à medicina. E, embora englobe um conjunto de fatores, na cabeça de muita gente o exercício da sexualidade é reduzido à dimensão genital, sendo sinônimo de ato sexual.
O estudo “A sexualidade após a maternidade: a experiência de mulheres usuárias do SUS”, dissertação defendida por Marilaine Balestrim Andrade, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP, apresenta como esse debate é retirado do universo simbólico – definido por aspectos históricos, sociais, culturais e psicológicos. É o que faz com que a sexualidade seja vivida pelas pessoas de forma distinta de acordo com a idade, o gênero e o meio sociocultural.
A pesquisa buscou compreender como mulheres usuárias do SUS percebem e vivenciam a sexualidade durante os doze meses iniciais após o parto e constatou que a maioria das mulheres se sentem constrangidas ao tratar de sexualidade, mas apresentam tranquilidade ao falar sobre maternidade, entendida e vinculada à capacidade do corpo de gestar, parir, nutrir e cuidar.
O estudo aponta a maioria das mulheres atribui apenas ao próprio corpo as alterações do relacionamento sexual percebidas após o nascimento do primeiro filho ou filha.
Isto é, a retomada dessas atividades remetem à dor, diminuição da lubrificação vaginal e da libido em função da condição orgânica. Mudanças como diminuição na frequência, falta de vontade, cansaço e indisposição para o sexo foram assimiladas pelas mulheres à necessidade de dar mais atenção ao bebê. “Isso coincide com a ênfase que a sexologia contemporânea dá às ‘disfunções sexuais’ e ao entendimento da relação sexual estritamente genital”, aponta o estudo de Marilaine Balestrim Andrade.
A maioria das mulheres entrevistada por Andrade se queixou da falta de compreensão dos parceiros e de pressões para aceitar o ato sexual. Ao mesmo tempo, isentaram seus parceiros de responsabilidade mesmo diante das insatisfações e da sobrecarga. Em geral, relataram que se sentem protagonistas do enredo que envolve satisfação do parceiro, planejamento familiar e da concepção.
A análise levou a pesquisadora a identificar falhas no setor público em relação ao fornecimento de informações, abordagem cuidadosa e acolhimento materno infantil, que representam obstáculos, de acordo com Andrade, para ações de planejamento familiar. O quadro se acentua em níveis menores de escolaridade e de renda.
“A forma como a mulher percebe a maternidade e o exercício da sexualidade interfere nas escolhas, no cuidado com a saúde e na busca por assistência”
“Essas percepções são permeadas tanto pelo modelo ideológico presente na nossa sociedade, como pela desigualdade entre homens e mulheres, que coloca a mulher em uma posição inferior ou secundária e o homem em um patamar de superioridade ou dominação, questões essas produzidas pelas relações de gênero”, diz o estudo.
Conseguir falar abertamente sobre sexo pode sim representar um avanço, mas, para Thayná Batista, empreendedora curitibana e mãe do Mateus, de 17 anos, não significa atingir todas as camadas da sexualidade e conhecer o funcionamento do próprio corpo. “Não se trata de contar com quantas pessoas, fantasias e posições sexuais nos identificamos, mas de repensar como valorizamos nossos corpos e qual ‘economia’ movimenta nossas relações”, defende.
Ela lamenta a forma como muitas mulheres heterossexuais se sujeitam a relações doloridas e sem prazer para que o parceiro não fique sem sexo, ou por receito de que procure relações extraconjugais. “Isso é um equívoco e uma perda para o bebê, para a mãe e para o parceiro”, opina.
“Deveria ser um momento de aprendizado, de compreensão sobre o momento e novas descobertas sexuais também”
Divorciada, Thayná explica que há outras implicações nas relações entre mulheres, mas que dependem se a criança é fruto da relação entre as duas ou de uma das parceiras apenas. De modo geral, como comenta, é sempre desafiador compartilhar o cuidado da criança, mas com bastante diálogo e interesse comum é possível. “Eu tive companheiras maravilhosas, dispostas a compartilhar das tarefas e cuidados. Na minha experiência, foi mais difícil lidar com a escola e a família sobre meu filho ser criado por uma mãe lésbica”, relata.
Se as demandas em relação ao bebê são compartilhadas, conforme opinam as mulheres entrevistadas pelo Lunetas, mais fácil de se perceber e estabelecer uma relação amorosa com o próprio corpo. A condição natural dos hormônios, a sobrecarga do cuidado e a pressão dos padrões de beleza midiáticos são sempre exaustivos para as mães e afetam o modo como percebem e vivem sua sexualidade.
A empresária Cláudia Pacheco relata como, apesar de não ter tido conflitos com a volta das relações sexuais com o marido, precisou de algum tempo para se reconectar sexualmente e com a identificação de alguns prazeres pessoais. “Quando o bebê nasce e demanda o nosso corpo, necessitamos de um período para nos encontrar. Talvez por isso a sexualidade acabe ficando em segundo plano quando assumimos esse novo papel.”
Ela afirma que se sentir feliz e bem com o próprio corpo é essencial para esse reencontro. “A libido voltou antes, mas eu só voltei a me massagear oito meses após o parto. Foi quando voltei a dançar e me olhar no espelho.” Hoje, Cláudia e Douglas trabalham juntos e dividem todas as tarefas ligadas à criação do Joaquim. Grávida de seis meses, ela percebe que essa rotina de flexibilidade de horários permite uma relação muito mais saudável e equilibrada. A sugestão dela?
Comunicar erro“Divide o trabalho que o tesão volta”
O que é sexualidade, afinal?
“A sexualidade é uma energia que nos motiva para encontrar amor, contato, ternura e intimidade; ela integra-se no modo como sentimos, movemos, tocamos e somos tocados, é ser-se sensual e ao mesmo tempo ser-se sexual. A sexualidade influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações e, por isso, influencia também a nossa saúde física e mental. Se saúde é um direito humano fundamental, a saúde sexual também deveria ser considerada um direito humano básico”. (Fonte: Organização Mundial da Saúde – OMS)