Alvo de uma série de notícias que chegam pelas redes sociais e circulam como verdade, Paulo Freire é constantemente atacado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus seguidores. Bolsonaro se coloca contra a “doutrinação” das crianças e dos jovens e quer eliminar a “ideologia” freiriana das salas de aula, alterando o documento que norteia a educação no país, a BNCC (Base Nacional Comum Curricular).
Porém, palavras como “doutrinação” e “ideologia” vêm sendo usadas com tanta frequência e em tão larga escala que é fácil supor que nem todo mundo reflete sobre o contexto em que elas são utilizadas, ou conhece seu real significado. Como diria a poeta Viviane Mosé, é preciso “lavar as palavras”, a fim de reencontrar sua essência e destituí-las de finalidades de terceiros.
Diante deste cenário intrincado, o Lunetas convidou para uma reflexão à altura da complexidade da conjuntura política o educador português José Pacheco, criador da Escola da Ponte e referência internacional em educação integral. O foco é o medo, a desinformação e as fake news que rondam a figura do educador e filósofo Paulo Freire, cuja contribuição para a educação brasileira diz respeito mais à EJA (Educação de Jovens e Adultos) do que a educação infantil ou o ensino fundamental. “Vivemos tempos sombrios. De um lado, freirianos fundamentalistas, do outro, fanáticos anti-Freire”, disse Pacheco.
“São inúmeras as contribuições de Paulo Freire. Uma das mais valiosas é reconhecer que aprendemos na intersubjetividade”
“Como pode Paulo Freire sair das escolas, se ele nunca sequer entrou? Freire está sequestrado em teses, guardadas nos arquivos das universidades. Infelizmente, nunca o vi no chão das escolas. O que por aí abunda é muito freiriano não-praticante”, pontua o educador.
Conversamos também com duas profissionais referência na área de Educação, com trajetórias sólidas junto às demandas de estudantes e escolas do país e do mundo, para desconstruir os mitos em torno da figura de Paulo Freire. A diretora de educação e cultura da infância do Instituto Alana, Raquel Franzim, e Silvia Carvalho, CEO do Instituto Avisa Lá, respondem três perguntas sobra a vida e a obra de Paulo Freire, convidando os leitores para uma reflexão sobre o que ele representa na formação crítica de crianças e adolescentes.
Lunetas – Como você avalia a repulsa que as ideias de Paulo Freire causam em alguns segmentos da sociedade?
Raquel Franzim – A repulsa às ideias de Paulo Freire está dentro de um contexto maior – político, social, cultural. A ideia de que a Terra é plana, que o surgimento da vida na Terra é criação de Deus, que a Ditadura Militar de 64-85 não aconteceu ganharam força nos últimos tempos. Forças de contestação da História e da ciência sempre existiram e as transformações, especialmente as tecnológicas, amplificaram esses questionamentos.
O problema não é o debate em torno deles, principalmente quando ela ocorre dentro da escola, e sim a disseminação rápida de mentiras e o uso desses “pontos de vista” para justificar censura à pluralidade de ideais pedagógicos (como assegura a Lei de Diretrizes e Bases), a perseguição política, a violência no discurso, no gesto e nos atos.
Silvia Carvalho – A repulsa tem a ver primeiro com desconhecimento, de quem ele realmente foi e da concepção dele em relação à pedagogia. O que “colou” é o fato de que ele lutava pelos mais pobres (vide pedagogia do oprimido) e que ele tinha uma posição mais à esquerda. Hoje em dia, tudo é confundido com posição partidária. Mas isso é desconhecimento do que ele estava propondo.
Paulo Freire é uma influência enorme na América Latina, na África, no mundo todo. Isso é inegociável. É como se disséssemos que Einstein tem que sair do mundo científico.
“A repulsa vem misturada com o sentimento político”
Qual a principal contribuição de Paulo Freire para a educação brasileira?
RF – Paulo Freire é o patrono da educação brasileira e, não à toa, influenciou tantas correntes pedagógicas por aqui e em outros países.
“Sua obra é única no mundo por trazer que toda aprendizagem deve ocorrer de maneira contextualizada e favorecer a construção de sentido pelo estudante”
Ao se debruçar sobre os processos de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita de adultos que não tiveram o direito de frequentar a escola, Paulo Freire construiu uma visão de que não podemos ensinar estudantes de forma mecanizada. Que a leitura e a escrita não podem ser um ato mecânico de memorização de letras e sílabas. Que o oposto a isso traria liberdade de pensamento, autonomia e senso crítico para que os estudantes não sejam manipulados, bem como sentido de vida individual e coletivo.
Quem pode ser contra uma proposta a favor de que crianças, jovens e adultos aprendam a entender, interpretar, refletir e comunicar o que se lê ou escreve? A ter pensamento livre para não ser manipulado?
“Acredito seriamente que a grande maioria dos acusadores de Paulo Freire sequer leu o que ele escreveu”
Não há educador em nosso país mais preocupado e militante contra uma educação que ele chamou de bancária, ou seja, aquela que transfere suas próprias crenças aos estudantes. Pelo contrário, Paulo Freire, em vários de seus livros, evidencia que a educação precisa ser libertária, ou seja, a favor da emancipação intelectual dos estudantes, e não da sua doutrinação.
SC – Uma educação deve permitir e até incentivar o pensamento crítico, que não se aceite uma realidade que é dada como está. Se isso acontecesse, ainda estaríamos achando que a Terra é plana, porque não seria permitido a nós ter uma atuação crítica.
“A educação pode libertar ou pode oprimir”
Ao seu ver, a educação brasileira seria prejudicada se Paulo Freire saísse das escolas? Como e por quê?
RF – Primeiro, é importante reforçar que nossa constituição garante e a Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96 legitima a pluralidade de ideias pedagógicas.
“Não somos um país que tem apenas a visão de Paulo Freire na educação. Temos muitas outras e é bom que seja assim”
Uma eventual proibição da concepção de Paulo Freire na educação não tiraria apenas ele das escolas. Tiraria inúmeros teóricos e pesquisadores que, apoiados nessa concepção, criaram seus legados. Todo o pensamento que hoje existe no campo da alfabetização e da matemática é inspirado em Paulo Freire, pois é sabido que crianças, jovens e adultos aprendem de verdade quando atribuem sentido ao que fazem, quando debatem ideias, quando testam suas hipóteses, quando conhecem diferentes perspectivas e têm um ambiente que favorece o protagonismo.
Tirar Paulo Freire é tirar Madalena Freire, Delia Lerner, Magda Soares, Ana Teberosky e Emília Ferreiro, a abordagem de Reggio Emilia, tão reverenciada por muitos educadores e famílias (lá na Itália, até escola existe com o nome de Paulo Freire). É tirar a ciência da educação, anos de pesquisa acadêmica, de história da educação no Brasil para se colocar o que no lugar?
“Costumo brincar que se de fato Paulo Freire fosse praticado, o Brasil não teria 24% da população analfabeta funcional”
SC – Eu acho difícil falar em sair da escola, porque eu não diria nem que ele está nas escolas de fato, nem mesmo na formação dos professores brasileiros. Essa é a maior falácia. Ele poderia estar nas escolas mais progressistas, de elite, que acreditam na autonomia dos estudantes desde muito pequenos.
“É uma ilusão pensar que podemos controlar milhões de professores”
Temos pouquíssimas personalidades brasileiras reconhecidas mundialmente. Onde houve opressão, Paulo Freire teve um papel muito importante. Ele era um ser humano da maior qualidade e, quando há alguém assim na nossa História, temos mais é que fazer todas as honrarias possíveis.
Eu fui em seu velório na PUC (Pontifícia Universidade Católica). Quando vi, o caixão estava sem a bandeira do Brasil. Ele não podia ser velado daquela forma. Então, eu fui pedir para que colocassem a bandeira, e vou me orgulhar disso para sempre.
“Paulo Freire representa os princípios da educação democrática e do respeito a como cada um pensa e aprende”
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Sobre o ‘kit gay’
O MEC (Ministério da Educação) afirmou publicamente que o “kit gay”, como ficou conhecido, é uma notícia falsa, conforme nota emitida pela instituição e pela empresa envolvida no caso, a editora Companhia das Letras. Na realidade, o termo “kit gay” é uma alcunha criada para descreditar o material “Escola sem homofobia“. Clique aqui para ler o posicionamento oficial do MEC em relação ao projeto. Em outubro de 2018, o TSE proibiu o então deputado Jair Bolsonaro de falar sobre o assunto.