Para cada três pessoas traficadas no mundo, uma é criança. De acordo com o relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), os motivos para esse crime passam por trabalho infantil, adoção ilegal, remoção de órgãos e exploração sexual.
Nos últimos 15 anos, o número de crianças vítimas de tráfico humano no mundo triplicou. A informação é do Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas, de 2021. A maioria dos meninos seguia para o trabalho forçado e as meninas para exploração sexual. O principal alvo são crianças com condições mais vulneráveis, como baixa renda e migrantes.
Uma pesquisa sobre o enfrentamento à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes no Brasil, revelou que, no mesmo ano, Pernambuco registrou mais de 1.300 casos de violência sexual contra crianças. A Freedom Fund, organização internacional dedicada a acabar com a escravidão, conduziu o estudo em parceria com a Universidade de Nottingham, do Reino Unido, e a Universidade Federal de Pernambuco.
Débora Aranha, gerente sênior de programas do Freedom Fund no Brasil, falou ao Lunetas sobre a situação do tráfico de crianças no país, as condições em comum das vítimas e, por fim, como denunciar esse crime.
Entrevista completa com Débora Aranha
Lunetas – O tráfico de crianças triplicou nos últimos anos, segundo o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas. Como as motivações desse crime, que vão desde a adoção ilegal, remoção de órgãos e exploração sexual, se relacionam com a vulnerabilidade social das vítimas?
Débora Aranha – O tráfico de pessoas é um fenômeno global causado pela desigualdade socioeconômica e de poder, sobretudo pelo lucro. Há sempre alguém que se aproveita da condição da vítima em formas de exploração extrema. Nesse sentido, isso se cruza com diversos sistemas de opressão, como racismo, patriarcalismo, sexismo, homofobia e transfobia. Com crianças e adolescentes, especialmente meninas, a desigualdade é mais marcante. Por fim, o destino mais comum é a exploração no mercado do sexo, em casas privadas, hotéis e bares, ou em locais de grande trânsito e circulação, como rodovias e hidrovias.
Crianças e adolescentes que sobreviveram a esse tipo de situação geralmente vieram de contextos de extrema pobreza, miséria e fome. Também são comuns situações de abandono, negligência e violência doméstica, sexual e sexista. Um terreno fértil para que sejam aliciados e traficados.
Muitas vezes, nem a casa é um lugar seguro para eles. Nesse sentido, entre os relatos das meninas sobreviventes que entrevistamos, é comum o desejo de escaparem de um contexto comunitário desfavorável e de serem parte da sociedade.
A pesquisa de Pernambuco aponta a necessidade de fortalecer a prevenção e também de uma rede de apoio às vítimas. Como garantir que esses dois pontos se efetivem?
DA – Muitas vezes, os esforços estão concentrados no resgate de vítimas e na punição dos traficantes. Apesar de se levar mais de dez anos, em média, para que haja uma condenação, o que contribui para a cultura de impunidade. Mas, diante da invisibilidade do crime e da enorme subnotificação, é preciso centrar mais esforços na prevenção e na proteção de crianças.
Para intervenções efetivas é preciso abordar os fatores individuais, culturais e estruturais, além de discutir essas relações e modificar, mesmo que paulatinamente, normas prejudiciais. Portanto, não bastam ações preventivas isoladas, devemos considerar como a exploração acontece, de que forma acontece e as pré-condições existentes. Isso envolve planejar, desenvolver uma estratégia, colocá-la em prática e avaliar o que funciona, com o cuidado de não revitimizar crianças e adolescentes.
Por exemplo, existem muitos mitos em torno da questão do tráfico sexual de crianças, como a ideia de que elas se drogam ou são sequestradas por gangues violentas. Há também a ideia de que todos os abusadores são pedófilos, ou que o tráfico de crianças envolve levá-las para fora do país. Na verdade, a maioria dos casos acontece na própria cidade ou estado.
Precisa haver diálogo entre escola, conselho tutelar e serviços de saúde, por exemplo, que formam a rede de apoio às vítimas, para reforçar estratégias conjuntas e fortalecer a proteção das crianças, além de capacitação profissional para aprimorar o olhar para identificar e responder a possíveis situações de exploração sexual e de tráfico.
Como o Estado atua, ou deveria atuar, para combater esse crime, partindo de estratégias para a melhoria nas condições de vida das crianças e suas famílias? Há ações nacionais coordenadas?
DA – Pode-se evitar toda forma de violência contra crianças e adolescentes, principalmente por ações governamentais. Cabe ao Estado assegurar a efetivação das políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes, incluindo condições de vidas adequadas para elas e suas famílias, e a garantia à integralidade dos seus direitos. Além disso, deve implementar uma rede de apoio às vítimas, desde o acolhimento, recuperação física e mental, e reinserção socioprodutiva familiar e comunitária.
Desde que o Brasil assumiu junto à ONU o compromisso de enfrentar o tráfico de pessoas, se criaram leis com penas rígidas e estruturas importantes. Mas ainda é preciso garantir o investimento orçamentário efetivo para a implementação adequada das políticas da infância, inclusive do enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes.
Nesse sentido, nossas pesquisas trazem diversas recomendações, como a necessidade de implementar programas de prevenção nas escolas baseados em evidências, aplicar regulamentos e códigos de conduta para evitar o tráfico sexual em locais como bares e hotéis, investir em treinamento especializado para agentes do governo (incluindo professores, profissionais de saúde, policiais, funcionários do judiciário e outros funcionários do sistema de garantia de direitos) e fortalecer a colaboração entre agências.
Muitas vezes as campanhas e as informações não chegam a quem mais precisa. Como aprimorar e ampliar a conscientização para torná-la mais efetiva?
DA – Desenvolvendo campanhas de normas e comportamentos voltadas às comunidades locais, onde o tráfico de crianças e adolescentes é predominante. Essas campanhas devem ter a colaboração de crianças e adolescentes, destacando os caminhos que podem resultar no aliciamento e os riscos dessa situação, inclusive em ambientes virtuais. É necessário também ampliar, com parcerias entre diversos órgãos públicos e a mídia, o alcance das campanhas de conscientização. Mas é importante avaliar se as campanhas estão realmente passando a mensagem a que se propõem.
Como as plataformas digitais podem contribuir para evitar que as redes sociais, por exemplo, se tornem terreno para crimes desse tipo?
DA – A internet é um terreno fértil para o aliciamento de crianças e adolescentes. E também para a disseminação de imagens de conteúdo de abuso sexual infantil, que contribui para o aumento da exploração. Além da adequação das leis para combater crimes virtuais, ainda faltam metodologias específicas para investigar o fenômeno do tráfico sexual on-line de crianças e adolescentes, especialmente no Brasil. Também faltam estudos para explorar os riscos que esses grupos enfrentam na internet, como sexting, extorsão e aliciamento. Além disso, é preciso entender o papel das plataformas digitais e a forma que as empresas de tecnologia podem, deliberadamente ou não, lucrar com o tráfico sexual de crianças e adolescentes. Já é possível identificar situações de risco e conteúdos que violam regras, e as plataformas precisam ser responsabilizadas como parte do problema, e se comprometerem com a solução.
Quais os canais para denunciar? O que acontece após a denúncia?
DA – Há canais que funcionam em todo o território nacional e no exterior. O principal é o Disque 100. É possível relatar qualquer suspeita também aos órgãos da rede local, como o conselho tutelar, a polícia e o Ministério Público. Toda denúncia pode ser feita de forma totalmente anônima e sigilosa. As informações são encaminhadas aos órgãos da rede de proteção local para iniciarem as investigações. Atualmente, há um esforço para colocar em prática a lei da escuta protegida. Isso vai garantir que a vítima não precise recontar sua história em cada local onde é atendida. Dessa forma, evita-se traumatizar a criança ou o adolescente no processo de busca pela justiça.