Quem tiver a oportunidade de vivenciar um espetáculo pensado para acolher famílias com bebês, apenas pare, escute e observe. Tente deixar que os risos, olhares e chorinhos tomem conta do ambiente: observá-los sentir é a grande lição sobre o poder do diálogo mediado pelo teatro.
Com mais de três décadas de caminhada, investigando diferentes técnicas de teatro de animação, o grupo Sobrevento decidiu, há 15 anos, que também se dedicaria ao público de até seis anos. Para isso, tiveram que enfrentar as más línguas e as ideias de que não era possível fazer um texto longo, já que bebês não conseguiriam entendê-lo. “Criamos uma dramaturgia poética a partir daquilo que o bebê nos faz resgatar dentro de nós”, comenta a diretora, dramaturga e atriz, Sandra Vargas. Isso significa, segundo ela, falar sobre coisas profundas, como amor e delicadeza, mas também sobre medo e dor da separação.
Ao contrário do que imaginaram a princípio, tendo em mente cenários que costumam reunir de 30 a 40 bebês ao mesmo tempo, como praças de alimentação de shoppings e parques aos finais de semana, a sala de teatro se revelou um espaço sereno. Sandra relata que os bebês passam a se envolver de maneira mais intensa em determinados momentos das peças, o que indica que ali existe uma mensagem importante para seus corpos. “Temos que nos comunicar pela emoção, da forma menos caricata possível, pois bebês não se comunicam por convenções, e sim pela emoção”, defende.
“Bebês não se comunicam por convenções, mas pela emoção”
Os relatos que os atores recebem das famílias também confirmam o sucesso desse diálogo: semanas após assistirem algum espetáculo, os pais percebem que os bebês estão repetindo em casa gestos, palavras ou acontecimentos encenados. Existe alguma coisa ali – Sandra garante que seja a honestidade da interpretação – que mexe com os sentimentos dos pequenos e ajuda a desenterrar lembranças.
Algumas cenas chamam a atenção da diretora, entre elas a que interpreta uma mulher que sonha em ser bailarina. No meio da peça, Sandra cai durante uma dança e a reação da plateia é sempre divergente: crianças maiores, que conhecem as convenções, riem, enquanto os bebês choram, como se emitissem um sinal de apoio ou como quem diz “eu sei o que você está sentindo.”
Teatro para crianças, entre o diálogo e a experiência
O ônibus colorido estaciona em frente ao público e sempre gera um rebuliço: “O que é isso?”, perguntou um menino de nove anos, certa vez, no sertão da Bahia. A diretora de produção Mariane Gutierrez responde que é um cenário utilizado para contar histórias nas peças de teatro. “Mas o que é um teatro?”, questiona a criança novamente. Com 12 anos de experiência, a companhia de teatro de bonecos BuZum vem levando espetáculos, de forma gratuita, para crianças em escolas públicas, museus, parques e locais de difícil acesso aos aparelhos culturais no Brasil.
Entre os diversos tipos de teatro, é possível que o de bonecos seja um dos mais antigos, tendo sido usado por egípcios, gregos e romanos para encenar as situações do cotidiano. No oriente, foi incorporado pelos japoneses no século 16 e chamado de Bunraku – uma complexa técnica de manipulação direta por três pessoas ao mesmo tempo. Fosse para interpretar festividades em torno das colheitas, vitórias e derrotas da guerras ou costume dos povos, esse outro olhar sobre as experiências passou a ganhar um lugar especial no coração dos espectadores e engrenar novas percepções da realidade. “Os bonecos, com suas diferentes técnicas de manipulação, ganham vida e criam uma conexão muito forte com o público”, defende Mariane.
Mas o BuZum não é um teatro convencional, com endereço fixo, palco iluminado e cadeiras para a plateia. Na verdade, se trata de um ônibus-teatro itinerante, onde as poltronas foram retiradas para acomodar os pequenos. Mariane conta que a maioria das crianças, sem intimidade com os códigos do teatro, não sabe que, diferente de assistir televisão, ali é preciso estar em silêncio ou aplaudir os atores ao final da encenação. “A proposta é que crianças se sintam em uma sala de teatro e experimentem essa fantasia”, diz Mariane.
Sombras, marionetes, fantoches e bonecos de vara: as crianças embarcam em cenas onde tudo é possível, até cortar cabeças, engolir animais inteiros e voar entre nuvens. Mesmo quando são mochilas, camisetas e cadernos que denunciam o bullying sofrido entre adolescentes na escola, aproximando o público de temas espinhosos, existe uma mensagem que marca os mais novos. “Meu filho, de quatro anos, entendeu que não deveria morder o colega na escola”, relatou uma mãe ao sair de uma peça do BuZum. Desse jeitinho, comunicando sem dizer explicitamente, a companhia já trabalhou com temas como preservação ambiental, alimentação saudável, intolerância, entre muitos outros, e estima já ter alcançado sete mil crianças no Brasil.
Intermediando temas sensíveis
“Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus.” Essa frase teria sido dita por uma criança de três anos, encontrada em meio aos escombros de um bombardeio na Síria, conforme relatou uma notícia da Agência EFE, em 2014. No ano seguinte, foi o menino africano Abou, de oito anos, que ganhou as manchetes mundiais, quando foi encontrado dentro de uma mala, tentando entrar no continente europeu. As duas histórias, que abordam temas sensíveis, foram transpostas aos palcos pelo olhar da dramaturga baiana Maria Shu, em uma peça que tem sido encenada para o público infantil há cinco anos, pelo coletivo de teatro “O Bonde”.
Falar sobre conflitos armados e migrações, que expõem a população a situações desumanas, pode parecer um assunto delicado para tratar com as crianças no dia a dia. No entanto, a experiência do ator Filipe Celestino tem mostrado que não se deve subestimar os pequenos quando o assunto é se emocionar. “Muitas vezes, tratamos as crianças como se fossem ingênuas e incapazes de refletir sobre temas dolorosos”, diz.
Na peça “Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus”, a história de Abou é encenada a partir da reconstrução do imaginário do menino ao longo de sua viagem da Costa do Marfim à Espanha, trazendo referências do continente africano, como as do idioma e da cultura iorubá. Filipe conta que, durante oficinas realizadas com crianças em Centros Educacionais Unificados (CEUs) da periferia de São Paulo, um menino se impressionou ao ver o baobá pela primeira vez como sinônimo de sabedoria e ancestralidade, já que só havia conhecido a árvore no livro “O pequeno príncipe”, onde é retratada como símbolo de praga e destruição. “Isso nos mostra o quanto precisamos reconstruir as ideias sobre o que é bom e ruim, bonito e feito, certo e errado”, afirma o ator.
Formado por atrizes e atrores negros periféricos, “O Bonde” investiga e experimenta linguagens e narrativas que possam trazer representatividade aos palcos e construir um imaginário antirracista desde a infância. E é por meio da sensibilidade e do estímulo à fantasia que as encenações que falam sobre racismo, por exemplo, passam a ser sentidas pelo público infantil. “As crianças veem e pensam que aquilo se parece com as suas próprias histórias, com pais que vieram do nordeste ou bolas de meia e brinquedos de garrafa PET” , relata Filipe.
“Nós plantamos sementes e depois as famílias vão para suas casas conversar sobre esses temas”
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