Shows na sala de casa ao som de Rita Lee para o público de fãs cativos da família aproximam e divertem as irmãs “inseparáveis” Manu, 8, e Duda, 6, e a prima mais nova, Lorena, 3. Para esta conexão construída com a simplicidade típica das crianças não faz a menor diferença o fato de Duda ter síndrome de Down, conta a mãe Cláudia Melo. “É uma relação de amor, carinho e principalmente de proteção. Aqui, o sentimento é incondicional, as diferenças são respeitadas e as responsabilidades são compartilhadas igualmente. Cada uma tem o seu tempo e o seu jeito de ser e de pensar”.
O ambiente acolhedor inspira Gabriela Dib, mãe da Lorena e tia das meninas, a entender que a relação delas é construída pelo sentimento mais simples que as crianças podem manifestar. “A Dudinha me inspira todos os dias. Ela trata a prima com muito amor e cuidado e esse sentimento impacta em como a Lorena lida com o mundo. Tudo o que ela faz é verdadeiro e intenso, mostra sempre o lado mais puro de qualquer sentimento”, declara.
Como podemos ser “rampas” para quem tem síndrome de Down?
Saber se comunicar com quem tem síndrome de Down é o primeiro passo para o verdadeiro processo de inclusão, indica Claudia Moreira, responsável por projetos em síndrome de Down na Alana Foundation. Para se adaptar às necessidades de quem tem a síndrome, ela ressalta que “a barreira não é a pessoa com deficiência, mas o entorno”. Então, “qual é a nossa ‘rampa’ para acessar a pessoa?”, questiona. A resposta, segundo ela, é adotar os recursos da escuta sensível e da “linguagem simples”. “Se um professor falasse com uma linguagem mais simplificada, por exemplo, ele beneficiaria a todos”, defende Moreira.
“uma criança que inventa
uma língua só para falar
com outra criança”
“Tradução”, de Ana Martins Marques
Juliana Righini, assistente social e consultora para a autonomia de pessoas com deficiência, explica que o princípio da linguagem simples é a noção de cuidado. As relações com pessoas com síndrome de Down são construídas a partir do querer: querer aprender e ensinar, querer conhecer e ouvir, querer enxergar e se inspirar. “O esforço mínimo de querer se comunicar da melhor forma com uma pessoa que tem um déficit cognitivo é querendo estar com ela”, resume.
“Muita gente procura dicas, mas basta estarem abertas para se relacionar. É olhar nos olhos, não partir do pressuposto que a outra pessoa é infantil, usar falas curtas e objetivas, e até gestos”, diz. “Como cada pessoa com SD é diferente, com diferentes histórias, não há uma instrução que unifique todos. É abrir a possibilidade de querer estar com quem tem uma condição atípica e não olhá-la a partir da sua deficiência”, conclui Righini.
Com linguagem direta e pontos simples, o manual “Atualiza: Síndrome de Down – Trissomia do 21”, escrito pelo educador social Alex Duarte e a ativista Vitória Mesquita, reúne conteúdos técnicos e didáticos para responder questões comuns e desmistificar a síndrome de Down, e ainda, indica como usar a linguagem correta para uma comunicação sensível e efetiva.
Naturalizar as relações a partir da inclusão
Criar oportunidades de pessoas diferentes estarem nos mesmos lugares – na escola, no trabalho – favorece as relações de amizade, como a conexão entre a atriz e influenciadora digital Tathi Piancastelli e a social media Cínthia Militão. “No início eu não sabia como agir, pois ela foi a primeira pessoa adulta com síndrome de Down que eu conheci. Mas depois entendi que era só levar como uma amizade natural”, conta Militão, que conheceu Piancastelli em um intercâmbio nos Estados Unidos, em 2018.
Baseada em conversas e bom humor, a amizade entre elas se fortaleceu quando dividiram o mesmo apartamento na época da pandemia e puderam aprender várias lições uma com a outra. “Eu aprendi a respeitar o tempo da Tathi. Nesse processo, entendi que cada pessoa tem o seu ritmo também. Às vezes, eu queria fazer tudo na mesma hora ou do meu jeito e compreendi que não era bem assim”, diz Militão. “A Tathi é muito segura nas decisões do que ela quer da vida. É focada e luta por isso. Esse jeito dela é algo que me inspira”, conclui.
Para Piancastelli, o momento também foi de aprendizado. “A Cínthia é bem-humorada. A gente conversa, brinca. Nessa época, ela me ensinou a pedir comida pelo aplicativo”, lembra. Hoje, elas trabalham juntas na produção de conteúdo para as redes sociais de Tathi.
A conexão entre as duas prova que normalizar as diferenças possibilita criar relações para além das chamadas inclusivas, mas, essencialmente, verdadeiras. “Não tem um segredo para essa amizade. É agir com ela como qualquer outra pessoa. A gente brinca que aqui é ‘inclusão raiz’. Fazemos piadas, brincamos e também brigamos como quaisquer amigas”, conta Militão.
Piancastelli ressalta que o preconceito não cabe mais e que até mesmo a forma excessivamente cuidadosa em tratar pessoas com síndrome de Down pode ser desagradável. “As pessoas falam que eu sou um anjinho, mas não é assim. Pode até falar para uma criança. Mas eu já sou uma pessoa adulta como outra qualquer. Hoje o preconceito não me atinge mais. Eu já passei por isso e sei como é difícil. Não deixo de ser o que quero ser”.
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Reconhecido pelas Nações Unidas, 21 de março marca o Dia Mundial da Síndrome de Down, quando todo o mundo pode celebrar a vida das pessoas com a síndrome e reforçar a luta por direitos e liberdade. A SD não é uma doença, mas uma condição genética que demanda adaptações garantidas por leis de inclusão e acessibilidade, por exemplo. O IBGE estima que há 300 mil pessoas com síndrome de Down no Brasil.