“Há consequências para a sociedade quando se opta por priorizar uma abertura econômica e não a abertura das escolas.” A afirmação do pedagogo Paulo Fochi, especialista em Educação Infantil e criador do Observatório da Cultura Infantil (Obeci), expõe a realidade brasileira após um ano de escolas fechadas: aumento brutal da fome, índice elevado de evasão escolar e do trabalho infantil, maior número de casos de violência doméstica, impacto direto na saúde das crianças e limitação de espaços e possibilidades de convivência em sociedade.
O educador defende caminhos para a reabertura das escolas de maneira segura: nenhuma ação proposta é difícil de implementar, basta planejamento e responsabilidade compartilhada das prefeituras e das mantenedoras das instituições de ensino. Sugere também que esta transformação aconteça a partir do diálogo entre escola e comunidade: afinal, o que eu posso fazer para ajudar a escola pública do meu bairro?
O Lunetas conversou com o pedagogo sobre os desafios e as possibilidades para a reabertura das escolas. Ele também analisa as ameaças à educação neste momento da pandemia, quando ainda não se discute um plano consistente de reabertura ao mesmo tempo em que o ano de 2020 teve o menor investimento público em educação básica realizado na última década.
Acompanhe a conversa com Paulo Fochi:
Lunetas – Quando a pandemia começou e as escolas brasileiras fecharam, seguindo as recomendações sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS), que tipo de movimentos você percebeu nas instituições de ensino e nos conselhos de educação em relação à preocupação com o cumprimento do currículo escolar?
Paulo Fochi – No primeiro momento, a escola – assim como toda a sociedade – entrou em suspensão, porque acreditávamos que o fechamento não duraria 15 ou 20 dias. À medida em que entendemos que esta situação levaria mais tempo, acompanhamos diversos movimentos das escolas e dos conselhos de educação. As escolas “bancárias” fizeram uma “pedagogia-delivery”, exigindo entregas e medindo produtividade. Empresas de tecnologia desenvolveram soluções para criar métricas e mensurar o nível de atividade proposto nas aulas remotas a fim de planejar compensação de horas. Por um outro lado, muitas escolas ficaram em uma suspensão – quase isenção – em relação ao seu papel com a comunidade, sem nenhuma proposição de manutenção de vínculos e de participação na vida das crianças. Foram poucas as instituições que encontraram uma forma de estar com as crianças mantendo sua fidelidade com os pressupostos pedagógicos que orientam a Educação Infantil enquanto etapa da educação básica. Além disso, a preocupação do Conselho Nacional de Educação (CNE) inicialmente ficou muito centrada na equivalência de carga horária e dias letivos entre o período remoto e presencial. Essa “abordagem” me faz pensar o quão sintomático é a situação em que estamos agora com as escolhas que foram feitas lá no começo. Por isso acho que fazer um balanço pode ser importante para nos ajudar a refazer as escolhas.
Qual o impacto para a educação infantil quando as escolas seguem um calendário de envio de atividades e de tentativa de manter a “produtividade” durante a pandemia?
PF – Esta lógica não serve para a educação infantil, pois não está pautada em aulas e atividades. Na educação infantil, a atividade não é simplesmente uma ação artificial como fazer o preenchimento de tarefas. São momentos de comer, descansar, circular, brincar, ouvir uma história, levar a cabo seus projetos pessoais e tantos outros momentos estruturantes da jornada educativa de uma criança. Muitos dos documentos editados pelos conselhos de educação (nacional, estaduais e municipais), definindo diretrizes para a educação básica, têm dificuldades de contemplar a especificidade da educação infantil e acabam tentando colocar no pacote de “retorno às aulas da educação básica”. Precisamos estar atentos para não fazer um retrocesso e perder a especificidade dessa etapa.
Como você avalia a situação das escolas hoje, após um ano de pandemia?
PF – Neste ano, muitas escolas não tiveram nenhum encontro presencial, diferente do ano passado em que tivemos a oportunidade de nos encontrar presencialmente com as crianças antes de entrar no período remoto. Isso gerou outro desafio: criar vínculos remotamente com crianças que você não conhece, justo no momento em que professores estão mais exaustos e famílias estão mais desorganizadas (emocional, estrutural e financeiramente). Com o agravamento da pandemia no início do ano, tudo parou novamente e as polarizações se intensificaram: um grupo defende a abertura a qualquer custo e outro só aceita a reabertura após a vacinação. Independente de polarizações, sou absolutamente a favor de que os profissionais da educação sejam vacinados o quanto antes, o que não significa que a escola só possa retornar após todos serem vacinados. Além disso, entendo que as duas polarizações não ajudam em nada no enfrentamento do problema: esta situação de abre e não abre e de brigas judiciais mexem com a expectativa de gestores, professores, famílias e crianças.
Por outro lado, tivemos um acontecimento muito sério: algumas escolas privadas retornaram às atividades presenciais em setembro do ano passado, o que não aconteceu com a maioria das escolas públicas.
A implementação de atividades on-line abriu outro abismo social. Como você analisa o impacto a estes estudantes que “ficaram para trás”?
PF – O coronavírus mostrou os problemas que já existiam e intensificou ainda mais a situação das desigualdades. O ensino híbrido não existe na educação infantil, é complicado sustentá-lo no fundamental 1, e cria mais marcadores sociais no fundamental 2, ensino médio e ensino superior.
“Além dos problemas como fome, miséria, emprego e moradia, criamos mais um marcador social que é o acesso à internet”
Historicamente no Brasil, o atendimento em creches e pré-escolas nasceu à margem do sistema educacional com a marca de uma “educação pobre para pobre” ou de uma “educação para a subalternidade”. Isso é muito perigoso, gerando mais hiatos de oportunidades entre os grupos sociais.
Quais os impactos da proposta do Governo Federal em implementar o homeschooling?
PF – Este sempre foi um um projeto do atual governo, e a pandemia cai como uma luva: não se faz investimento na escola, instaura-se o caos e cria-se uma demanda reivindicada pela sociedade por outras formas de atendimento. Com um ano de escolas fechadas, em vez de discutir priorização de vacinação aos professores e plano de reabertura das escolas, temos um Ministério da Educação defendendo o homeschooling e o ministro afirmando que igreja é lugar de educação de crianças. A igreja pode ser um local de celebração aos finais de semana, de ritual simbólico para as famílias, mas não é o espaço de encontro social a que toda criança tem direito.
“Este é um cenário pavoroso, pois limita a socialização da criança com o mundo, a celebração da diversidade, a possibilidade de ser acolhida”
Espero que consigamos nos organizar como sociedade para esse projeto não vingar, pois só aumentará o abismo social.
Qual a importância da escola para além da experiência formativa e de aprendizagens que lá ocorrem?
PF – A escola não se reduz a um conjunto de aulas ou somente ao seu papel na garantia do acesso ao patrimônio sócio-histórico. Ela é um dos equipamentos sociais com maior capilaridade: nenhum posto de saúde tem tanto contato com famílias quanto escolas, por exemplo, e nenhum outro equipamento social tem tanto alcance em tantas comunidades como a escola tem. A escola é um espaço que possibilita a expansão social para crianças e adolescentes. É lugar de encontro! Para muitos, é um dos únicos ambientes seguros e de ampliação de oportunidades de se relacionar com o mundo. No nosso país, a escola é ainda lugar de alimentação para as crianças e de proteção, pois muitos casos de violência doméstica e abuso sexual contra crianças e adolescentes são percebidos e denunciados pela escola. As crianças estão vivendo um ano de muitas ausências em suas vidas.
“A escola é um local privilegiado para a promoção da cultura infantil, por ser um dos poucos lugares em que as crianças encontram outras crianças”
Por mais que os professores tenham se reinventado rapidamente e estejam fazendo um esforço enorme para continuar o vínculo com as crianças e conduzir da melhor forma as atividades remotas, isso tudo não substitui o significado de viver o espaço da escola como um verdadeiro lugar de encontros.
Quais os caminhos deveriam estar sendo planejados e executados para a reabertura das escolas?
PF – A escola não pode ficar mais um ano fechada. Se os políticos estão defendendo a escola como serviço essencial, o que estão fazendo para garantir a abertura de forma segura? Eu realmente defendo que a escola seja reconhecida como um importante direito social de todas as crianças, mas também não podemos nos valer do discurso de que ela é “serviço essencial” apenas para justificar abri-la a qualquer custo.
Para isso, precisamos de investimento federal para pagar recursos humanos e realizar obras de infraestrutura a fim de adequar as escolas aos protocolos sanitários; mobilização pela priorização de vacinação a professores; diálogo intersetorial para uso de espaços alternativos como estrutura de apoio. Em termos práticos, nada disso é megalomaníaco: abrir janelas, priorizar espaços abertos, instalar pias e sabonetes, planejar o atendimento às crianças em grupos e turnos menores para que possam ir à escola todos os dias, estreitar o diálogo com as famílias para que todos se comprometam com os cuidados de si e do outro. É claro que neste momento não conseguiremos atender todas as crianças, o que já ocorria antes da pandemia (nem 40% das crianças de 0-3 estavam em creches, por exemplo). Mas precisamos criar condições para começar a atender aquelas crianças que mais precisam.
“Se não assumirmos a educação como responsabilidade e reivindicação de todos, não vamos avançar para lugar algum”
Você acredita que, com o impacto da pandemia, existem movimentos para que as escolas possam se integrar à comunidade, utilizando a cidade e os espaços públicos?
PF – Mais do que nunca, precisamos fazer da cidade um espaço de acolhimento, de socialização e de exercício da cidadania das crianças. Podemos dialogar com lugares próximos como praças e prédios públicos que podem ser adequados para apoiar o retorno e, em alguns casos, até mesmo possibilitar o fechamento das ruas em determinado horário para que as crianças possam utilizá-las como lugar de aprendizado, convivência e lazer, quando não há área aberta na escola ou próxima dela.
“Se não é possível pensar em um plano de ação para todas as escolas do Brasil, a transformação pode vir de dentro para fora: o que a escola do meu bairro precisa para retornar?”