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Manoel de Barros, o poeta das infâncias: 5 motivos para conhecer

Foto em preto e branco de Manoel de Barros. Um senhor sentado, sorrindo e, ao lado, uma prateleira cheia de livros.

A poesia é uma “voz de fazer nascimentos”. É assim que o poeta sul-matogrossense Manoel de Barros definia a escrita literária poética. Para ele, a cada vez que uma poesia é criada, é como se fosse criado junto com ela um novo jeito de enxergar o mundo. Manoel falava da infância como um território de liberdade, e defendia o “criançamento” das palavras, ou seja, revolucionar a linguagem da forma como ela nos é apresentada, e fazer dela cenário de brincadeira.

O Lunetas foi acompanhar de perto o que a mostra traz, e compartilha nesta matéria os pontos mais interessantes da visita, e também daquilo que a obra do autor desperta. Fizemos também uma cobertura pelos stories no perfil do Lunetas no Instagram. O registro traz entrevistas com curadores e com os educadores do espaço.

Manoel de Barros e as infâncias

Não por acaso, o escritor ficou conhecido como “o poeta das infâncias”, sobretudo por sua trilogia “Memórias inventadas” (2005, 2006 e 2007), livros em que ele apresenta a infância em três períodos que nunca terminam, tempos que na verdade são apenas um. Para o poeta, “a escrita de uma memória teria que ser sempre a escrita de uma infância – imaginária, sim, porém, enraizada na experiência vivida”, diz a descrição da obra publicada pela Companhia das Letras.

“As três idades do homem seriam três infâncias”, diz o texto.

5 motivos para conhecer Manoel de Barros

Não foi fácil escolher apenas alguns, mas, abaixo, selecionamos cinco motivos pelos quais vale a pena levar a sua criança para conhecer a mostra, e estimular a relação com a poesia a partir da poética do autor.

O escritor não tinha o foco de sua obra voltado para o público infantil. Alguns livros, como “Cantigas para um passarinho à toa” (2003) e “Exercícios de ser criança” (2000) ganharam edições (e reedições recentes) com uma estética e materialidade especificamente pensadas para contemplar o leitor em formação.

Porém, é justamente aí que reside o maior ponto de encontro da sua escrita com as crianças. Isso porque a sua poesia guarda uma infância genuína, essa que vive em todos nós, do zero aos cem anos. A infância é o ponto de partida comum de toda a sua obra, é nela que ele se inspira e dela que ele extrai o substrato de suas palavras inventadas.

“A infância em Manoel de Barros é um modo de ver o mundo, é a infância do olhar”, destaca uma das curadoras da exposição, Bruna Ferreira da Silva.

Daí o valor social de entrar em contato com essa obra, tão cheia das minúcias de um olhar inaugural sobre o mundo. A importância de ressignificar aquilo que nos rodeia e explorar o mundo com a curiosidade de quem as vê pela primeira vez é característico da infância, e da poesia do autor. Manoel de Barros dizia, por exemplo, que somente as crianças e a poesia conseguem fazer um verbo “delirar”, por sua habilidade inata de transformar o sentido das coisas. Para isso, ele criou até mesmo um verbo próprio: “transver”.

“No descomeço era o verbo
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função do verbo, ele delira
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio”

Outro aspecto marcante da exposição é a relação do poeta com sua família, que aparece em poemas, cartas, desenhos e em detalhes ocultos que podem passar despercebidos se não olharmos com atenção.

O primeiro livro de Manoel, por exemplo, “Compêndio para uso dos pássaros” (1960) traz na capa original criações artísticas dos seus filhos. João, que na época tinha cinco anos, fez o desenho de um pássaro, e Martha, de nove, criou a tipografia do título.

Mais adiante na mostra, o público pode ler uma carta de 1980, escrita pelo filho João na época “Arranjos para assovio”. A carta emociona pela forte relação familiar e do cotidiano na fazenda com os filhos que João descreve, e permite ao público conhecer uma das facetas da paternidade do autor.

Pai, nunca tive coragem de dizer nada a respeito da sua poesia. Porque me considero suspeito e porque sei que o senhor fala de coisas muito ligadas a nós, lá de casa. E isso, é claro, influi no julgamento. Não que o senhor fale ou escreva sobre nós, mas toca em pontos comuns. E quem é ligado como a gente é, sente claramente, e tudo parece muito simples como alguns dizem que não é“, escreve o filho, descrevendo o afeto que sente pelo pai e ao mesmo tempo se colocando como parte inerente da sua matéria-prima poética.

Muito da vitalidade poética de Manoel de Barros se deve ao fato de que ela transporta o leitor para uma infância genuína situada em um quintal tão metafórico quanto concreto, onde a criança brincava de inventar brinquedos em objetos cotidianos. Onde pedra não pedra, nem chão era chão, e sim cenário para “transver” o mundo, esticar horizonte, puxar rio pelo rabo, “prezar insetos mais que aviões”, e “escutar a cor dos passarinhos”, como o poeta dizia.

O poema abaixo, “O menino que carregava água na peneira”, presente no livro “Manoel de Barros – Poesia completa” (editora Leya, 2013), simboliza bem a relação da escrita poética de Manoel com as coisas rasteiras da existência.

“Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!”

Nos poemas de Manoel de Barros, assim como no universo imaginário da criança, as coisas nunca são o que elas são concretamente. As árvores são criaturas que falam, um menino pode morar numa garça, e uma rã pode sonhar em ser passarinho. As palavras brincam com o leitor, e vice-versa. O resultado é um reencontro com a criatividade, tão comum ao modo de a criança habitar o mundo.

“Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma”

No vídeo abaixo, a jornalista, atriz e escritora Bianca Ramoneda comenta diversos aspectos da obra de Manoel de Barros, como o profundo conhecimento da língua que se entrevê nas suas “peraltagens” com as palavras.

Na fonte da poesia de Manoel de Barros existe uma relação de promiscuidade com a natureza – tanto a das palavras quanto a das plantas e dos bichos (inclusive os humanos, sobretudo os rasteiros). No entanto, o mundo que lemos nos versos do poeta parece filtrado por um olhar infantil, desacostumado: brincando com os termos e as normas da língua, Manoel ia derrubando as paredes entre espécies, gêneros, famílias, reinos. “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios”, escreveu ele em “O Livro das Ignorãças” (1993).

Neste vídeo [abaixo], a questão é pensada por quatro biólogos: Bruss Lima, que estuda as atividades cerebrais de primatas não humanos; Carlos Hotta, cujas pesquisas se concentram no relógio biológico das plantas; Hugo Aguilaniu, especialista em genética do envelhecimento e diretor-presidente do Instituto Serrapilheira; e Nurit Bensusan, que atua no campo das políticas públicas para a conservação da biodiversidade e escreve livros dedicados à popularização das ciências.

(Fonte: Itaú Cultural)

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