Para o povo indígena Kawaiete, habitante do Parque Indígena do Xingu (MT), são as andorinhas, quando aparecem em passarada no céu, que sinalizam a chegada da temporada de chuvas. Já para os Yudja, seus vizinhos, o primeiro sinal da chuva é anunciado pela estrela Awïa Taba, quando desponta no céu no início da noite ainda fria de setembro. O clima do Xingu, região de transição entre o cerrado e a floresta amazônica, sempre foi marcado pelas estações de seca e chuva. Orientados por esse ciclo da natureza, os povos indígenas da região organizam todas as suas atividades econômicas, sociais e culturais. Cultivo de roças, festas, pescarias, caçadas… Até mesmo a escola indígena acompanha esse calendário de cheia e seca dos rios, lagos e igarapés.
Ao longo dos séculos, esse sistema vem alimentando as comunidades, fornecendo materiais para construírem suas casas, gerando remédios para doenças. O conjunto de saberes em torno dos ciclos da natureza e de seu sistema de manejo faz parte do que se denomina “conhecimentos tradicionais”. Os povos indígenas, por sua intimidade com os ambientes que habitam, também sabem perceber com maior antecedência os sinais de desequilíbrio e reagir para restabelecer o ambiente. Por exemplo, quando percebem que uma terra está “cansada”, fazem o pousio para que ela possa se regenerar. O resultado disso? As florestas dentro das terras indígenas estão em sua grande maioria preservadas.
Porém, os impactos do desmatamento no entorno dos territórios indígenas, assim como a crise climática global, têm alterado a dinâmica das chuvas, o período da seca, o aumento da temperatura, a circulação dos ventos e os sinais da natureza que sempre anunciaram, para os povos indígenas, as mudanças das estações.
No filme “Para onde foram as andorinhas?”, dirigido por Mari Corrêa e produzido pelos institutos Catitu e Socioambiental, são relatadas algumas percepções das mudanças climáticas na vida de povos indígenas do Xingu. Por exemplo, de que maneira o aumento do calor fora da terra indígena altera as condições de vida das comunidades e pessoas que vivem dentro dela, como o descontrole do fogo – porque as matas estão mais secas -, os incêndios, a perda de produtos agrícolas pela falta de chuvas e o aumento da temperatura.
Os anciões indígenas relatam no filme suas preocupações com as futuras gerações. “E se não houver mais alimentos para eles encontrarem nas roças e florestas?”, pergunta Tuim Kawaiwete. “E se não tiver mais florestas para as crianças buscarem nossa medicina?”, questiona Tinini Juruna. Crianças usam amplamente a medicina Yudja durante seu crescimento. É por meio de uma sofisticada observação da natureza que as famílias escolhem remédios (waapa) para passarem nas crianças. Eles selecionam elementos da natureza que têm certa habilidade, como a aranha, que tem o dom de tecer teias e que, quando aliada ao desenvolvimento das meninas, auxilia no aprendizado da tecelagem.
No filme Waapa, curta-metragem que dirigi junto com Renata Meirelles e David Reeks, do projeto de pesquisa Território do Brincar, apoiado pelo Instituto Alana, registramos alguns desses rituais de cuidados com as crianças. A criança yudja constrói seu corpo a partir das habilidades dos elementos da natureza. A constituição da pessoa parece ser distinta da noção que temos de indivíduo, porque faz parte da formação do corpo da criança a composição de saberes e habilidades advindas da relação entre os seres humanos e os não humanos. Podemos assim dizer que se trata da formação de um “corpo coletivo”.
Esse corpo coletivo é constituído pelo uso de remédios, pela alimentação, pelo dia a dia dentro da floresta; mas é coletivo também porque as crianças crescem rodeadas por uma comunidade que compartilha conhecimentos tradicionais que são transmitidos de geração em geração. Um processo educativo que forja seus conhecimentos e habilidades para que cresçam com autonomia e cientes da história de seu povo.
Esse corpo coletivo constrói um sentimento maior do que pertencer, se trata da sensação de totalidade.
De fazer parte de um todo. Assim, o impacto sentido na floresta, nos animais e no equilíbrio ecológico do território é sentido também nos cuidados e na proteção para o desenvolvimento integral das crianças que fazem parte dessas comunidades indígenas.
O crescimento é uma oportunidade de aprender a partir da repetição dos ciclos da natureza.
Esse ritmo mágico é a base do conhecimento da criança, onde ela é “alfabetizada” para reconhecer os sinais da sazonalidade e seus desequilíbrios. Elas vivenciam em seus corpos as mudanças das estações: brincam nas praias quando o rio está seco e, quando enche, aprendem a pescar usando arcos e flechas. O território é onde o conhecimento de seu povo habita. Em suas mitologias, os criadores fantásticos de seus povos vivenciaram a saga da criação da vida nesse mesmo território, como Senã’ã, demiurgo dos Yudja que, percebendo a necessidade de seus filhos, soprou suas pegadas na praia e criou mais crianças para que eles pudessem brincar.
Esse vínculo que liga, desde as origens, as crianças ao seu território é uma das bases para que perpetuem seus modos de vida e, assim, conservem suas florestas. Ao mesmo tempo, a floresta é a fonte para a sua saúde e desenvolvimento. É que sem as florestas para vivenciarem suas brincadeiras, sua medicina e seus aprendizados, o conjunto de saberes que tem sido responsável pela sua preservação está ameaçado.
A garantia do direito constitucional à terra é o chão que os povos indígenas têm para perpetuar a história e cultura de seus povos.
As mudanças climáticas têm sido sentidas pelos povos indígenas de forma muito mais sofisticada e sutil do que para os povos ocidentais, sobretudo urbanos. Sentimos quando vivemos temperaturas extremas e quando fenômenos naturais muito raros no Brasil começam a acontecer, como foi o caso da neve no sul do Brasil, em julho de de 2021. Ainda assim, não compreendemos exatamente como a preservação de florestas ou as queimadas na Amazônia, que por vezes parecem tão distantes, afetam diretamente nossas vidas.
Crianças indígenas, como em todas as sociedades, representam o elo mais frágil de uma comunidade. Por estarem em estado peculiar de desenvolvimento, necessitam de maior proteção e, sem um território protegido, têm suas condições de vida ameaçadas no presente e no futuro. Na Constituição Federal, todas as crianças têm direito à proteção integral, como prioridade absoluta, estabelecida em seu artigo 227, assim como os territórios indígenas são de usufruto exclusivo dos povos originários, em seu artigo 231.
A restrição à proteção e demarcação de terras indígenas é uma ameaça ao clima e também ao desenvolvimento integral das crianças indígenas, que sofrem com a marginalização de suas infâncias longe de um ambiente protegido e privadas de usufruir da biodiversidade associada aos seus modos de vida, tradições culturais e religiosas, e fruir da sua infância e adolescência com equilíbrio ambiental e bem viver.
O que acontece às infâncias indígenas é o prenúncio do futuro de todas as crianças.
Sem a preservação das florestas e dos territórios indígenas, será muito difícil garantir uma vida segura, saudável e sustentável para as próximas gerações. Como narra Tinini Juruna,sobre uma fala de Senã’a em “Para onde foram as andorinhas?”,
“Dizem que o criador perguntou assim:
– Os brancos estão tratando bem vocês? Pode me contar o que os brancos estão fazendo com vocês? (…)
O criador disse:
– Quando eu vir secar esse rio onde vocês estão, com os brancos destruindo tudo, eu não saberei o que vou fazer. Quando não existirem mais sinais de vocês, quando só restarem os brancos, eu vou afastar os sapos que seguram as duas pontas do céu. O céu vai cair. E vai acabar tudo.”
* Paula Mendonça é pesquisadora das infâncias, mestre em educação, codiretora do curta-metragem Waapa sobre as brincadeiras das crianças do povo Yudja, uma correalização Território do Brincar e Instituto Alana. Atualmente, coordena as áreas de cidade e educação do programa Criança e Natureza, do Instituto Alana.
** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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