Este ano, G., 3 anos, constava na lista da minha sala com um asterisco, por conta do seu diagnóstico: transtorno global de desenvolvimento. O primeiro gesto de G. foi me estender os braços para que eu o abraçasse. Junto de seu sorriso imenso, perdi o medo. Abracei não só o seu corpo, mas também a ideia de estarmos juntos, aprendendo tudo o que pudéssemos um com o outro. Só então soube que, na verdade, estava abraçando um igual.
A rotina e o esforço
Com muito treino, estímulo e, principalmente, fé, há possibilidades de que um dia G. possa andar sem precisar da ajuda de ninguém. Por isso, optei por usar o mínimo possível sua cadeira de rodas. Para ir de um lado para outro, ele engatinha, vai no meu colo ou tenta andar enquanto eu o apoio pelos braços, impulsionando-o com minhas pernas. Embora isso tome mais tempo, e eu tenha outras 26 crianças sob minha supervisão que nem sempre têm paciência de esperar, sem contar as recentes dores nas costas, tem valido a pena o esforço.
Outro dia, ao atravessarmos o corredor da escola até a mesa do lanche, comentei que ele estava muito mais “durinho”. Suas pernas pareciam mais firmes e os passos mais rápidos. “Você não tem medo que eu caia?”, ele me perguntou. Respondi que não e devolvi a pergunta: “Você não tem medo de cair?”. E ele: “Não. Sei que você tá atrás de mim para me segurar, oras.”
Uma rede de apoio que segura
Depois, fiquei pensando que devia ter dito a ele que eu também era passível de queda, que minhas pernas fraquejam, que meu ânimo cai de vez em quando, que minhas soluções e minhas ideias nem sempre funcionam, que minha saúde quase nunca está 100%. Mas que, como ele, continuo caminhando porque atrás de mim tem gente me segurando, o que me faz não ter medo de cair.
Fazem parte desta rede de apoio pessoas bem intencionadas, que me sustentam e me apoiam do mesmo jeito que faço com G. Minhas colegas professoras, a assistente técnico-escolar, as meninas da limpeza, a merendeira, a coordenadora, a secretária, as motoristas dos transportes escolares. Além de todas as crianças que estão sempre me ajudando a pegar mochila, a limpar o nariz, a recolher o agasalho, a amarrar o tênis, a pegar a cadeirinha e, principalmente, a cuidar de G. de um jeito amoroso e natural.
Sem esse time maravilhoso, nós dois estaríamos mais lentos, mais tristes e menos motivados. Por causa dele, nós não caímos, e vamos andar cada vez mais rápido. O pai e a mãe do pequeno, apesar da angústia e insegurança, confiam em todos nós e me dão força diariamente ao valorizar a escola e o trabalho que realizamos.
Todos precisam ser incluídos
Toda vez que a palavra inclusão é mencionada no ambiente escolar, logo imaginamos incluir alguém com uma deficiência explícita – física, intelectual ou psicológica -, e que precisará de ajuda para conviver e aprender em um ambiente com outras pessoas “normais”. Essa fantasia em torno da deficiência torna mais difícil a discussão e o amadurecimento de educadores e famílias. Minha experiência com G. me fez entender a diferença. Seja ela uma deficiência, uma qualidade ou simplesmente uma característica, como parte do ser humano.
“Por isso, todos, em algum momento da vida, precisam ser incluídos”
Cada uma das centenas de crianças que cruzaram comigo nesta vida era de um jeito e me via de um jeito. Para cada um dei e recebi coisas diferentes. Tímidos, agressivos, falantes, inteligentes, arredios, desconcentrados, lunáticos, medrosos, gordinhos, magérrimos. Crianças com alguma necessidade alimentar ou de saúde sutil, carentes, mimados, agitados, terríveis, abandonados, chatos, malvados, tristinhos ou alegrinhos, com famílias complicadas. Cada um deles mereceu de mim um olhar especial, momentos de dedicação, uma conversa individual, um carinho diferente. G. é apenas mais um deles.
“Faz parte da profissão de professor acolher a diferença e, ao mesmo tempo, incentivar a turma a ser um grupo de verdade”
Empatia pelo próximo
Quando torci o pé e precisei de uma rampa no local de trabalho, pensei na vida de quem usa cadeiras de roda e muletas todos os dias. Ao pegar, uma conjuntivite fortíssima, pensei como é horrível letras tão pequenas, quando a gente mal consegue enxergar. Penso nas minhas dificuldades que não consigo resolver, nas minhas incapacidades, nas coisas que não consegui aprender. Reflito sobre as vezes que não fui aceita em um grupo ou lugar por não corresponder às expectativas alheias, quando fui pré-julgada. Tudo isso doeu, mas passou. Imagino como deve ser reviver essa situação em todos os momentos.
Ao conviver com G., percebo que mais do que a consciência racional de uma deficiência, seja ela qual for, é preciso sensibilidade e firmeza para encará-la e transpô-la. Aí está o bonito e o difícil. Se é pelo outro que percebemos nossas diferenças, é também na empatia do que nos faz iguais que encontramos o conforto e a superação. Somos iguais por sermos humanos.
Como um abraço
Como todo abraço, a inclusão envolve disposição de corpo, mente e alma. Causa medo e prazer, traz conforto e aprendizado, é desejável e importante. Exige um olhar para o outro com base em si. É necessária para seguir crescendo como ser humano.
Desde que crianças e adolescentes com algum tipo de deficiência – auditivas, visuais, motoras, cognitivas, afetivas – começaram a chegar às salas de aula, sabia que uma hora seria a minha vez. Além de ter acompanhado amigas que sofreram para conseguir compreender a deficiência explícita de seus alunos, famílias inseguras, educadores despreparados, crianças assustadas, infraestrutura precária, acompanhei o descaso das instituições – públicas e privadas – com essa situação, deixando em nossas mãos a tarefa de “praticar a inclusão a todo custo”. Houve muito choro, revolta e estranhamento.
A questão da inclusão é de difícil entendimento prático e teórico para qualquer educador, mas não precisa ser solitária. Juntos, na troca de ideias, podemos aprender mais, sentir mais apoio em nossas dificuldades e também comemorar nossos sucessos.
*O texto original foi escrito por Karina Cabral, psicóloga e professora da Emei Pérola Ellis Byington, em São Paulo (SP). A publicação na íntegra está no site do Avisalá.
**Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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O que é transtorno global do desenvolvimento?
Transtorno global do desenvolvimento (TGD) ou Distúrbio Abrangente do Desenvolvimento (PDD, em inglês) é uma categoria que engloba cinco transtornos caracterizados por atraso simultâneo no desenvolvimento de funções básicas, incluindo socialização e comunicação. Os transtornos globais do desenvolvimento são: autismo, Síndrome de Rett, Transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação ou autismo atípico.. Os pais, apesar de ansiosos e amedrontados, estavam firmes no propósito de oferecer ao filho a experiência de ir à escola, além de seguir o tratamento na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), uma vez por semana.