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‘Estou entediado’: tudo bem as crianças ficarem à toa nas férias

Ficar a toa: uma criança está deitada nas costas do sofá.

“Meu filho reclama muito de tédio”, conta Cris Vasconcelos, mãe de Bernardo, 6. “Ele é filho único e não tem muitas crianças por perto”. Então, a solução que encontrou para entreter seu filho nas férias foi brincar de criar empresas. São escolas, lava-rápido, e agora, uma empresa de artesanato, em que produzem colagens, pinturas e bonecos de biscuit.

A estratégia vai ao encontro do que diz a neuropsicopedagoga e psicomotricista Maria Cristina Silva. Ela recomenda explorar o “faz de conta”, usar elementos simples, como tecidos e galhos, ou fazer algo que relaxa, traz paz e bem-estar. Além disso, ela lembra que o ócio é uma importante pausa para nos restabelecermos. “Quem sabe deitar num gramado e observar o céu, dar nome às nuvens e apreciar as estrelas. Tirar cochilos em uma tarde. Olhar o movimento pela janela ou apreciar uma música”, sugere.

Na casa de Manuela, 13, e Nicole, 8, está tudo bem simplesmente ficar à toa nas férias. Além de entenderem o período como um descanso temporário, quando se suspendem os compromissos e as atividades habituais, as meninas têm “liberdade de encontrar o que fazer por elas mesmas”, conta a mãe Vanessa Sanfins. Com a escola fechada, principal rede de apoio dela e do companheiro, que são autônomos, não precisar manter as crianças ocupadas o tempo inteiro deixa a rotina da família mais leve.

Entre uma infinidade de brincadeiras, passeios, leituras e sessões de filmes, muitas vezes basta ter “um adulto presente afetivamente para que a criança se sinta segura para ficar sozinha e buscar outras atividades. Ninguém precisa ensinar ou mostrar como fazer”, diz a pedagoga.

“Quando carregamos a bateria do vínculo, a tendência é que as crianças fiquem mais tranquilas para buscar o que fazer”

Assim, é a partir do “não fazer nada” que a criança pode se conectar com o mundo e com ela mesma. É o diz o estudo “Pensamento, experiência e o tempo do ócio na educação infantil”. Para Silva, é um tempo propício para o autoconhecimento. Isso porque “a criança pode descobrir seus gostos, entender sua personalidade, e passa a lidar com processos de começo, meio e fim”.

É em momentos de ócio, durante atividades ao ar livre ou atividades criativas, por exemplo, complementa a psicóloga Adriane Wassouf, que a criança vai ser capaz de “nomear” o que sente e se ver como um indivíduo. Além disso, poderá assimilar, refletir e compreender como as coisas funcionam. “É importante a criança se sentir livre para criar novos repertórios e ter o prazer de fazer coisas que gosta.”

Se uma criança reclama de tédio…

Então, pais e cuidadores podem perguntar “o que você gostaria de fazer?”, “que brincadeira te deixaria feliz?” ou “você quer me ensinar uma palavra engraçada que aprendeu ou uma música que ouviu?”. Ao refletir sobre essas questões, “a criança pode sentir-se protagonista e acumular recursos para brincar sozinha depois”, sugere a especialista.

“É importante a conexão para tentar encontrar um objetivo em comum que agregue no repertório emocional da criança”

“A criança precisa brincar para pensar, o que demanda tempo, reflexão e organização simbólica. Mas isso só será possível quando ela estiver pensando em ‘nada’, no silêncio e no atuar do seu brincar”, conta Wassouf. Se não for suficiente, a solução é acolher, dentro do que é possível para a família no momento. “Toques de mãos, abraços e colo podem colaborar para a regulação emocional da criança”, detalha. Silva comenta que, muitas vezes, os protestos sobre não ter o que fazer podem ser pedidos de atenção. “Não há problema estar ao lado da criança e oferecer apoio emocional, sem excessos.”

“Ao ouvirem que as crianças estão entediadas ou cansadas de fazer ‘nada’, alguns pais podem encarar o comportamento como preguiça, ingratidão ou desperdício do que gostariam de ter aproveitado em suas infâncias”, diz Wassouf. Mas, “lidar com a pressão e a exigência de sempre aprender algo, sem tempo para descanso e estímulo ao ócio criativo, acaba transformando a brincadeira no molde de uma vida adulta pautada pelo trabalho. Além de parecer mais fácil ajustar a agenda das crianças para que ela funcione como a dos adultos, encher a programação nas férias está relacionado à noção de que ser um adulto próspero e emocionalmente estável é ser produtivo, multitarefa, preparado para o que der e vier.”

“Poucos compreendem que a maneira que uma criança saudável age é totalmente diferente da maneira que opera um adulto”

A incapacidade de muitos adultos em lidar com o tédio se reflete em agendas infantis repletas de coisas para fazer. No entanto, o ideal seria priorizar o descanso em período de recesso, complementa a psicóloga. “Tudo precisa ser dosado e respeitado pelo o que a criança é capaz de suportar.”

De acordo com ela, “quando a criança tem a liberdade de ser ela mesma, sem a pressão de ‘ter que fazer’ algo, ela tem muito a ganhar. O ócio é como uma massa de pão descansando. Isto é, não vemos o crescimento durante o descanso, mas todos os nutrientes estão sendo fermentados e funcionando ativamente para um propósito, o de crescer”.

“Os ativos criativos na criança estão em expansão contínua mesmo que, de fora, esse processo possa ser visto como nada. É importante ‘descansar’ para crescer”

Os efeitos de uma vida sem ócio, segundo Wassouf:

  • Altera a forma como essa criança lida com a pressão, de sempre estar preparada para fazer algo;
  • Dá a sensação de que, para ser amado, precisa estar produzindo e operando;
  • Faz entender que o descanso, bem como o tédio e o ócio, são sinônimos de fracasso;
  • Por fim, gera sentimentos de insegurança consigo próprio.

Contra a ideia de produzir e ter resultados, o ócio, para a criança, está fortemente ligado à brincadeira. “Não há necessidade de preencher o tempo todo da criança; ela precisa de liberdade para buscar o que a faz feliz”, diz Silva. O adulto precisa apenas estar disponível. “Haverá momentos que estar perto será suficiente, para que a criança busque o que lhe traz prazer, sem necessidade de um objetivo específico. Porém, se o vínculo dela com o adulto responsável não estiver fortalecido, apenas incentivar que brinque sozinha não é garantia de sucesso. Isso porque a criança tentará contato o tempo inteiro com o cuidador”.

Brincar é prescrição médica

Nas duas últimas décadas, o tempo livre das crianças diminuiu 25%, segundo a Academia Americana de Pediatria. Por isso, profissionais da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) têm receitado brincadeiras diárias e reforçado a importância de proporcionar ambientes de brincadeira durante a infância. Para que o ócio funcione como um motor que provoca o pensar, a contemplação, a escuta atenta, a conversação consigo mesmo, com o outro e com o mundo, diz o estudo “Pensamento, experiência e o tempo do ócio na educação infantil”, não pode acontecer o “entupimento do tempo da criança”. Ou seja, com horários e compromissos, em rotinas exaustivas, como “um treinamento para ser adulto”.

O ócio não é inimigo, muito menos após a pandemia

“Mesmo com a possibilidade de acordar mais tarde, aproveitar o dia e brincar ao ar livre durante as férias, há o desafio de pais e cuidadores em equilibrar todos os pratinhos durante as férias das crianças”, diz Wassouf. Para um tempo de qualidade, a pedagoga orienta priorizar o contato físico e o prazer de estar junto, e estabelecer regras para o uso de telas. “Expostos a tantos estímulos, ficar sem fazer nada pode ser um desafio ainda maior. Sem contar que isso pode trazer dificuldades de concentração que impactam no sono, nas interações sociais e na regulação do comportamento, prejudicando o seu desenvolvimento.”

Silva reforça a importância do exemplo: “se nós passamos a ter momentos livres e de descanso, as crianças ficam mais confortáveis e verão com naturalidade o ócio”. Ao se reconhecerem no outro, complementa, “as crianças vão aos poucos se conhecendo, formando sua autoestima e sentindo-se à vontade com quem são. Assim, surgem as ferramentas necessárias para lidar com tédio e apreciar a sua própria companhia.”

A recomendação de “pegar mais leve” nesse período de recesso tem a ver também com os impactos que a situação de confinamento e baixa interação social da pandemia trouxeram. “Isso sobrecarregou o psicológico da criança com mais intensidade, e prejudicou também consideravelmente o modo de viver das famílias”, diz a psicóloga. “Momentos de ócio podem ser justamente o que a criança precisa para se recuperar.”

Brincar é antídoto para o estresse na infância

Cerca de 35% de crianças e adolescentes no Brasil sofrem de ansiedade ou depressão, segundo levantamento do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). “O adoecimento psíquico associado a altos níveis de ansiedade não-elaborados no período pandêmico tem refletido em quadros de atraso no desenvolvimento, depressão, síndrome do pânico, transtornos ansiosos e investigações para transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)”, compartilha Wassouf. Ou seja, “a pressão de ‘ter que fazer algo’ pode deixar crianças e adolescentes expostos a picos de ansiedade considerados altos, que muitas vezes acabam se transformando em angústias e dores emocionais significativas”. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, 9,3% dos brasileiros (aproximadamente 18,6 milhões) tinham algum transtorno de ansiedade.

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