As escolas costumam desempenhar um papel fundamental no acolhimento de pessoas após desastres climáticos. Isso aconteceu no Rio Grande do Sul, após a enchente de maio, no ano passado. Abrigados nesses espaços, meninos e meninas puderam voltar a acreditar que a vida continuaria mesmo após uma sucessão de perdas.
“Minha mãe pediu para a gente não se decepcionar porque perdeu as coisas”, conta Ângela, de 11 anos. Sem o material escolar, que foi levado pela água, a menina teve medo de interromper os estudos naquele período. Mas a mãe dizia a ela que o material não tem problema. “O que tem problema é a nossa saúde. A gente tem que cuidar da gente.” Hoje, ela e a família moram em Gravataí, na região metropolitana, em uma casa cedida pelo Programa de Compra Assistida, destinado a pessoas vítimas de catástrofes.
Para Vinícius Rhavi, de 10 anos, a parte mais difícil das enchentes foi ficar longe da escola, em Eldorado do Sul, na região metropolitana, porque não conseguia encontrar os amigos e nem retomar a sua rotina.
Segundo dados divulgados em 2024 pelo Unicef, só no Brasil, pelo menos 1,17 milhão de alunos tiveram os estudos interrompidos por eventos climáticos, em especial enchentes e secas. O levantamento brasileiro levou em consideração a tragédia no Rio Grande do Sul, que afetou mais de 2 mil escolas da rede estadual de educação. Mais de 741 mil estudantes ficaram sem acesso às aulas. No mundo, pelo menos 242 milhões de estudantes em 85 países tiveram a sua vida escolar impactada por eventos climáticos extremos recentes.
Retomar as atividades e um pouco de esperança
No Sarandi, bairro periférico da cidade de Porto Alegre (RS), a Escola Municipal de Ensino Fundamental João Goulart foi uma das 14 escolas municipais atingidas pela enchente. A água chegou à marca de 4,5 metros de altura e a escola permaneceu 30 dias alagada. A EMEF demorou três meses para conseguir receber novamente seus mais de 650 alunos. Nesse período, as aulas foram transferidas para outra região da cidade.
Um ano depois, aos poucos, a escola recupera tudo que foi perdido: cores, quadras, carteiras, biblioteca. Somente em maio deste ano voltou a ter refeitório e a servir as refeições como sempre fez. Parte significativa da recuperação, que envolveu limpeza e melhorias de infraestrutura, foi realizada em mutirões pela própria comunidade escolar após a água baixar.
A maioria das crianças atingidas ficou longe da escola por meses. Seja porque estavam em abrigos, casas de familiares, outras cidades, ou porque se mudaram. No caso da João Goulart, professoras como Leonilda de Souza buscaram saber a situação de cada aluno, mesmo os que não retornaram para a instituição. Professores como ela, de forma autônoma, criaram uma rede para que os estudantes permanecessem conectados ao estudo. As escolas das redes municipal e estadual adotaram métodos próprios para manutenção do ensino, como aulas on-line, atividades entregues nos abrigos e mudança temporária para instituições não afetadas.
As crianças percebem as mudanças no ambiente. “A escola está diferente. Mudaram as classes, os professores, as quadras. Tudo. A escola inteira. Antes tinha sino e agora é só um alerta”, conta Yohan, de 11 anos. Já Luiza, de 9 anos, destaca as melhorias. “Ela está bem mais bonita do que já era antes. Eu adoro aqui na escola”, acrescenta Luiza, de 9 anos. Os dois moram no Sarandi, bairro periférico de Porto Alegre.
Por que as escolas são importantes em desastres climáticos?
Como não podiam retornar às suas casas, a escola passou a ocupar um lugar de segurança e suporte emocional ainda maior na vida das crianças, acredita Manoel José Ávila da Silva. “A gente percebe o trauma no cotidiano da escola. Um prenúncio de chuva, por exemplo, provoca uma reação muito forte nos estudantes”, relata o diretor da EMEF João Goulart. “A escola sempre promoveu um vínculo forte, mas esse vínculo se intensificou durante e pós-enchentes.”
A professora dos anos iniciais Adriana Goulart, em Eldorado do Sul, conta que durante o período crítico da catástrofe, imprimiu uma lista com o nome de todos os seus alunos. Ela se deslocava de abrigo em abrigo para saber como estavam, já que a maioria não tinha internet ou celular. “Cada vez que eu tinha notícia de um, era uma festa. Mas, quando saía o nome daqueles que tinham ido a óbito, era um desespero, eu não tinha coragem de abrir a lista.”
Três meses depois, ao retornar para escola onde lecionava na época, Adriana ficou apreensiva sobre como seria voltar após uma tragédia de grandes proporções, mas se surpreendeu ao notar a elaboração própria das crianças. “Elas têm essa capacidade que nós adultos não temos de, muitas vezes, mesmo passando por situações difíceis, por catástrofes, ainda conseguirem ter um olhar de criança, de ver a vida no caos.” Ela também se surpreendeu ao ver que estavam “muito felizes por terem voltado para aquela rotina, por estarem na escola, revendo os colegas”.
Em sala de aula, a professora propôs atividades, como um livro de memórias, para as turmas trabalharem as emoções e os desafios vividos. “Eu cheguei na escola pensando ‘o que eu vou dizer?’. Mas, quando encontrei com eles, é como se eu tivesse recebido uma cura, entende? Claro que muita coisa mudou, mas a resiliência deles me ajudou a retomar.”
- Leia também: Qual é a situação das escolas no Rio Grande do Sul?
Resiliência escolar para o clima
Desde o ano passado, o Instituto Alana, em parceria com a Seduc-RS, desenvolve o guia “Escolas resilientes”, um material com foco no enfrentamento de desastres em escolas e que traz orientações sobre como a comunidade escolar pode se preparar. Isso inclui o mapeamento de soluções arquitetônicas e estruturais a serem implementadas de modo a criar escolas mais resilientes às mudanças climáticas, ou seja, que possam responder de modo consciente a possíveis situações de emergência. O que fazer na iminência de um desastre? Quem a comunidade escolar deve acionar? Como salvaguardar os bens materiais da escola?
Uma das etapas do projeto envolveu a escuta de professores em diferentes regiões do estado, como o Vale do Taquari, para entender suas necessidades e realidades. A sensação coletiva, segundo Fabíola Galli, coordenadora à frente da iniciativa, é de que “ninguém sabia o que fazer nem como agir, tanto adultos quanto crianças”, diz. “A volta foi muito difícil. Nem sempre eles tiveram momentos de elaboração coletivos. Percebemos que as crianças estão ficando doentes, porque esse trauma não foi revisto.”
Entre as referências do material, está a resposta a desastres em outras cidades que viveram eventos recentes, como Blumenau (SC) e Salvador (BA). A ideia é que a pesquisa sirva não só para o Rio Grande do Sul, mas também para outros locais que podem vir a sofrer eventos extremos semelhantes de inundações ou episódios como ondas de calor, por exemplo. Segundo Fabíola, assim como se prepara a comunidade escolar para possíveis incêndios, é fundamental uma cultura de prevenção para o clima.
Esta semana, chuvas intensas voltaram a causar desastres no Rio Grande do Sul. De acordo com a Defesa Civil, 51 cidades foram afetadas pelos temporais e mais de 1,3 mil pessoas estão desalojadas. Em um dia, algumas regiões registraram uma quantidade de chuva acima da média mensal. Segundo o Governo do Estado, apesar da elevação dos níveis dos rios, a situação não se compara à tragédia do ano passado, considerada como extremamente rara.