Ser um corpo negro no mundo, como a canção de Luedji Luna sugere, é ter a cor, o corte e a história do nosso lugar. Grada Kilomba, teórica e artista multidisciplinar, descreve em seu livro “Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano” que a ideia de ser reconhecido como sujeito – aquele corpo negro no mundo sugerido por Luedji como “eu sou minha própria embarcação” – incorpora três diferentes níveis: o político, o social e o individual.
Mas, durante a sua caminhada, do nascimento à fase adulta, pessoas negras são obrigadas a travar uma relação direta com algo que não foi criado por elas, mas as consequências desembocam sem pedir licença em suas vidas: o racismo.
“O racismo viola cada uma dessas esferas, pois pessoas negras não veem seus interesses políticos, sociais e individuais como parte de uma agenda comum”, comenta Kilomba.
Ainda seguindo suas escritas, Grada, que também é psicóloga, aponta três características presentes de modo simultâneo na definição do racismo. A primeira é a diferença: “só se torna diferente porque se ‘difere’ de um grupo que tem o poder de se definir como norma”. A segunda característica é que essas diferenças construídas estão inseparavelmente ligadas a valores hierárquicos e, por fim, ambos os processos são acompanhados pelo poder histórico, político e econômico. Nesse sentido, o racismo é supremacia branca. Sendo assim, como o racismo afeta a subjetividade de uma pessoa?
Um corpo negro que nasce marcado pelo racismo
A realidade violenta do racismo cotidiano pode iniciar ainda nos primeiros anos da vida de uma criança negra ou nos primeiros segundos, como foi o caso da jornalista e mestra em Sociedade e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Vania Dias. Logo após seu nascimento, na maternidade pública de Salvador, sua mãe, mulher negra e mãe solo, ouviu gratuitamente de uma profissional de saúde: “Você não tem vergonha de parir alguém tão feio, não? A sua filha é horrorosa”. Quando rebobina o filme de sua história, Vania, hoje com 42 anos, observa que as tais vivências ligadas à agressividade racista se multiplicaram de maneira subliminar e com muitos requintes ao longo de toda a sua infância.
“Não foi preciso ouvir um ‘você é uma macaca’ para saber que eu fugia aos padrões. Na escola particular de bairro, eu era bolsista. E cabe a qualquer bolsista (independente de idade) ser agradecida e não gerar problemas. Lembro quando meus colegas me descobriram aluna de um curso de modelo, manequim e teatro. ‘Tá se preparando para ser modelo de revista de terror’, diziam os meninos aos risos. E a profissão da minha mãe que hoje eu tanto me orgulho, empregada doméstica, era um segredo que eu guardava a sete chaves na infância. No formulário da agenda eu camuflava. Profissão da mãe: dona de casa”, relembra.
Vania diz não saber nomear ou apontar um por um os diversos traumas abertos quando ainda era menina, mas se considera até hoje uma pessoa que assume, muitas vezes, uma postura defensiva e desconfiada, como se precisasse prestar conta o tempo todo.
“Eu cresci a vida toda querendo pertencer a uma família que não era a minha. Querendo me encaixar em um lugar que não me cabia. Querendo parecer fisicamente com as pessoas que me cercavam”, desabafa.
“Eu acreditei por muitos anos que eu era, de verdade, da minha família de convívio. A vida poderia ser mais relaxada, porém é um estado permanente de atenção e vigilância, isso é bem cansativo e estressante. O racismo abre buracos que nos adoecem em muitas dimensões. Lembro das amigdalites de repetição e das dermatites de contato, fiéis companheiras da minha infância. E das doenças autoimune, gatilhos e descobertas de sequelas invisíveis da vida adulta.”
A jornalista buscou ajuda psicológica na adolescência, num centro público de saúde mental, para tentar lidar melhor com suas indignações e revoltas, um processo que durou 10 anos. A terapia e o teatro foram espaços onde ela pôde trabalhar melhor as suas angústias, raivas, medos e dúvidas. Através da arte ela viu um novo mundo de possibilidades e de pessoas que buscavam uma vivência mais diversa, aberta e respeitosa. Foram encontros essenciais para forjar e fortalecer a mulher que Vania é hoje.
Em casa, com o filho José, 6, ela busca ser atenta, pois acredita que a atuação do racismo e de suas ferramentas é tão veloz que mesmo uma criança na sua primeira infância, antes de ler o mundo da gramática, já sabe ler o mundo dos padrões estéticos eurocêntricos. “Investimos em mais literatura negra e no dia a dia aumentamos o diálogo sobre respeito e diferenças. Confesso que ainda acho pouco porque a ausência de negritude nas professoras de ensino infantil, nos colegas, na TV, nos desenhos, nos quadrinhos, nos consultórios médicos comparada à presença maciça de pessoas negras nas portarias, nas ruas e nos lugares socialmente mais desprivilegiados é rapidamente mapeado e entendido pelas crianças sem que elas tenham qualquer filtro sobre isso.”
Consequências do racismo à saúde mental e física das crianças
De acordo com Manuela Rocha, psicóloga e pesquisadora no grupo Psicologia, Diversidade e Saúde na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, com pesquisa voltada à repercussão do racismo na saúde mental da população negra, o racismo interfere na construção da identidade positiva da pessoa não branca.
Manuela explica que, para ser possível uma construção identitária saudável, ela precisa ser cuidada em condições sociais que favoreçam a qualidade de vida. Só por serem negras, as crianças têm atribuições negativas sobre seu corpo cotidianamente, gerando sofrimento.
“Sendo esse o contexto social formador da identidade e entendendo que esse processo de formação se dá com a criança se comprometendo a dizer de si através de valores, crenças e metas (influenciadas por relações interpessoais, identificações e cultura da sua comuna), vemos que crescer recebendo representações contraproducentes sobre si faz com que atributos negativos sejam, em alguma proporção, internalizados e incorporados à sua autoimagem e autoestima”, analisa.
A psicóloga complementa que, se olhamos para o sistema de poder do racismo e entendermos que ele causa depressão ou leva ao suicídio, corremos o risco de responsabilizar as pessoas individualmente por seu adoecimento e por seu tratamento.
Quem sofre racismo, é violentado e toda violência causa sofrimento psíquico.
Inclusive, muitas violências chamadas de bullying são raciais. De tão escamoteado que é o racismo à brasileira, tais violências passam sem responsabilizar os agressores, afinal racismo é crime.
Davi, 7 anos “Eu me sinto diferente na escola porque tem mais gente branca e mais cabelo liso, mas isso também é bom. Tem uma música de um desenho que fala que todo mundo é diferente e aí eu me sinto feliz porque ninguém é igual a ninguém.”
Brisa, 8 anos “Vendo desenhos com pessoas negras eu fico feliz porque já estão fazendo desenhos assim, não só com brancos, apesar de que a maioria dos filmes só têm brancos com cabelos lisos. O ‘Irmão do Jorel’ tem cabelo cacheado e também uma pele um pouco mais escura. Eu gosto desses desenhos porque se parecem mais comigo.”
O racismo atravessa todos os aspectos da vida e cada pessoa vai vivenciá-lo de uma forma, porém, se olharmos de maneira genérica, podemos notar alguns aspectos. Para a psicóloga, nas relações afetivas, relações inter-raciais ainda são incentivadas como na política higienista de embranquecimento do passado. Quando se trata de epistemicídio, vemos as instituições de ensino não trabalharem com referências bibliográficas não brancas.
A diferença salarial entre brancos e não brancos ainda é grande e boa parte trabalha em subempregos. No aspecto da saúde, as causas de morte poderiam ser evitadas: homens negros são os que mais morrem de mortes violentas, doenças controladas, como tuberculose, ainda matam a população negra, mulheres negras ao parirem sofrem mais violência obstétrica, além da falta de infraestrutura e moradia adequada por conta do processo de favelização. No aspecto religioso, as religiões de matriz africana vivenciam episódios de crime de ódio com frequência.
“Tudo isso gera sequelas, uma sensação de impotência, injustiça e morte real ou simbólica”, ressalta Manuela.
“Conviver com isso significa que, por conta da cor da pele, podemos morrer antes do tempo ou ser tolhidos de vivenciar nossos sonhos porque toda sociedade age na direção contrária à realização. Muitas vezes, nos enxergamos impotentes para mudar tudo isso porque sabemos que é estrutural. Diante da repetição dessas cenas, a sensação de injustiça faz com que a gente pare de lutar, de desejar alcançar além do preestabelecido pelo sistema. Apenas seguimos o fluxo da forma menos danosa que encontrarmos e, principalmente, sem pensar muito a respeito, porque até o contato com esse assunto é doloroso.”
Escolinha Maria Felipa: por uma educação afrocentrada
A iniciativa de criar a escolinha Maria Felipa, em Salvador, surgiu da própria demanda familiar da professora do Instituto de Química da UFBA e empresária Bárbara Carine Soares Pinheiro. Com o nascimento de sua filha, uma criança negra que hoje tem 3 anos, Bárbara se preocupou com o tipo de educação e representação simbólica que ela receberia numa escola particular na cidade, onde possivelmente boa parte da equipe de profissionais seria composta por pessoas brancas, e os negros ocupariam as posições subalternas.
“Quais são as memórias históricas que essas escolas transmitem para a juventude negra? É uma construção subjetiva positivada? Não, é uma construção subjetiva pautada em um marcador historiográfico escravagista”, defende a professora.
“O que a escola brasileira faz, no meu entendimento, é algo criminoso do ponto de vista psicológico da população negra. Existe uma preocupação específica com a infância onde as crianças estão construindo a sua subjetividade e seus entendimentos identitários. É muito importante nesse contexto a criança se construir a partir da noção de potência.”
A escola afrocentrada não é exclusiva para crianças negras, apesar de ser pensada por pessoas negras, e está aberta a todos, pois crianças brancas também precisam compreender que a história de pessoas negras é bonita, altiva, composta de reis, rainhas, príncipes e uma ancestralidade que não é marcada somente por tragédias.
Trabalhando com crianças de até seis anos de idade, o ensino bilíngue, em inglês, aborda as questões étnico-raciais o ano inteiro e não apenas em datas específicas. Bárbara acredita que o modelo educacional antirracista é possível e urgente. “É uma sedução muito grande para o mundo branco-cêntrico que a população negra seja enredada desde muito jovem. Então, a gente aprende a amar o outro, o branco, mas odiamos a nós mesmos enquanto pessoas negras”, relata Bárbara.
“Acreditamos em um modelo antirracista, afrocentrado e decolonial para driblar o eurocentrismo na educação”
A escola ainda oferece formações para profissionais de outras instituições que buscam trocar experiências e implementar novas políticas em seus espaços. Com o ensino remoto há mais de um ano acontecendo em decorrência da covid-19, as atividades escolares dos pequenos estão sendo produzidas dentro de suas casas e os familiares acabam interagindo com o conteúdo de maneira que beneficia todo o coletivo.
Cuidando das emoções
A psicóloga Manuela adverte que nem sempre a criança pode falar sobre suas dores. Para isso, é fundamental que seu entorno a perceba caso apresente respostas de estresse diante das violências, como: evitação de pessoas e lugares que gostava de ir, inibição, parar de fazer coisas que ela gostava muito, ter ações negativas contra seu corpo, não criar laços de amizade, medo exagerado, inseguranças, tiques nervosos, fazer xixi na cama, ranger os dentes dormindo, roer unhas, adoecer com frequência ou ter episódio de dores ou até mesmo ficar muito hiperativa.
“Muitas situações dolorosas são vivenciadas em cenas de brincadeira e lidas pelos adultos como coisas de criança, mas, na maioria das vezes, o humor é utilizado para suspender a censura e demarcar violências. É necessário olhar para isso com a seriedade que elas carregam nas suas entrelinhas”, explica Manuela.
“Cabe a todas as pessoas ensinar e praticar com os seus familiares um conceito importante para a vida em sociedade que é a alteridade. Assim, o mundo pode ser um lugar possível à existência de todas/es/os”
Se o tema “saúde mental e equilíbrio emocional” fosse amplamente debatido, inclusive, estimulando não só o pensar como também o sentir (entendendo as emoções desde cedo), seria um bom caminho para que as crianças não se tornem adultos tão machucados e traumatizados. A psicóloga ainda frisa que é importante criarmos possibilidades para que instituições de ensino e veículos de comunicação abram espaço para debates sobre o assunto com profissionais negras/os/es que tenham um letramento racial. Pode parecer pouco, mas já faz muita diferença apresentar outra narrativa ética e política sobre esse assunto tão caro à vida da população que não é branca. Segundo Manuela Rocha:
“Todo investimento que se faz para ter uma vida boa na infância é uma aposta de equidade social para o futuro e construção de uma vida com saúde mental”
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Segundo dados do Ministério da Saúde de 2019, jovens negros têm maior chance de cometer suicídio no Brasil, além de serem os corpos mais passíveis de sofrerem com a violência armada: o Atlas da Violência aponta que negros foram 75,7% das vítimas de homicídio no país em 2018. A cada 23 minutos morre uma pessoa negra.