Educação integral. Eis um termo que gera dúvidas em muitas pessoas. Por mais simples que seja seu significado, sua complexidade está em perceber a discrepância que tantas vezes existe entre o conceito e a prática. Afinal, trata-se muito mais do que um conceito, é uma forma de pensar o mundo e as relações interpessoais.
Nesta matéria, o Lunetas explica tintim por tintim sobre o que se trata a educação integral, como ela funciona e como é aplicada no dia a dia. Por isso, veremos alguns conceitos que nos ajudam a compreender o que ela representa, para aprofundarmos o olhar sobre o próprio significado da palavra educação.
O que é educação integral?
Se buscarmos no dicionário, veremos que educação é o processo de “formação e desenvolvimento da capacidade física, moral e intelectual do ser humano”, além de um “conjunto de teorias e métodos relativos ao ensino e à aprendizagem”.
O dicionário indica também que a educação é todo “processo formal de transmissão de conhecimentos em escolas, cursos, universidades etc.”. É nesse sentido que o conceito de educação integral, da forma como o utilizaremos aqui, desafia e amplia a própria acepção da palavra educação. Afinal, educação é muito mais do aquilo que acontece dentro da escola, enquanto somos crianças ou jovens; nos educamos a vida toda, em nosso modo de falar, andar, olhar uns para os outros e viver em comunidade.
O termo educação integral é fruto de um pensamento coletivo de priorização da educação na vida das pessoas; não por acaso, em sociedades plenamente desenvolvidas, a educação é vista como prioridade absoluta. Mais importante do que entender o que o termo em si significa, é compreender o porquê da urgência de enxergamos cada indivíduo como um sujeito em constante formação.
A educação integral pensa os processos educativos para além dos muros das escolas ou de qualquer instituição fechada em si.
Olhar para o indivíduo de forma completa
Assim, a educação integral é todo e qualquer processo com potencial educativo. O adjetivo “integral” diz respeito à necessidade de contemplar todas as dimensões do indivíduo que se educa. “Integral”, aqui, se aplica não só à necessidade de enxergar o indivíduo em sua inteireza, mas também à importância de integrar a educação a tudo o que ocorre no entorno daquele que é educado.
De acordo com o Centro de Referências em Educação Integral (CREI), “a educação integral é uma concepção que compreende que a educação deve garantir o desenvolvimento dos sujeitos em todas as suas dimensões – intelectual, física, emocional, social e cultural – e se constituir como projeto coletivo, compartilhado por crianças, jovens, famílias, educadores, gestores e comunidades locais”.
Como a educação acontece?
Para a educação integral, lugares, pessoas, situações e objetos têm potencial educativo. Daí a importância de constantemente repensar quais referências de cidades, experiências e convívio estamos oferecendo às crianças e aos jovens.
Para exemplificar, podemos pensar no espaço em que vivemos. Como são as calçadas, as ruas e as áreas verdes do meu bairro? Há rampa de acesso para pessoas com limitações de mobilidade? Existem bancos para se sentar ao ar livre? Como é a cidade vista de baixo, da perspectiva de uma criança?
A observação atenta de todos esses elementos (e outros inumeráveis) oferece a possibilidade de pensar a educação integral. O grau de acessibilidade, conforto e acolhimento de um espaço público são exemplos de como uma cidade educa. Ainda que muitas vezes venham disso amostras negativas, como a falta de políticas públicas que ressignifiquem o espaço urbano, é justamente aí que cabe questionar: é essa a educação que queremos?
Uma cidade educa quando não tem uma rampa de acesso a cadeirantes, quando oferece uma peça de teatro no centro e a pessoa não tem como pagar três conduções para chegar até ela. Isso também é educação. Mas pode ser diferente? Que parte nos cabe nesta mudança?
Quais os princípios da educação integral?
Para responder a esta pergunta, revisitamos um texto publicado pelo Centro de Referências em Educação Integral. A concepção de educação integral se apoia em cinco eixos principais, sem os quais entende-se que ela não pode acontecer:
- Centralidade do estudante
- Aprendizagem permanente
- Inclusão
- Gestão democrática
- Territorialidade
Podem parecer nomes complicados à primeira vista, mas entendê-los é mais simples do que parece. Vamos, com calma, passar por cada um deles.
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O estudante é o foco de tudo
A centralidade diz respeito ao planejamento do processo educativo. Para a educação integral, o estudante deve ser o centro desse planejamento. Assim, tanto o currículo quanto as atividades e os locais de aprendizado devem ser construídos a partir dos interesses e demandas do estudante.
Por quê? Simplesmente porque a educação integral entende que cada estudante é único, e essa singularidade deve ser considerada em sua trajetória educativa, não só porque o olhar da criança e do jovem contribui para que a educação aconteça de forma mais participativa, mas principalmente porque ele é potente e pode ser a mola propulsora de transformações significativas.
Além disso, as crianças e os jovens devem ser contemplados como os sujeitos de direitos que são. Ou seja, eles podem e devem ter a possibilidade de se expressar e se fazer ouvir, reconhecer e valorizar. Protagonismo infantil e jovem é parte da jornada educativa.
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O ser humano é múltiplo
Para ficar mais fácil de entender o que é aprendizagem permanente, podemos pensar antes por que é tão importante a multidimensionalidade do sujeito, que norteia a educação integral.
Olhe para você mesmo no espelho. Verá que é feito de um corpo físico, mas também de pensamentos que não são visíveis para quem te olha. Ambos estão localizados em um tempo e um espaço.
Somos parte de uma família, de um contexto social, histórico, econômico e cultural. E tudo isso nos forma como indivíduos.
Daí a chamada multidimensionalidade, que diz respeito às nossas múltiplas dimensões. Todos esses aspectos não devem ficar fora do processo educativo, pois indicam que cada indivíduo possui demandas e necessidades distintas, e essa diversidade deve fazer parte da preocupação de uma educação que se pretenda integral.
Desde que nascemos até o fim da nossa vida, adquirimos conhecimento por meio de tudo aquilo que nos acontece. Todo ser humano pode se desenvolver não só intelectualmente, mas também social, emocional e culturalmente. Por isso, o desenvolvimento integral é a base dessa proposta educativa.
Entendido isto, passamos à aprendizagem permanente, ou seja, perceber que não nascemos nem morremos prontos. Estamos em constante e ininterrupta formação. Quanto mais a educação considerar tal fato em sua forma de acontecer, mais rico será o resultado.
Na educação integral, o conteúdo acadêmico deve ser integrado aos saberes dos estudantes e suas comunidades. Isso porque cada experiência recebida configura uma experiência potencialmente educadora.
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Integrar é educar
Se considerarmos que cada um de nós é único, automaticamente entendemos que a diversidade é característica inerente a todo ser humano. Assim, a educação integral é aquela que não só respeita todas essas diferenças, mas também as integra em seu modo de pensar a prática educadora. Nossas origens sociais, culturais, raciais, nosso gênero, credo, localização geográfica e muitos outros aspectos são o norte da perspectiva inclusiva.
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Fazer coletivo
Para garantir que a educação esteja realmente alinhada aos interesses e às necessidades de aprendizagem dos estudantes, é preciso garantir a possibilidade de fazer junto. Ou seja, proporcionar que crianças e jovens participem do planejamento, desenvolvimento e acompanhamento dos resultados do processo educativo.
De acordo com o CREI, a gestão democrática está garantida por lei e prevê que o Projeto Político Pedagógico (PPP) de cada unidade de ensino seja construído e acompanhado com a participação ativa de alunos, educadores, famílias e toda a comunidade.
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O lugar onde vivemos também educa
Para a educação integral, todas as situações que vivenciamos da primeira infância até a vida adulta têm potencial educador. Isso quer dizer que aprendemos com aquilo que vivemos – coisas boas e ruins. Daí a importância de considerar a territorialidade no planejamento e no desenvolvimento das atividades educativas.
E o que é territorialidade, afinal? É o lugar onde vivemos. Nossa rua, nosso bairro, nossa escola, nossa cidade e nosso país. Esses espaços expressam a identidade daqueles que o habitam. Por isso, educadores e estudantes podem e devem aproveitar todo esse potencial na hora de construir o projeto pedagógico.
Educação integral x educação em tempo integral
Muitas pessoas podem confundir os dois termos, por serem parecidos. Nem toda educação integral ocorre em tempo integral. Mas uma educação em tempo integral pode ser educação integral.
Parece confuso? Não é! Educação integral nada mais é do que um modo de pensar a educação de forma que ela abarque a diversidade de dimensões que existe em cada pessoa, considerando suas necessidades e potenciais específicos.
Por outro lado, educação em tempo integral diz respeito a escolas ou instituições de ensino que oferecem ao estudante uma jornada quantitativa de processos de aprendizagem, ou seja, o aluno passa mais tempo na escola, mas o tempo não tem necessariamente relação com a qualidade daquilo que é aprendido – e apreendido.
Tudo aquilo que vivenciamos se torna matéria-prima de nossa educação.
Quem educa?
Outro aspecto crucial quando o assunto é educação integral é o que chamamos de responsabilidade compartilhada. Ou seja, o entendimento de que a criança não extrai aprendizado só daquilo que ela vê e ouve na escola ou de seus professores, mas também do pai, da mãe, do irmão, dos avós, e todos aqueles que a rodeiam. Nisso, incluem-se as pessoas de referência indireta, como a influência recebida pela mídia.
Assim, a educação integral defende que uma infância plena só pode acontecer em um contexto integralmente favorável: em uma cidade educadora, com referências positivas passando na TV, com produtos ou personagens que não ferem os direitos da criança, e por aí vai.
Os exemplos são inumeráveis, mas o entendimento é um só: tudo aquilo que vivenciamos se torna matéria-prima de nossa educação, e vamos nos formando como indivíduos mais ou menos tolerantes, empáticos, respeitosos e humanos à medida que nossas experiências vão nos guiando por determinados caminhos.
Educação integral: entre discurso e prática
O educador português José Pacheco, idealizador da Escola da Ponte, é um dos grandes referenciais quando o assunto é educação.
Para ele, o principal ponto crítico da reflexão sobre o assunto é a discrepância entre o discurso e a prática. O que isso quer dizer, afinal? Que ainda estamos pautados no modelo de escola do século 19, tentando pôr em prática um pensamento que muitas vezes não cabe ali. Ele afirma, categórico:
“Essa velha escola é excludente”
Pacheco faz duras críticas a uma série de parâmetros que norteiam a escola da forma como a conhecemos na maior parte do Brasil hoje. O conceito de alunos, carteiras, ensino seriado, na visão do educador, destoa da educação integral simplesmente porque não considera que aquele não é o único espaço de aprendizagem da criança e do adolescente.
Em busca dos sujeitos de aprendizagem
“Em uma escola que tem sala de aula, aluno, provas, tudo isso, não se pode fazer educação integral. Quando eu digo que não tem aluno em uma escola, me refiro ao aluno como objeto de aprendizagem. E eu não quero um aluno-objeto, mas quero estar com sujeitos de aprendizagem. As pessoas confundem escola com edifício, mas a escola são as pessoas. Hoje, não se ensina nem se aprende, porque não se pode dar a beber a um cavalo que não tem sede”, sintetiza Pacheco.
“Conheço jovens que estão 200 dias por ano dentro de uma sala de aula e não aprendem, e outros que estão fora e aprendem”
Para Pacheco, é preciso entender o contexto de limitações, falta de verba e políticas públicas em que se encontra a maior parte dos professores brasileiros. No entanto, ele reforça como é urgente repensar nossas próprias possibilidades enquanto indivíduos. “A grande pergunta é essa: o modo como as escolas trabalham garante o direito à educação que está na Constituição Federal? Não. As escolas têm o direito de continuar a trabalhar assim? Não”, provoca o educador.
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