A dona de casa Lindaiara Lima, 20, é mãe solo de uma criança de 10 meses. Quando engravidou, interrompeu os estudos e a perspectiva de conseguir um emprego a curto prazo. Agora que a criança cresceu um pouco, quer retomar as aulas e procurar um trabalho, mas enfrenta um problema: não tem com quem deixar o bebê. O sonho dela e de outras mães do bairro onde mora, Passarinho, uma comunidade na periferia do Recife, é a criação de uma creche por lá.
A mais próxima fica em uma localidade vizinha, o Alto da Bondade, mesmo assim é difícil obter uma vaga. “A pessoa tem que ficar na fila, de madrugada, para ver se consegue. Minha irmã e minha cunhada, e outras meninas que conheço, que têm mais filhos, já passaram por isso”, diz. Uma das citadas garantiu a vaga, a outra nunca conseguiu.
Encontrar uma vaga em creche ainda não é fácil no Brasil. O Plano Nacional de Educação (PNE) estabelece que até 2024 o país deve oferecer espaço para matrícula de pelo menos 50% das crianças de 0 a 3 anos. Porém, os dados mais recentes, de 2019, mostravam que o número alcançado ainda era de 37%. Entre a faixa mais pobre da população, o índice era menor, 28%.
Apesar de o direito à educação básica ser previsto na Constituição Federal, foi somente no último dia 22/9 que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a obrigatoriedade do Estado em fornecer as vagas em creches e pré-escola para crianças de 0 a 5 anos. Dessa forma, os municípios não podem mais negar matrículas com afirmações de que falta vaga. O Supremo também descartou a necessidade de as famílias provarem uma eventual falta de condição financeira para conseguirem vagas em unidades públicas.
A votação se deu a partir de um recurso movido pelo município de Criciúma (SC) contra decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que obrigava a administração municipal a assegurar a vaga em creche a uma criança. A decisão foi mantida pelo Supremo. O caso mobilizou diversas organizações e tornou-se referência para que o tribunal discutisse sobre o dever estatal, apontado pela Constituição, de assegurar a crianças de 0 a 5 anos o atendimento em creche e pré-escola. Ao final do julgamento, fixou-se a tese de que a educação básica é um direito fundamental de todas as crianças e jovens.
“O poder público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica”
A história da creche no Brasil
Há mais de 20 anos, a maior parte das mulheres do Passarinho espera por uma creche na comunidade. Por lá, moram 20 mil pessoas, cerca de 51% são mulheres, sendo que mais de quatro em cada dez domicílios do local são chefiados por elas. De acordo com Edcleia Santos, coordenadora do Grupo Espaço Mulher, que reúne 60 moradoras, já houve um terreno que seria destinado para a construção da creche, “mas ele foi tomado por outras casas”.
Ainda segundo ela, em 2016, “contamos 260 crianças precisando de creche aqui, agora deve haver muito mais”. A maioria das mulheres moradoras do Passarinho é empregada doméstica. “Elas são diaristas, precisam sair para trabalhar e ficam procurando com quem deixar o filho: com a família, com a vizinha ou se pagam alguém”, acrescenta Edcleia, que continua a batalha com outras mulheres para conseguir um espaço e verba pública para erguer uma creche.
No Brasil, a história das creches nasce da luta de mulheres e se constitui segundo mudanças políticas e econômicas pelas quais o país passou desde a segunda metade do século 20, incluindo a conquista da cidadania delas e das crianças. Inicialmente, o direito à creche tinha uma marca trabalhista, e não educativa, por causa das mudanças do sistema industrial e a inserção da mulher no mercado de trabalho.
Esses espaços começaram com caráter mais filantrópico e higienista, conta a doutora em educação, especialista em educação infantil e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Infância, Formação e Cultura (INFOC), da PUC-Rio, Rejane Siqueira. O jardim de infância era destinado às classes sociais mais elevadas; e os abrigos, casas asilo ou casas maternais estavam voltados para crianças mais pobres. “Com a chegada da legislação trabalhista, a creche se constitui como um direito, principalmente como um direito da mulher, mas com critérios como: a indústria precisava ter pelo menos 30 mulheres com mais de 16 anos [no seu quadro de funcionários] e devia disponibilizar espaço para os bebês delas, mas apenas no período de amamentação”, conta a pesquisadora.
Isso acontece paralelo à discussão sobre os direitos e centralidade das crianças na política pública. Com a Constituição de 1988, quando a criança é considerada um sujeito de direitos e um dos seus direitos fundamentais é a educação, a creche passa a sair da esfera da assistência social e entra para a de educação. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) consolidou o direito à creche, organizado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
Embora a creche seja opcional, ela é um direito da criança, uma opção da família, um dever do Estado, e uma atribuição dos municípios, com a colaboração dos Estados e da União.
Creche, um direito da criança
De acordo com o Censo Escolar do ano passado, há 69 mil creches funcionando no país, sendo 30% delas privadas e 60% conveniadas com o poder público. Normalmente, costuma-se pensar nesses dispositivos apenas como uma necessidade de famílias monoparentais, sobretudo as chefiadas por mulheres que não têm com quem deixar os filhos durante o expediente de trabalho. Mas, de acordo com Rejane Siqueira, essa é uma concepção equivocada, já que a creche é, antes de tudo, um direito da criança.
A designer Ericka Ferreira, 38, é servidora pública e tem um filho de dois anos e meio. Quando a criança tinha um ano e sete meses, ela precisou voltar a trabalhar presencialmente alguns dias na semana. Para facilitar a logística, mudou-se para outro bairro, mais próximo do local de trabalho, e começou a procurar uma creche onde a criança pudesse ficar por meio período. “Por questões financeiras, procuramos primeiro as creches municipais. Entrei num sorteio, com duas vagas e 30 crianças esperando; depois, passei o ano inteiro ligando, para saber se havia desistência”, conta.
Sem conseguir vaga numa creche pública, Ericka e o marido decidiram tentar uma particular. “Não era o que a gente desejava, mas o que conseguíamos pagar”, ressalta. “A gente não queria deixá-lo em casa, e também acreditávamos que na creche ele teria mais atividades psicomotoras e socialização, algo que na pandemia ficou restrito.” A experiência, porém, não foi positiva para eles. O filho saía de casa chorando todos os dias durante os cinco meses em que permaneceu no serviço. Acabaram mudando para uma escola.
O exemplo mostra a busca pela creche não só como um local para deixar a criança, como explica Rejane Siqueira.
“A superação do estigma de que a creche só é para a criança pobre é um desafio que as gestões municipais precisam enfrentar”
“Estudos mostram que a creche tem um papel fundamental para garantir às crianças o seu pleno desenvolvimento, onde também aprendem a conviver consigo próprias, com os demais, com o meio”, complementa. Segundo ela, a creche é também um importante espaço de relações sociais constituídas entre a criança e a sociedade, além da formação da identidade pessoal.
“Na creche, a criança tem a oportunidade de interação entre as diversas áreas do conhecimento e também com os aspectos da vida em comum, do exercício da cidadania e da relação entre os sujeitos”
Os desafios da política pública de creches
Apesar das previsões legais, os dados do último Censo e também o relato de quem busca vagas em creches mostram que o Brasil ainda tem dificuldade de implementar esse dispositivo da educação. Esse ainda é um cenário, também, de disputa política. Não à toa, em épocas eleitorais, as creches sempre são prometidas, como já foram várias vezes à comunidade do Passarinho, no Recife.
De acordo com Rejane, a demanda por creches apresenta questões bem específicas, que ainda passam por um olhar de invisibilidade dos direitos da criança e do bebê. Há ainda um problema no volume de recursos empregados para as creches e as particularidades para implementá-las. “A creche demanda um investimento maior, pela proporção de gastos com profissionais e infraestrutura. E a precariedade desses espaços é um entrave”, explica a pesquisadora. Para construir uma creche pública, o município leva, em média, dois anos. Tanto a construção quanto a manutenção devem estar previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias e no Plano de Plurianual das cidades. Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apenas 0,7% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil são investidos em creches e pré-escolas.
De acordo com Márcia Bernardes, em quase todos os municípios brasileiros de médio e grande porte há falta de vagas e fila de espera para entrar em creches. “Carregamos um déficit de vagas em creches pela falta de investimento histórico do Governo Federal. Colocou-se uma meta no PNE [de até 2024 haver matrícula para pelo menos 50% das crianças de 0 a 3 anos], mas não se fez nenhum programa de ampliação de creches nem de manutenção delas”, afirma.
A partir do retorno às aulas presenciais, com o enfraquecimento da pandemia de covid-19, as creches sofrem uma explosão por demanda, tanto pelas famílias que não têm como pagar locais privados quanto pelo nascimento de novas crianças. Para Márcia, a efetivação da política de creches no Brasil depende da retomada dos investimentos, sobretudo federais. “Antes, na esfera federal, existia o programa Proinfância, que custeava a construção de creches para os municípios, mas recentemente não tivemos mais nenhum investimento nele”, acrescenta. A questão também impede, para ela, o aumento de vagas nas creches já existentes.
Desde o início do governo de Jair Bolsonaro (PL), houve um corte drástico de investimentos em construção de creches e pré-escolas. O Ministério da Educação encerrou o ano de 2021 com R$ 101 milhões pagos para obras de creches: uma redução de 80% em comparação a 2018, último ano do governo Michel Temer (MDB), quando a cifra foi de R$ 495 milhões, em valores atualizados a preços de 2021.
Segundo o presidente do Instituto Alfa e Beto, João Batista Oliveira, a política de creches precisa ser inserida no contexto da política de planejamento da primeira infância no país, além de conhecimento sobre o território. É um trabalho interseccional que envolve também estabelecer qualidade entre outras políticas públicas, como o pré-natal e a preparação psicológica para a família, além de contemplar demandas como moradia, saneamento e alimentação, garantindo a segurança alimentar da mãe e da criança. “A política de primeira infância assegura que a sociedade irá ajudar da criança se a família não conseguir fazê-lo”, finaliza.
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Entre os anos de 2019 e 2021, segundo o Censo Escolar 2021, a quantidade de crianças matriculadas em creches no país diminuiu 9%, sobretudo por uma redução na quantidade de matriculados em creches privadas durante a pandemia. Um estudo publicado neste ano pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) mostra que cinco milhões de crianças brasileiras de 0 a 3 anos de idade, de famílias pobres ou monoparentais, precisam de atendimento em creches.