Brinquedos, cosméticos, artigos de papelaria, doces e uma infinidade de marcas para crianças e adolescentes se multiplicaram nas lojas e passaram também para os feeds das redes sociais. Essas tendências, aos poucos, induzem a infância para uma lógica de “ter” mais do que “brincar”.
Na casa da atriz e comunicadora socioambiental Laila Zaid, que produz conteúdo sobre os impactos do consumo exagerado para a natureza e para as infâncias, os pedidos de ter os brinquedos da moda chegaram por meio dos filhos.
“Você não é todo mundo” foi sua primeira resposta. “A minha filha pediu um Labubu. Eu não sabia o que era, mas disse não”, lembra. Para ela, a negação foi um pouco dolorosa, embora necessária. “Bancar esse ‘não’ é difícil porque envolve pertencimento. Se ela não tem aquele objeto, de repente não participa de uma cultura e das últimas tendências”, reflete.
Mais tarde, precisou ceder a um outro pedido: o filho, que estava se sentindo de fora da turminha da escola, quis um Beyblade (um pião eletrônico). Assim, Laila entendeu a importância de saber até onde ir e não ir com as ondas de consumo da vez. “Existe uma medida nesse radicalismo que precisamos pensar melhor, porque são crianças que já estão inseridas nessa sociedade. Não dá para excluir tudo, mas também é impossível surfar todas as ondas.”
Então, será que as famílias precisam mesmo pagar esses preços para satisfazer suas crianças? Ou, ainda, será que comprar o que está na moda para dar mais presentes é melhor do que brincar junto?
Brincar sempre será a melhor opção
Tentar driblar o hiperconsumismo e aumentar o tempo de brincar livre é a proposta da terapeuta ocupacional Farah Mendes, especialista em integração sensorial e desenvolvimento infantil. “As brincadeiras e os movimentos são alimentos do cérebro. Nesse sentido, são essenciais para a aquisição e o desenvolvimento das competências cognitivas, motoras, sensoriais, emocionais e sociais”, explica.
Idealizadora do “Pipas desenvolvimento”, um centro de habilidades sociais e lúdicas para crianças, Farah reforça que o brincar não depende tanto do “ter”, mas do “estar”. “O objetivo das brincadeiras deve impactar a socialização, o aprendizado e, principalmente, tornar as crianças ativas, e não passivas, diante de brinquedos prontos, que não instigam o criar e o explorar”, diz.
Sua crítica contra a enxurrada de produtos para crianças vem justamente “da ideia vendida de que ou você tem, ou você é excluído”. Isto é, a criança precisa do objeto para se sentir pertencente e aceita pelos seus pares, como ocorreu com os filhos de Laila Zaid. “Quem não lembra da campanha [da tesourinha do Mickey, de 1992] em que uma criança falava ‘eu tenho, você não tem’? Isso portanto transmite uma mensagem de poder e desigualdade”, recorda a terapeuta.
“O brincar livre proporciona a liberdade de ser criança, de fazer escolhas, de criar e imaginar novas realidades, de explorar e de experimentar.”
Dentro de casa, Laila também recomenda atenção à relação entre infância e consumo. “Estamos em um ritmo tão acelerado de tarefas e demandas que tentamos apaziguar a culpa com presentes no lugar da presença”, diz. “Isso tira a possibilidade de conexão com os nossos pequenos, que vai além da parte afetiva, mas é uma oportunidade de transmitir valores e cultura.”
Além disso, Laila cita outra problemática de uma infância sufocada pelo consumismo, que são os impactos diretos na natureza. “O excesso desses produtos contribuem para a crise global do plástico, desde a produção até o descarte. E existe a questão de afastar as crianças da natureza quando entupimos elas de coisas”, aponta.
A pesquisa “Infância plastificada”, do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, de 2020, estimou que 90% dos brinquedos do mundo são feitos de materiais plásticos. Além disso, 1,3 milhão de toneladas desse tipo de brinquedos serão produzidas no Brasil entre 2018 e 2030, com a reciclagem quase inviável por causa da mistura de outros produtos.
Brincar mais, comprar menos
A terapeuta ocupacional Farah Mendes traz sugestões para que as famílias curtam a infância de suas crianças, juntos, com brincadeiras simples e sem precisar ir às compras. “O principal é estar presente. Ter tempo de qualidade e entrega”, diz.
Trocar o Labubu por:
Fazer seus próprios bonecos. De acordo com a idade, vale usar massinha, argila, biscuit e participar de oficinas de bonecas de pano, de madeira, de garrafas pet e até de graveto.
Trocar o Bobbie goods por:
Telas, papéis, tintas, pincéis, canetinhas, réguas e esquadros. Incentive, em todas as faixas etárias, a criatividade, a imaginação e a arte sem precisar pintar o que já está proposto. Atenção para a indicação de idade para cada tipo de material.
Trocar os morangos do amor por:
Fazer uma salada de frutas, pois cozinhar juntos é sempre uma boa opção. Sintam as texturas, os cheiros, os sabores naturais, aprendam a descascar, cortar, misturar, sempre com a supervisão de adultos e manuseando utensílios próprios para cada idade
Trocar o Carmed por:
Passeios em parquinhos, pátios, praças, piqueniques,banhos de mar, de rio, de chuveiro, de poças de lama, fazer bolos de areia,. Crianças não precisam usar cosméticos e maquiagens
A reflexão precisa vir primeiro dos adultos responsáveis
Por trás de todas essas tendências que estimulam as crianças a dizerem o famoso “mãe, compra pra mim” existem estratégias de publicidade cientes de que atingem um público vulnerável.
“Crianças e adolescentes estão fortemente expostos à lógica da sociedade de consumo”, afirma Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo. “A publicidade e o marketing direcionados a eles nas redes sociais intensificam o desejo por esses produtos.”
Desde 2014, a publicidade direcionada às crianças é considerada prática abusiva no Brasil, conforme Resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente). O texto cita as estratégias dessa prática, desde o uso de linguagem infantil e de imagens de celebridades ou personagens com apelo ao público infantil.
No entanto, Maria explica que as crianças continuam sendo alvos preferenciais do mercado porque, por meio delas, é mais fácil convencer os adultos a comprarem. “Pesquisas apontam que as crianças ainda influenciam mais de 80% das decisões de compra das famílias brasileiras”, diz, referindo-se à pesquisa do Instituto Alana sobre como atrair as crianças às compras.
Portanto, estimular desde cedo o consumo exagerado pode induzir à construção de uma mentalidade materialista, alerta. “Essa forma de viver entende que o valor pessoal é medido pelo que se possui, e não pelo o que se é.”
“A pressão do consumo molda não apenas hábitos de compra, mas também valores, comportamentos e até as formas de sociabilidade da infância.”
Farah Mendes enfatiza: são os cuidadores – e não as crianças – que vão saber filtrar o que realmente é preciso comprar. “Precisamos lembrar aos adultos que eles são os responsáveis e os protetores da infância. Então, eles devem avaliar, ponderar, explicar e dizer ‘não’ para o que o mercado joga na mídia diariamente como essencial.”
Para ela, crianças necessitam de adultos de referência, que propõem modelos adequados e responsáveis de consumo. “Digo sempre à minha filha que, às vezes, um ‘não’ é também uma prova de amor.”
Já Maria Mello lembra que, além das famílias, Estado e empresas devem cumprir seus papéis na proteção das infâncias. “Às famílias, cabe acompanhar e incentivar brincadeiras livres, atividades culturais e impor limites ao consumo”, diz. “Ao Estado, cabe garantir o cumprimento dos direitos da infância previstos na Constituição e no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), incluindo a não exploração comercial. Por fim, as empresas têm que assumir a responsabilidade social e ambiental, rever práticas de comunicação para deixar de direcionar publicidade para crianças, que é uma prática abusiva e ilegal em nosso país.”