Para entrar num barco, é preciso ter equilíbrio. Uma escada de madeira íngreme balança com as ondas do rio. Chuva com ventos fortes e maresias representam um risco à travessia. Com sorte, a maré estará a favor e você chegará mais rápido ao destino. Para quem vai para a região das ilhas de Belém pela primeira vez, numa embarcação pequena, essa cena pode parecer uma aventura. Mas, para quem mora nesses locais, é rotina.
A capital do Pará é banhada pelo Rio Guamá. A travessia de uma margem à outra dura de 10 a 15 minutos. Nessa travessia, vários tipos de embarcações cortam o rio: canoas pequenas de madeira, esportivas, de lazer, barcos de todos os tamanhos, transportando pessoas e produtos, como pescados e grãos.
Quem nos leva na travessia é Rayane dos Santos, dona de casa e moradora da Ilha do Murutucu há 23 anos. Ao chegar perto da margem, é possível ver as casas de madeira: algumas isoladas, outras que ficam mais próximas entre si. No terreno da família de Rayane, uma ponte estreita dá acesso à terra firme. Seus três filhos aguardam em casa: Eloise, 3, Vitor, 5, e Pedro, 10.
Os desafios da educação para as crianças ribeirinhas
Naquele dia, Vitor e Pedro não tinham ido à escola. Uma reforma está obrigando os alunos a estudarem em esquema de rodízio. Rayane explica que eles ficaram um ano sem ir para a escola devido à pandemia, e ainda não voltou ao normal. “Depois que já podiam retornar às aulas, eles começaram uma reforma na escola. Por isso, eles têm aula apenas duas vezes na semana.”
Como no Murutucu não tem escola, as crianças precisam estudar nas ilhas da redondeza. “Vamos de barco com o Walter”, diz Pedro. Sua mãe explica que Walter é passa em cada casa para levar as crianças de barco para as aulas todos os dias. “Enquanto ele dirige, uma barqueira olha as crianças”, comenta Rayane.
Mas as escolas da região atendem só até o quinto ano. Pedro deve concluir o quinto ano em 2022 e Rayane já está preocupada com o filho mais velho, pois precisará atravessar a baía para Belém para estudar. “Depois que crescem, a gente tem que abrir mão dos nossos filhos para irem para o outro lado, para estudar do sexto ano pra cima”, comenta.
Embora a região continental e urbana de Belém fique próxima das ilhas, o rio é uma espécie de fronteira que separa dois mundos diversos, sobretudo para as crianças. “O Pedro não é acostumado com esse ambiente urbano, nem com o ritmo de lá: atravessar rua, estar atento a carros, essas coisas. Lá é totalmente diferente daqui”, afirma a mãe. A esperança de Rayane é que uma nova escola, inaugurada recentemente na região, tenha até o nono ano, conforme indicado pelo prefeito.
Riqueza natural se contrapõe à escassez de itens básicos
A abundância da água dos rios e igarapés que banham as ilhas não é suficiente para garantir que chegue água potável às casas. Murutucu, assim como outras ilhas de Belém, não tem serviço de abastecimento de água nem de esgotamento sanitário, a maior dificuldade para quem mora na região, segundo Rosália Maciel, mãe do Roberto, 8, e do Endreo, 13. “Às vezes a gente compra, ou atravessa o rio para pegar lá no Porto da Seasa [em Belém]”, explica a dona de casa.
“A gente compra água do poço numa região de terra firme. Compra e tira um carote [vasilhame utilizado para transportar água] que é quatro reais”, confirma Rayane. “Aqui é várzea, não dá para fazer isso, porque a maré invade. Só para beber e para cozinhar que a gente usa essa água. Para tomar banho, a gente pega da maré e armazena na caixa d’água”, explica.
As famílias também se preocupam com o lixo urbano que atravessa o rio e vem parar nos terrenos das ilhas. Pedro já tem consciência dos danos que isso provoca. “É ruim, porque polui o rio”, afirma.
A coleta de lixo, assim como a energia elétrica, são itens básicos que chegaram tardiamente à ilha. “Coleta de lixo foi no ano passado que começou aqui. Antes, a gente tinha que pegar nosso lixo e queimar. A energia elétrica chegou em 2011. Sendo que é na frente de Belém, então já era para ter há muito tempo”, comenta Rayane.
O acesso à saúde está limitado à ilha de Combu, onde tem um posto de saúde que atende a região. Mas, segundo a moradora, conseguir consulta especializada pode demorar de três a quatro meses e, para fazer qualquer exame, é necessário ir a Belém.
Ser ribeirinho e estar em meio à natureza
Rosália conta que os filhos gostam de brincar mais fora do que dentro de casa. O rio é o lugar preferido. “Geralmente à tarde, quando estão os dois [Roberto e Endreo], eles descem para brincar no quintal. Quando o primo deles vem, mais no final de semana, eles vão para o rio brincar”, comenta.
Para Rayane, a relação das crianças com os rios e as matas é de muita proximidade. “Já é natural da gente. Eles não sabem falar em palavras a importância, mas eles andam, eles correm. Eu não sou uma mãe ‘liberal’, mas tem mães que deixam os filhos andarem de casco [pequena canoa de madeira], eles pulam, tomam banho de chuva, jogam bola, vão para o mato desde pequeno, tiram açaí”.
A extração do açaí, uma prática que perpassa as gerações, é uma das principais fontes de renda dos moradores. “O pai deles vai no final de semana procurar açaí no mato, porque no inverno não tem fartura. Eu e o meu marido estamos ensinando o Pedro a subir no açaizeiro agora, mas tem pais que já ensinam os filhos a se virarem sozinhos desde pequeno”, comenta Rayane.
Para as comunidades ribeirinhas, o rio não é apenas uma paisagem; ele se integra à vida das pessoas. O sociólogo e escritor João de Jesus Paes Loureiro comenta que a identificação está intimamente relacionada ao sentimento de preservação da natureza. “Desde crianças, as pessoas aprendem a nadar, a pescar, a navegar, a se divertir, a namorar no rio, a se alimentar do rio e até a morrer (há inúmeros casos, por exemplo, de funerais em canoas)”, explica.
Rayane reconhece que depender do rio às vezes é difícil. “Se não tiver um barco, a gente não pode se locomover. E nem todos têm condições de possuir uma embarcação”, pondera. Mas ela lembra que estar perto da natureza é algo bom: “tem tranquilidade, paz, ar puro, água, banho de rio”, detalha. Além disso, “aqui podes não ter nada na tua casa, mas se tu pões um matapi [armadilha usada para pescar camarões], pelo menos um pouco de camarão tu já tens para almoçar. Vasculha o teu terreno todo para conseguir uns dois cachos de açaí, e já tens uma batida para te alimentar. Se tu queres um cacau, um limão, um cupuaçu, tu consomes”, explica. “Lá [em Belém], se não tiveres dinheiro, tu não comes”.
Embora administrativamente a ilha do Murutucu faça parte de Belém, tanto para Rayane como para Rosália a cidade de Belém é o “lá”, o outro lado do rio, com o qual elas não se identificam. “Eu sinto um orgulho imenso de morar nessa ilha, de ser daqui. Eu não me imagino em outro lugar”, confessa Rayane. “Meus filhos amam morar aqui pelo acesso à natureza. Eles gostam muito de andar de casco, tomar banho no rio, correr no terreiro, ir para escola de barco, ter essa tranquilidade de abrir a janela e ter tantas árvores…”.
Entre os moradores de Belém, a identidade predominante é urbana, não ribeirinha, embora a cidade seja cercada por rio. “Considerar-se ribeirinho é muito particular. A identificação não é uma coisa provocada; ela nasce de uma vivência”, explica o sociólogo Paes Loureiro. “O rio provoca essa relação familiar, amorosa, identificadora, como uma espécie de companheirismo da natureza na vida cotidiana”, arremata.
Belém ribeirinha
Belém possui 39 ilhas, a maioria com alta densidade florestal e baixa densidade populacional, com exceção de Mosqueiro, Caratateua (Outeiro) e Cotijuba, que possuem áreas urbanizadas e maior população.
A capital paraense conta com população estimada em 1,5 milhão de habitantes, segundo dados de 2021 do IBGE. Desses, mais de 78.377 pessoas vivem apenas na região insular de Belém.
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De acordo com o Instituto Trata Brasil, apenas 0,8% dos esgotos de Belém são tratados. Isso significa que boa parte do esgoto da área urbana é despejada diretamente nos rios que abastecem as residências ribeirinhas.