Certo dia, o filho mais velho da secretária escolar Luciana Régia, 48, chegou em casa inquieto. “Não vou casar, porque as mulheres ficam desmanteladas depois que têm filhos”, disparou. Na hora, a mãe retrucou: “Como assim, menino? E por acaso eu sou desmantelada?”. Daí ele explicou que chegou àquela conclusão depois de participar de uma aula sobre o corpo humano e estava querendo saber de onde vêm os bebês. Logo, emendou com a pergunta: “Como os bebês param na barriga das mães? E como eles saem?”.
O menino tinha 11 anos, mas essas questões podem surgir a qualquer momento da infância. Contudo, alguns cuidadores compartilharam com o Lunetas nas redes sociais que a questão costuma gerar certo receio. “O problema não é explicar por onde os bebês saem. E sim, como eles param dentro da barriga”, contou uma mãe. “Que situação, né”, replicou outra. Enquanto alguns recorrem a metáforas como sementes e cegonhas, outros preferem ir direto ao ponto, como a leitora que disse: “Aqui não fico enrolando, não… falo na real. Melhor saber por mim do que na rua”.
Afinal, existe um jeito certo de contar de onde vêm os bebês?
O Lunetas conversou com educadores para tentar responder a essa pergunta e descobriu que, por trás das dúvidas e dos medos dos cuidadores, existe uma oportunidade para falar de questões mais complexas, como consentimento, confiança, responsabilidade e maturidade. “É muito comum as crianças questionarem como surgiram e isso está diretamente relacionado à formação da personalidade delas. A parte biológica é apenas um dos elementos”, explica Caroline Arcari, pedagoga e mestra em educação sexual pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Em sala de aula, Arcari já pediu para crianças de cinco anos desenharem como vieram ao mundo. Algumas desenharam cegonhas; outras, aviões jogando os bebês no ar.Uma delas, que nasceu em dezembro, se desenhou dentro de um pacote debaixo da árvore de Natal, pois a família contava que ela havia sido deixada pelo Papai Noel. A partir da experiência, ela percebeu como esse é um momento importante de descobertas na vida dos pequenos.
“É importante que a criança saiba de onde veio, como veio, se foi desejada pela família. Em geral, as pessoas têm muito medo sobre como falar, se vão erotizar a criança, ou se ela ficará com nojo, mas essas são hipóteses sem fundamentação teórica”, afirma Arcari.
E se a gente inverter a pergunta?
A criança, quando começa a perceber as pessoas ao redor, pode lidar com situações como uma gravidez na própria família, e a chegada de um primo ou irmão. “As crianças são questionadoras por natureza, mas essa dúvida específica geralmente está ligada a um contexto”, afirma Cláudia Bonfim, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Sexualidade (Gepes), da Faculdade de Ensino Superior Dom Bosco.
De acordo com ela, é importante prestar atenção na curiosidade de cada criança ao pensar na resposta, para sanar a dúvida e entender o limite do interesse daquela pergunta. Não existe consenso sobre o melhor momento para abordar o tema. “A resposta deve ser simples, objetiva e natural”, detalha. “Depois, é preciso pensar na linguagem, porque, dependendo da idade, ainda não é necessário que ela saiba como funciona todo o processo de reprodução”. Ela também recomenda aos adultos inverter a pergunta e questionar a criança como ela acha que os bebês nascem ou a mulher engravida.
Arcari defende uma educação não reativa. “A gente não sabe por que a criança perguntou. Às vezes, o tema já foi abordado de outra forma, na escola, por exemplo, e a criança foi repreendida”, diz. “Então, ela fica constrangida e cria barreiras. Pode não ser falta de curiosidade, mas de coragem.”
O que considerar para responder de acordo com a faixa etária
Até 4 anos
- Falar nomes corretos dos órgãos genitais
- Explicar que bebês vêm da barriga das mães
- Responder perguntas básicas sobre o funcionamento do corpo
- Falar sobre privacidade
- Não é recomendado dar detalhes sobre procedimentos médicos
Dos 4 aos 6 anos
- Explicar como os bebês se desenvolvem na barriga da mãe
- Informar sobre o processo de nascimento
- Introduzir informações básicas de anatomia
Dos 7 aos 12 anos
- Introduzir noções básicas de reprodução, gravidez e parto
- Falar dos riscos envolvidos em relações sexuais (gravidez e doenças)
- Informar noções básicas de contracepção
A partir dos 12 anos
- Introduzir métodos de prevenção contra doenças
- Abordar de maneira mais completa características dos relacionamentos
Fonte: Quindim, Child Sexual Abuse Committee of the National Child Traumatic Stress Network e National Center on Sexual Behavior of Youth
Régia, por exemplo, foi orientada pela pediatra dos filhos a aguardar o momento em que eles perguntassem. “O meu filho mais novo só perguntou até agora como saiu da barriga. Acho que foi porque a minha sobrinha teve um filho e ele ficou curioso. É o primeiro bebê da família que ele vê, então quis saber se havia nascido da mesma forma”, diz. “Não entrei nos pormenores, mas também não escondi muito. Eu queria que tivesse até perguntando mais coisas. Eu prefiro saber que sou a primeira a contar.” Os dois ficaram satisfeitos com a resposta, mas a conversa, nesse caso, enveredou pelas diferenças entre parto normal e cesárea.
Informação é um direito da criança
As respostas para perguntas sobre parto, nascimento e surgimento dos bebês são pano de fundo do processo de educação sexual na infância, o que envolve muitas vezes valores sociais, morais e religiosos das famílias. Arcari ressalta que a sexualidade faz parte do desenvolvimento global da criança e, portanto, envolve conhecer e se sentir bem com o próprio corpo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), quanto menos informação, mais precoce pode ser o início da vida sexual da criança, muitas vezes permeada por situações de violência.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que toda criança tenha acesso à educação e informação, o que inclui abordar a sexualidade. Portanto, é fundamental que pais e cuidadores, junto de entidades governamentais e escolas, possam esclarecer suas dúvidas. “A sexualidade está presente desde o momento em que a criança é gerada”, afirma Bonfim. “Envolve sentimentos, percepções e experiências afetivas”.
No caso das perguntas sobre nascimento, o ideal é que os pais sejam envolvidos na resposta. Se eles não têm segurança em responder, Arcari lembra que não há problema em dizer à criança que não sabe ou que vai pesquisar melhor. “Você pode falar para a criança: ‘obrigada por confiar em mim para perguntar isso. Vamos fazer o seguinte, amanhã à noite eu te conto.’”
“É saudável o adulto mostrar que foi pego de surpresa, que precisa de um tempo ou que está com medo”
Materiais de apoio
“Do ponto de vista prático, mostrar imagens, como as da ultrassonografia, sempre pode ajudar, para que os pequenos não pensem que o bebê fica no estômago comendo feijão com a mãe”, diz Arcari. Em contrapartida, Bonfim não recomenda o uso de metáforas, como histórias de cegonha, sementes, presentes. Isso porque a criança pode entender de maneira literal ou ficar confusa. Por fim, “ possível usar a denominação científica para se referir ao aparelho sexual, pois ela não tem caráter erótico.”
A conclusão das especialistas e da própria Régia é que, no fim das contas, a honestidade é fundamental para fortalecer o vínculo e criar a confiança para abordar desde questões simples do dia a dia até as mais complexas, como explicar de onde vêm os bebês.
Os responsáveis podem usar esse tempo para ler textos sobre o tema e buscar ilustrações ou vídeos para contextualizar, como a série “Que corpo é esse?”, do Canal Futura, ou os livros “Gogô: de onde vêm os bebês?”, da própria Carolina Arcari, e “Mamãe botou um ovo!”, de Cole Babette; consultar amigos que já passaram pela situação; falar com professores na escola ou consultar um psicólogo dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).