A vida profissional da analista administrativo Natália Ribeiro mudou no dia em que anunciou a gravidez da primeira filha na loja onde trabalhava como vendedora. Ela foi questionada por ter contado apenas aos quatro meses de gestação, ainda que houvesse descoberto só naquele momento. A partir daí, começou a receber trabalhos braçais, como limpar as vitrines da loja. Quando o bebê nasceu e ela voltou da licença-maternidade, foi deslocada da função original e viu a renda cair mais de 80%. Ela desenvolveu síndrome do pânico e depressão pós-parto e credita o adoecimento mental aos constrangimentos que viveu, similares a experiências de outras mães no mercado de trabalho.
Depois de um tempo, Ribeiro conseguiu outro emprego em um escritório. Tudo estava indo bem, até o dia em que a filha sofreu um acidente na escola e ela precisou se deslocar até lá. A chefia dela, então, decidiu ligar para a escola para confirmar se era verdade e ainda tentou enfrentá-la, afirmando ser mentira. Já em um banco, onde trabalhou por cinco anos, viveu outra situação quando precisou acompanhar a filha em um internamento por três dias. “Como era período de Natal, surgiram histórias nos corredores de que ela não estava internada e eu só não queria trabalhar”, lembra.
“Você tem que trabalhar como se não tivesse filhos e cuidar dos filhos como se não trabalhasse”
Ribeiro não está só. Uma pesquisa realizada em 2019, pelo site Vagas.com, mostrou que 52% das grávidas ou mulheres que voltam da licença-maternidade já sofreram algum constrangimento no trabalho. Além da mais conhecida forma de abuso, a demissão após a licença, elas mencionaram comentários desagradáveis e falta de empatia. De acordo com o levantamento, em oito de cada dez casos, o responsável pela situação é o próprio chefe.
Os dados acompanham outras pesquisas, como a do Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva, de 2020, que mostra que 76% das mulheres já passaram por ao menos uma situação de violência e assédio no trabalho.
Entre questionamentos, ameaças e demissões
As situações são variadas: empresas que começam a fazer pressões psicológicas sobre o retorno; líderes que insinuam que a mulher não vai render tanto ou que engravidou para “segurar o emprego”; demissões no retorno ao trabalho ou até mesmo desligamentos durante a licença. Por lei, a mulher não pode ser demitida enquanto está gestante. Há também uma estabilidade de cinco meses, contados da data do nascimento da criança, porém só é válida para contratos CLT. Na prática, muitas mulheres acabam demitidas após o período de estabilidade ou ao retornar da licença, por ter trabalhos informais ou contratos por pessoa jurídica.
Com o crescimento das redes sociais e perfis destinados à maternidade, muitas mulheres têm divulgado esses relatos de desrespeito. De acordo com Marina Gabriela Nunes, produtora audiovisual da plataforma de gestão de pessoas Pulses, os casos acontecem tanto na gravidez, quanto no retorno ao trabalho e até mesmo no puerpério.
As mulheres que optam por deixar seus empregos para se dedicar ao filho quando resolvem voltar a trabalhar, enfrentam questionamentos como “quem fica com a criança se ela adoecer?”, “você tem com quem deixá-la se precisar?”, “pretende engravidar novamente?”, “você precisa realmente sair e buscá-la na escola mais cedo?”. Se uma mulher busca por emprego no período de primeira infância do seu filho, também são comuns relatos de que mesmo muito qualificadas, não são contratadas por suas “situações familiares”.
Esses casos acontecem porque é comum acreditar que a mulher que tem filhos precisa escolher entre a carreira profissional ou a maternagem. “Infelizmente, muitas vezes, elas não contam com a participação do companheiro, políticas governamentais ou empresas dispostas a serem sua rede de apoio para a criação de uma nova geração”, afirma Nunes.
Múltiplas camadas de constrangimentos
As pressões e assédios em torno de mães no ambiente de trabalho têm suas próprias camadas, como evidencia a história de Cintia Batista. Após 15 anos dedicada à vida profissional, ela decidiu ser mãe. Após engravidar de gêmeos, aos 32, viu a empresa tirar projetos que eram de sua responsabilidade. Depois de retornar da licença, quando precisava sair para levar as crianças a consultas médicas, não sentia acolhimento e via olhares críticos de colegas e gestores. “Eu me senti até inútil, porque a empresa não me passava nada”, conta. Em contrapartida, quando questionava, a gestão duvidava da sua capacidade em entregar as atividades, “porque tinha que lidar com os filhos”.
“A maternidade é uma experiência pessoal indescritível a nível pessoal, mas, profissionalmente não somos mais vistas como antes”
Com um ano e meio, teve uma segunda gestação. “Quando fui comunicar ao meu gestor, ele me disse: ‘Cintia, você é louca, arrumando filho numa crise dessa! Como você vai criar?’”. Ela foi demitida logo após passar o período de estabilidade para puérperas previsto em lei.
Para Rachel Firmo, gerente de RH, esse é um exemplo de como até mesmo a quantidade de filhos pode influenciar no nível de julgamento contra as mães no ambiente de trabalho. “Quando eu engravidei do meu terceiro filho, ouvia que era louca, me perguntavam se eu não tinha televisão em casa”, diz.
Quando o racismo potencializa a pressão às mães
Para estar no mercado de trabalho, Cintia Batista enfrentou ainda o racismo. Como mulher negra, acreditava que fazer graduação e pós-graduação seria uma forma de romper barreiras suficientes para alcançar lugares onde muitas mulheres negras não conseguem chegar. “Eu pensei que estaria abrindo um leque de oportunidades, mas acabei fazendo parte de um funil, onde sou completamente invisibilizada por ser profissional e mãe”, lamenta.
Ela já sabia que enfrentar o mercado de trabalho sendo uma mulher negra lhe traria o dobro de cobranças e olhares críticos se comparada a uma mulher branca. Para Batista, dentro do recorte da maternidade, as mulheres negras se tornam ainda mais inseguras frente aos constrangimentos e a cobranças que passam depois de serem mães. Esse foi um dos motivos que também levaram Rachel Firmo, que já ingressou no mundo corporativo sendo mãe, a evitar falar da maternidade e dos filhos ao longo da carreira, por receio das críticas e situações pelas quais poderia passar.
“Existem julgamentos dentro do ambiente corporativo, principalmente para mim que sou uma mulher preta, vim de uma faculdade que não ‘A’ e tive uma escalada até a posição que estou”, explica.
“Se a maternidade já é uma questão, quando falamos da mulher negra isso se potencializa. A sensação é que qualquer motivo pode ser usado para não estarmos ‘lá’”
Todos esses constrangimentos, somados aos preconceitos e camadas de desigualdade da sociedade brasileira, fazem com que muitas mães desenvolvam o sentimento de insegurança relacionado às próprias competências profissionais.
Muitas delas se desdobram para provar a competência pós-maternidade. Tanto Firmo quanto Ribeiro, por exemplo, já trabalharam enquanto os filhos estavam internados, para evitar questionamentos e perda de produtividade. Elas não foram obrigadas pelos gestores, mas a própria cobrança pessoal as levou a tomar a decisão de trabalhar em uma sala do centro médico. Hoje, elas se arrependem.
“Quando a mulher é negra, as pessoas ainda a veem como forte, guerreira. Falta uma empatia até para perceber que ela pode se cansar” – Rachel Firmo
Maternidade e direitos trabalhistas
Pela legislação brasileira, as mães no mercado de trabalho têm vários direitos. Um deles é a licença-maternidade, hoje estabelecida em 120 dias e podendo começar após o parto ou antes, caso a gestante opte por isso. Se a empresa participa do Programa Empresa Cidadã, podem ser acrescentados mais dois meses nesse período.
A mulher tem direito ainda à estabilidade empregatícia de cinco meses após o parto e garantia à saúde durante a gravidez (a funcionária pode faltar até seis vezes para acompanhamentos médicos, com apresentação de atestado). Caso desempenhe funções que possam colocar sua vida ou a do bebê em risco, é direito que a função seja alterada durante a gestação. Fora isso, existem também os acordos entre colaborador e empresa, momentos para amamentação, possibilidade de home office, entre outros.
Mas os constrangimentos vão além de ter ou não legislação para proteger a mulher. É preciso, acima de tudo, mudar a cultura.
“Como sociedade, precisamos entender que a criação de uma criança é responsabilidade coletiva e não apenas da mãe”, afirma Marina Gabriela Nunes.
“Só depois pode haver mudança em relação a essa cultura que oprime mulheres, e que acredita que uma boa profissional não pode cuidar dos filhos.”
Segundo ela, a empresa que se propõe a ser respeitosa ganha colaboradoras engajadas, taxas de bem-estar no trabalho elevadas, confiança para ser indicada como um bom local para se trabalhar e destaque em buscas de colaboradores.
O que as empresas podem fazer
Para romper com essa cultura, as empresas podem tomar algumas atitudes em relação a mães no mercado de trabalho. Marina Gabriela Nunes e Rachel Firmo elencam algumas:
- Compreensão. Entender todos os medos que se instalam na mulher com a descoberta da gestação e o que mais envolve a organização é a segurança financeira e a estabilidade empregatícia. Para isso, é necessário ouvir as gestantes/mães e não pressioná-las ou colocá-las numa situação de escolha. É preciso também entender que as gestações e as maternidades são diferentes, portanto as funcionárias podem ter comportamentos e necessidades específicas.
- Flexibilidade. Acolher, ouvir, fazer grupos de apoio a novas gestantes; tentar adaptar o ambiente para que a mulher se sinta confortável; oferecer oportunidades de home office, se possível; criar benefícios como plano de saúde estendível aos dependentes; e facilitar a amamentação.
- Incentivar a paternidade. Estender a atuação aos homens que terão filhos, dando a responsabilidade que lhes cabe nessas situações.
- Liderança. Treinar líderes para receber estas novas mães e colocar mulheres em cargos de liderança.
- Criança, prioridade absoluta. Ter políticas e práticas internas para que todos entendam a criança também como responsabilidade empresarial. Como diz o artigo 227 da Constituição Federal, é dever da família, de toda sociedade e do Estado cuidar da criança, com absoluta prioridade.
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