Festejar o carnaval não é só um compromisso com ritmos e fantasias, mas também com a continuidade da vida: para muitas famílias, o samba é uma herança que atravessa e alimenta gerações. Por meio dele, perpetuam-se os vínculos construídos nas escolas de samba, fontes de renda e memórias de quem ocupa todos os (en)cantos da cidade: dos distantes barracões às mais festejadas avenidas do mundo.
E se alguém disser que ruas e quadras de samba não são lugar de criança, terá de se haver com Adriana Moreira, cantora, intérprete e integrante do Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade de Camisa Verde e Branco, há 52 anos, desde a barriga da mãe. Suas lembranças da infância têm o cheiro da madeira queimada nas festas de junho e o gostinho dos doces de Cosme e Damião, organizados pela escola de samba. Para ela, esse é um espaço que fortalece as raízes de uma cultura negra repleta de arte e pertencimento.
“Camisa verde para mim é herança”
Seus filhos, Raphael e Pedro, não caíram longe do pé, aprendendo, aos poucos, a tocar de tudo na ala mirim da escola. Já o neto, Rafinha, 14, passou direto para a batucada da agremiação. “Acho de extrema importância que cada família e que cada criança possa frequentar os lugares dos seus ancestrais”, defende. Afinal, escola de samba não carrega esse nome à toa: ali começam aprendizados sobre o toque de um instrumento e a apuração de uma acústica que também ensina sobre hierarquia e convivência com a diferença, segundo Adriana, aquilo que “ninguém consegue arrancar”.
Escolas de samba mirins, berço dos profissionais do samba
No samba carioca, a brincadeira de hoje também é terra fértil dos futuros bambas. Desde 1984, quando desfilou pela primeira vez na Marquês de Sapucaí, a escola mirim Império do Futuro foi responsável por revelar grandes nomes, entre mestres-sala, porta-bandeiras e diretores de bateria. Alguns se tornaram nacionalmente conhecidos, como o cantor e compositor Dudu Nobre, autor de sambas de enredo na já extinta Alegria da Passarela. Outros, como Clara Nunes, Beth Carvalho, Alcione e Martinho da Vila, se tornaram madrinhas e padrinhos de escolas, lutando pela sua manutenção e pelo financiamento dos desfiles infantis.
Como explica o diretor da Associação das Escolas de Samba Mirins do Rio de Janeiro (AESM), Alisson Rezende, a participação das crianças no carnaval sempre foi intensa, mas muitos foram os melindres desde a década de 1950 para garantir a presença dos pequenos nas ruas e, posteriormente, no sambódromo. Hoje, as crianças só podem desfilar a partir dos cinco anos, com autorização dos pais, aprovação do juizado de menores e estando matriculadas na escola. “Além disso, nas escolas de samba mirins, elas participam de concursos de sinopse, desenham figurino, aprendem a tocar e costurar ou se envolvem em atividades ligadas ao esporte, como dança e capoeira”, afirma. E é assim que, ano após ano, o samba se renova e inaugura novas gerações. Nesse movimento cíclico, as escolas de samba mirins formam a “divisão de base” do carnaval, nas palavras de Alisson.
“Samba é coisa que se passa de pai para filho, e depois para neto”
Segundo a AESM, a expectativa do carnaval de 2022 é ter entre 20 a 30 mil crianças em 16 escolas mirins, algumas com administração autônoma e outras dirigidas pela escola mãe, como a Herdeiros da Vila e a Estrelinha da Mocidade. Quem mais leva integrantes mirins à avenida é a escola Corações Unidos do CIEP, formada por alunos da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, que não só desfilam, mas produzem os desfiles pelo projeto “Escola de Bamba”, integrado ao currículo escolar. Fundada em 1985 por um grupo de professores e animadores culturais chefiados pelo sambista Xangô da Mangueira, sua história reforça o papel pedagógico que permeia o universo do samba. “Quando as crianças estão envolvidas com o carnaval, elas estão longe do ócio e de ambientes de criminalidade, desenvolvendo habilidades que podem torná-las profissional da área”, afirma Alisson – ele mesmo fruto desse processo intergeracional, tendo começado sua trajetória como ritmista aprendiz em 1991.
Carnaval é folia e herança
“Trabalhei o ano inteiro/ Na estiva de São Paulo/ Só pra passar fevereiro em Santo Amaro.” Os versos de Maria Bethânia, que revelam o apego da cantora baiana pelos carnavais de sua terra, traduzem a vida de muita gente que já nasceu nas tradições dos “fevereiros”, como Tatiana Ribeiro, coordenadora da ala Tati, na Acadêmicos do Salgueiro. “Não viajo, ninguém me tira daqui nessa época”, afirma a professora carioca, que se envolve durante meses nas preparações do ano seguinte. Ela explica que a importância do carnaval está muito além do deslumbre, já que a economia criativa da festa sustenta uma série de trabalhadores braçais e suas famílias de figurinistas, costureiras, escultores, técnicos de som e funcionários da quadra, todos eles impactados diretamente pela crise desencadeada durante a pandemia.
“Não consigo dissociar minha vida do carnaval”
Aos 61 anos, o vice-presidente da escola de samba mirim Mangueira do Amanhã, Ricardo Dias, cruza a genealogia da família com a história do carnaval carioca, desde os tempos em que a avó Felismina desfilava na ala das baianas da Estação Primeira de Mangueira. “Eu observava meu pai e meus tios que vibravam ou choravam nas concentrações, e sentia que havia algo diferente ali”, diz. Hoje, é a filha Isadora quem caminha sobre os passos da bisavó, completando mais de 20 anos de escola e assumindo a coordenação da ala de passistas.
Eu cresci nessa magia. Quem bebe dessa água não larga mais
Há décadas como integrante da ala técnica “Só para quem pode”, Ricardo passou a sentir na pele a emoção familiar que pautou sua infância. Entre os momentos mais marcantes do carnaval, ele recorda a homenagem da escola ao centenário de Nelson Cavaquinho, em 2011, com o enredo “O filho fiel, sempre Mangueira”, que exaltou o caso de amor entre o poeta e a comunidade. Em 2019, relata ter visto muitas lágrimas rolarem na avenida com “História para ninar gente grande”, enredo que trouxe à tona heróis e heroínas negras e indígenas, e com o qual a escola conquistou o seu 20º título de campeã.
“Brasil, meu dengo
A mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato”
(samba enredo “História de ninar gente grande”)
No Brasil que descarta a magia das ruas e domestica a história, ainda há quem diga que carnaval e infância não combinam. Pelo contrário, se a cidade em festa for um lugar acolhedor e saudável para as crianças será também para todos. “Mas ainda há uma forma inapropriada e desrespeitosa de tratar o universo do samba”, alerta Adriana Moreira. Para esses, nada mais justo que oferecer o olhar de quem faz história brincando e reinventando a vida a cada ano: as crianças imortalizam o carnaval.
* Colaborou com a produção desta reportagem Raquel de Paula.
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Participação das crianças no carnaval paulistano
“Desde sua origem, as escolas de samba e os primeiros cordões paulistanos surgiram em contextos familiares, agregando crianças, mesmo que ainda de maneira informal”, conta o historiador e doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), André Santos. De acordo com André, os espaços de batuque de umbigada, jongo e de samba de bumbo, trazidos pelas famílias do interior para a capital, sempre foram núcleos comunitários e de resistência da cultura negra. Embora não pudessem participar do samba, as crianças ficavam próximas, ao redor da fogueira e convivendo com a tradição dos mais antigos. Foi apenas após a oficialização do carnaval, e a partir das décadas de 1970 e 1980, que começaram a surgir as baterias mirins e as escolas de passistas, incorporando de vez a participação das crianças no sistema carnavalesco, formando adultos que, futuramente, iriam para a avenida defender o pavilhão das escolas.