“Vivo à beira do Rio Paraopeba desde o meu primeiro ano de idade. Ia com a minha avó para acampar, pescar, nadar. Era muito bom! Depois deste crime da Vale, ficou tudo ruim e a gente não tem mais a pesca. Eu chegava da escola e já ia direto para o rio. O rio tá fazendo muita falta. Eu chorei bastante depois do que aconteceu, quase tive um piripaque. Foi e está sendo muito ruim.”
“Sem o rio não tem brincadeira, não tem diversão, não tem nada!”
O relato acima é do menino Iago, hoje com 13 anos, membro de uma família ribeirinha que dependia do Rio Paraopeba para sobreviver. Mas, depois do dia 25 de janeiro de 2019, suas vidas mudaram completamente pelo rompimento da barragem B1, da Vale, na mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG). Foram despejados 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos com metais pesados, deixando ao menos 270 pessoas mortas e contaminando mais de 200 hectares (equivalente a 280 campos de futebol) de vegetação nativa.
Dona Merita de Jesus, avó de Iago, completa a fala do neto, detalhando a tradição pesqueira da família. Com a voz embargada, lamenta o fato de não poderem mais pescar. “A gente saía com a vasilha cheia de peixe, vendia e trocava. O dinheirinho entrava no bolso!”
“Nossa vida não é mais a mesma e acho que nunca mais voltará a ser”
Quatro anos antes, em novembro de 2015, a barragem de Fundão – outra empresa controlada pela Vale S.A – também rompeu em Minas Gerais, no município de Mariana. Cerca de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro foram despejados em uma região do tamanho de Portugal, deixando 19 vítimas e afetando toda a bacia do Rio Doce. O desastre ainda está em curso, pois 16 milhões de metros cúbicos de rejeitos continuam sendo carreados em direção ao mar. Este é considerado o maior crime ambiental brasileiro e o primeiro a ser apontado como violação de direitos humanos pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Segundo o Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil, feito pela Fiocruz, a lama, ao percorrer o Rio Doce, impactou também a Terra Indígena Krenak, além de ter inviabilizado a renda de diversos pescadores, totalizando a destruição de 1.469 hectares ao longo de 77 quilômetros de cursos d’água, incluindo áreas de preservação permanente.
O impacto ambiental repercutiu mundialmente devido à densa lama de minerais tóxicos e pesados (como chumbo, manganês, arsênio e ferro) que se espalhou sobre rios e matas, comprometendo a qualidade do solo e dos lençóis freáticos, causando alteração no ciclo reprodutivo da fauna local, afetando a cadeia alimentar de espécies animais e consequentemente colocando diversas delas em risco de extinção. Segundo o laudo técnico preliminar do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), pode-se considerar que aproximadamente 400 espécies foram impactadas na bacia do Rio Doce, entre elas, plantas, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos.
Mas, em meio a isso tudo, estão também inúmeras crianças e suas famílias, ainda à espera de acolhida e escuta que, assim como Iago e Dona Merita, sofrem as consequências daqueles dias que mudaram suas vidas para sempre.
As crianças de Mariana: conflitos de identidade, memória e pertencimento
Segundo Karina Gomes Barbosa, pesquisadora de estudos feministas, mídia e infância, e André Luís Carvalho, pesquisador de fotografia, estudos de testemunho e catástrofes socioambientais, ambos docentes da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) que realizam projetos de extensão junto a escolas e comunidades atingidas em Mariana, existem pelo menos quatro perfis de crianças impactadas pelo crime socioambiental.
O primeiro perfil é de meninos e meninas que viviam nos subdistritos de Bento Rodrigues, o primeiro a ser atingido pelo rompimento, ou Paracatu de Baixo, localizado a 35 quilômetros de Mariana. São crianças que sofreram efetivamente deslocamentos forçados, tendo de morar no distrito-sede (Mariana). Estas crianças viveram a infância em um lugar que hoje é inabitável e se tornou pura ruína. O fim da infância e a entrada na adolescência foi marcado por uma separação brusca e abrupta dos amigos e das comunidades.
Se em Bento e Paracatu todos moravam perto e tudo se fazia a pé, podendo caminhar com segurança e tranquilidade por toda a localidade, em Mariana as famílias vizinhas foram separadas e espalhadas pela cidade em casas alugadas primeiro pela Samarco, depois pela Fundação Renova – entidade responsável pela reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem do Fundão, tendo a Vale como sua principal mantenedora. Na opinião dos pesquisadores, tal separação foi feita deliberadamente para mitigar a força política desses sujeitos, apartando grupos familiares e lideranças por bairros distintos e distantes.
O segundo perfil é de meninos e meninas que eram adolescentes em Bento e Paracatu e chegaram ao distrito sede no fim do ensino fundamental 1. Logo, perderam o contato basilar da escola, que também fortalecia laços sociais pelo convívio diário. Uma mudança em meio a um evento traumático que desarticulou as suas identidades, num lugar novo e desconhecido.
O terceiro perfil são crianças que nasceram em Bento e Paracatu logo antes do rompimento e, portanto, mal se lembram das comunidades e dos espaços, tampouco têm registros ou fotos. As memórias são construídas pelas histórias contadas por adultos, que foram atravessados pelo trauma coletivo.
Por último, as crianças que já nasceram no distrito-sede, após o rompimento. Muitas estudam nas escolas dos subdistritos, mas não viveram nesses lugares. Imagina-se que irão morar nos novos reassentamentos, mas ainda não há certeza de nada.
O novo reassentamento não será na mesma área atingida pelo rompimento da barragem, mas em um terreno que fica a aproximadamente 8 quilômetros do centro de Mariana, com 213 moradias construídas – número variável de acordo com a forma de reparação escolhida por cada família.
“As questões dessas crianças e adolescentes se articulam em torno de identidade, memória e pertencimento. Quem são, a qual lugar pertencem, de onde vêm? São de Bento, Paracatu ou Mariana? Em torno de que elementos suas identidades estão construídas? Quem serão quando voltarem aos subdistritos reassentados? Esses reassentamentos irão se concretizar? Conseguirão emular o que se perdeu?”, questiona Karina.
Em Mariana, recebemos depoimentos de moradores, pais e funcionários das escolas, que não quiseram se identificar, relatando que as crianças atingidas foram apelidadas como “crianças da lama”. Um membro de uma associação de bairro da cidade chegou a contar que, na época, recebeu pedidos para que fosse feito um abaixo-assinado para separar na escola as crianças atingidas pelo rompimento das crianças de Mariana – o mesmo não foi feito, segundo ele. A ofensa “pés de lama” era o burburinho que causou tensão e sufocou Mariana, principalmente entre 2015 e 2017.
Após o rompimento, as escolas de Bento e Paracatu foram provisoriamente alocadas em escolas da sede, o que acarretou uma série de problemas de convivência entre crianças e adolescentes. Segundo o pesquisador André Luís, “muita gente achava (e ainda acha) que era culpa dos atingidos a paralisação das atividades minerárias no município. Houve denúncias de favorecimento aos estudantes atingidos porque eles supostamente teriam recebido ‘mais atenção’ que outras comunidades carentes da sede”.
Racismo ambiental
O relatório “Indícios de racismo ambiental na tragédia de Mariana”, realizado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), revela que as principais comunidades atingidas pela lama eram predominantemente compostas por pessoas negras (80%). Os pesquisadores da UFOP, entrevistados nesta reportagem, trabalharam questões de racismo com as crianças das escolas de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo em um dos projetos realizados, a pedido das diretorias, que já viam episódios racistas envolvendo crianças a partir de 5 anos.
As crianças Krenak: a falta que o Rio Doce faz
A ativista indígena Shirley Krenak denuncia os diversos problemas que o seu povo passou e ainda passa após o crime ambiental em Mariana, que contaminou as águas do Rio Doce. Impactos que vão além do dia a dia da comunidade, e atingem sua espiritualidade, cultura e força. O povo Krenak era acostumado a nadar, pescar e realizar brincadeiras e atividades relacionadas à educação espiritual no Rio Doce, que eles chamam de Watu – “o rio que corre, o rio que fala”.
Quando uma criança nasce dentro da comunidade, por exemplo, ela passa pelos rituais de batismo e consagração no rio, pelo seu significado de proteção e equilíbrio. Hoje, as crianças Krenak não podem mais viver essas experiências. Além disso, as famílias tiveram sua alimentação diretamente impactada, por não ser mais possível pescar no rio, além de plantações terem sido afetadas pela contaminação dos solos.
Shirley explica que as crianças “não têm paz nem para crescer”, pois “esses empreendimentos e essa política corrupta estão tirando tudo deles”.
“Tudo o que fazemos para proteger nossos biomas é para garantir um futuro melhor para os nossos filhos e aqueles que virão depois de nós”
As crianças de Brumadinho: luto que não passa por aqueles que se foram
Choro e lágrimas, desenhos de lama, relatos de sonhos com pessoas que morreram, medo e tristeza como marcas de um transtorno pós-traumático. Estes foram os principais comportamentos observados pela psicóloga Cristiane Cordeiro, que atendeu crianças que perderam parentes em Brumadinho em projeto de uma empresa terceirizada da Vale. Segundo ela, os atendimentos foram superficiais e rápidos e até hoje não houve liberação para sua continuidade. “Espero que os atendimentos tenham sido realizados por clínicas locais, entidades ou até mesmo o SUS, pois infelizmente o luto será eterno.”
O psicólogo Rodrigo Chaves, membro da equipe de saúde mental no sistema público de saúde de Brumadinho, fez uma análise das crianças antes e após o rompimento. Por ser um processo vivenciado há muitos anos e sem perspectiva de resolução, segundo ele, há um aumento de crianças com estresse pós-trauma, distúrbios do sono e da alimentação, depressão, irritabilidade e ansiedade. Esses transtornos podem inviabilizar a permanência de muitas crianças naquele território, fazendo com que elas se sintam mais isoladas e desencadeando novas complicações pela perda de vínculos sociais, culturais e afetivos.
Há ainda casos de crianças submetidas a situações de violência doméstica, devido à mudança no contexto familiar, morte de parentes ou responsáveis e aumento do uso de bebidas e outras drogas pelos adultos.
“Temos casos de crianças órfãs, que não tiveram a oportunidade de se despedir dos seus familiares e passaram por um ‘velório relâmpago’”, explica o psicólogo.
“Situações que, em muitos casos, desencadearam lutos e passagens que não se fecharam, tornando-se patologias que necessitam de auxílio de profissionais de saúde mental”
Entre as principais violações dos direitos das crianças, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) identificou dificuldades em reconhecidas como atingidas; problemas de acesso a políticas públicas; mudanças no contexto e convivência familiar; rompimento de laços sociais e comunitários e negligência quanto ao direito à educação.
Segundo o MAB, a Vale nega indenização por danos psicológicos para as crianças: ao apresentarem os laudos emitidos por psicólogos, um critério para indenização, os advogados da empresa alegam que as crianças não tiveram danos na saúde mental.
Os impactos na saúde das crianças de Brumadinho e Mariana
Estudos, como o relatório Prisma da UFMG, mostram um aumento considerável de problemas de saúde mental entre os jovens atingidos. Muitos não são tratados, e os traumas se enterram junto às suas subjetividades. Algumas escolas e famílias preferem não abordar o passado, com receio de que isso possa gerar processos ininterruptos de novos traumas. De fato, entrevistados abordados durante a apuração desta reportagem preferiram não falar mais sobre o assunto.
Segundo relatório da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), crianças e idosos são as populações mais afetadas pela poluição ambiental após o rompimento das barragens. Houve aumento de casos de intoxicação crônica pela contaminação da água e solo, surgimento de problemas de pele, aumento de doenças do aparelho digestivo e respiratório, dentre outros.
“As consequências à saúde física acontecem principalmente pela contaminação por rejeitos tóxicos da barragem. Muitas cidades foram impactadas pela lama, mas não destruídas completamente, e seus habitantes continuaram em contato com aqueles metais pesados, de maneira direta ou indireta, via consumo de água e alimentos. Mas também há o impacto psicológico, devido à remoção forçada de famílias de cidades que desapareceram da noite para o dia”, explica Fabiana Alves, coordenadora de Clima e Justiça do Greenpeace Brasil.
“A perda de vidas causa ruptura familiar com impactos econômicos e sociais, além de ser um trauma insubstituível e sem valor econômico”
Tal como o relato do menino Iago, conversas informais com alguns moradores revelaram que as crianças sentem falta de momentos singelos como subir em árvores, sentar na calçada, falar com os amigos pelo muro da casa e, principalmente, do contato com o rio e com o verde.
O projeto de extensão “Sujeitos de suas histórias” realizado pelos professores da UFOP, citados no início desta reportagem, acolhe crianças e adolescentes atingidos desde 2016, em Mariana. Com a pandemia, um novo obstáculo surgiu, pois os encontros não podem ser mais presenciais. Crianças e jovens relatam solidão, uso excessivo e pouco orientado de redes sociais, jogos on-line e dificuldades em fazer amizades. Reclamam também da mobilidade reduzida com a pandemia: muitas famílias costumavam ir a Bento Rodrigues e a Paracatu para recordar, fazer orações, passear pelos lugares que restaram e chorar com a recordação de como tudo era antes.
Justiça que não chega
A Fundação Renova, por meio de contato telefônico, informou que há 42 programas transversais que atendem moradores de todas as faixas etárias em eixos socioeconômicos e socioambientais como recuperação das escolas, apoios financeiros, retomada das atividades pesqueiras, incentivo à liderança jovem, dentre outros descritos no portal da instituição. Mas não entrou em detalhes sobre o reassentamento e indenização das famílias, um processo que se alonga há anos.
Na prática, várias ONGs, projetos comunitários e iniciativas populares se unem para tentar amenizar os impactos da tragédia na vida da população local e na cobrança de respostas e defesa de seus direitos.
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De acordo com Dalce Ricas, superintendente executiva da Associação Mineira de Defesa do Ambiente (AMDA), “com a ruptura da barragem da Vale no Córrego do Feijão, milhares de animais silvestres morreram, e nunca saberemos ao certo quantos foram. Mesmo com a intervenção humana, a regeneração desses ambientes será muito demorada, pois a morte dos animais e das florestas causa efeitos sobre todo o entorno.”