Às margens do Rio Paraguai, no Porto Geral de Corumbá, em Mato Grosso do Sul, fogos de artifícios anunciam o início do cortejo. Os festeiros descem a ladeira com andores nos ombros, e fazem rezas e cantorias em procissão até chegarem à beira do rio para o banho do santo, que representa o batismo de São João. Este é o famoso ritual do Banho de São João, que acontece dentro do Arraial de São João, no Pantanal, todo mês de junho.
“Se São João soubesse
Que hoje era seu dia
Descia do céu à terra
Com prazer e alegria”
Entre gritos de “Viva São João”, Rafaela, 11, participa da festa todo ano com sua família, com quem aprendeu sobre a comemoração. “Em todo lugar que tem festa, minha família está lá. Essa época é de muita alegria e felicidade. Eu gosto das danças, das comidas típicas, de quando damos o banho no São João na beira do Rio Paraguai. Gosto de tudo”, afirma animada. Depois de dois anos sem participar da festa na rua em razão da pandemia da covid-19, ela está com saudade. “Quando eu ficar adulta, vou ensinar essa cultura em minha casa, na família que eu formar. Não vou deixar isso ser esquecido”, assegura.
A mãe da Rafaela, Luciana Maria Espinoza, tem amor pela festa e incentiva a participação da pequena e das outras três filhas (Adriana, 28, Julianna, 26, e Gabriella, 22). Ela conta que “a tradição é muito forte na cidade, faz parte do calendário anual nas escolas e a cultura vai passando entre as gerações. Sinto que isso me aproxima mais das minhas filhas. É o nosso momento preferido”, sentencia. “Eu aprendi com meus pais e tenho certeza que elas vão passar aos filhos e aos netos o que aprenderam conosco: desde as rezas, danças, até a história de como começou a tradição em nossa família”, diz.
As crianças são convidadas a participar de todo o processo do festejo. Elas ajudam na ornamentação, na organização e na realização das brincadeiras, como quadrilha, estalinho e jogar madeira na fogueira. Os pequenos participam também das procissões carregando lanternas, simulando as velas, bandeiras e até pequenas imagens de São João Batista.
A psicóloga Talita Macedo de Oliveira lista alguns benefícios nesse envolvimento das crianças com eventos culturais que vão do favorecimento do desenvolvimento com qualidade de habilidades socioemocionais a conexões e vínculos afetivos fortalecidos com os pais e com a comunidade do local, promovendo relacionamentos interpessoais mais saudáveis.
Sandra Gomes Melgar, festeira e mãe de Luíza, 10, afirma que na cidade não “se ensina” a festar, porque é como se cada um já nascesse sabendo e gostando de algo tão popular. “Meu sentimento como mãe é de dever cumprido, de saber que eles estão aprendendo algo tão emblemático da nossa região, que faz parte da nossa raiz. Levar as crianças para prestigiar a festa é uma forma de aproximar toda a família”, ressalta.
Ela começa a preparação para a festa no início do mês de junho e faz isso sempre ao lado da filha para que a aproximação entre elas seja maior. É nesse período que começa a confecção do vestido que será usado, as comidas que serão preparadas são listadas e a decoração da cidade começa a tomar forma: as ruas são enfeitadas com bandeirinhas coloridas e as casas içam mastros coloridos em vermelho e branco que simbolizam a presença do São João. No topo dos mastros, uma coroa enfeitada com flores traz fitas onde se escrevem as graças que as famílias almejam.
“Eu participo todo ano com minha família porque a festa significa alegria, muitas cores, tradição e religião. Sempre vamos ao porto ver o banho de São João. Quando eu for adulta, vou querer ser assim com meus filhos também”, declara Luíza. A menina também ensaia as danças na escola e no Instituto Moinho Cultural Sul-Americano, onde aprende a origem e o significado da festa.
Rafaela também participa da festa do Moinho Cultural há pelo menos cinco anos e acredita que vai fazer isso para sempre. “É uma oportunidade de as crianças mergulharem e aprofundarem os conhecimentos sobre a festa junina. Elas aprendem sobre os instrumentos e fazem o trabalho manual da decoração. As crianças são preparadas para serem as salvaguardas do nosso São João futuramente”, observa a mãe, Luciana.
O espaço, que atende 400 crianças e adolescentes de Corumbá, Ladário e das cidades bolivianas de Puerto Suarez e Puerto Quijarro, realiza um ritual simulando o Banho de São João com as crianças, com o objetivo de manter a tradição cultural da cidade e ser um momento de festa para as crianças, comenta Márcia Rolon, diretora executiva do instituto.
“O Moinho Cultural não possui razões religiosas. Nós mantemos a tradição por acreditar que essa manifestação é a que mais nos representa como pantaneiros e também por ter a dança e a música regional muito presente. Normalmente esse é o único momento em que dançamos o siriri, sendo a música executada com a viola de cocho e instrumentos de percussão característicos do nosso Pantanal”, fundamenta. Além de dançarem quadrilha e siriri, as crianças tocam instrumentos de percussão e metais, brincam e comem pratos típicos, como sarravulho, paçoca, carne seca, arroz carreteiro e a saltenha boliviana.
Breve histórico do Banho de São João e reconhecimento como Patrimônio Cultural do Brasil
O Banho de São João teve origem no século 14, com o costume português do banho de rio, que era obrigatório no dia do santo. José Gilberto Rozisca, coordenador do Museu Casa do Dr. Gabi e da Fundação da Cultura e do Patrimônio Histórico de Corumbá, explica que a festa é uma manifestação cultural de caráter religioso, praticada nas cidades de Corumbá e Ladário desde por volta de 1884. São mais de 100 devotos-festeiros oficialmente registrados que honram o santo de diferentes formas em suas casas ou comunidades.
“Seja por promessas feitas, graças alcançadas ou costumes familiares, católicos, umbandistas, candomblecistas e kardecistas realizam novenas, missas, rezas, giras e festas, para agradecer e pedir bênçãos e proteção. No dia 23 de junho, carregando andores bem ornamentados com a imagem de São João no topo, os festeiros descem a ladeira rumo à beira do Rio Paraguai para banhar o santo e, depois, retornam para suas casas, no intuito de continuar a festa, que muitas vezes segue noite adentro”, pontua.
Em 2010, o Banho de São João foi reconhecido como bem cultural de natureza imaterial do estado de Mato Grosso do Sul. Em maio de 2021, ele foi reconhecido e registrado como Patrimônio Imaterial pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Álvaro Banducci, antropólogo da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e coordenador do grupo de pesquisa que coletou o material para o processo de registro, esclarece que o ritual do Banho de São João é o elemento que singulariza essa festa e a diferencia das outras de São João realizadas pelo país. Para ele, trata-se do reconhecimento da tradição que extrapola o âmbito regional.
Já o diretor do Iphan, Tassos Lycurgo, destaca a transmissão entre gerações como a característica principal dos patrimônios culturais imateriais. “Elas são comumente práticas passadas de nossas avós e avôs para nossos pais e depois para nós, que as passaremos para nossos filhos.” Para ele, “o patrimônio cultural imaterial realiza um elo entre passado, presente e futuro, conferindo um sentimento de pertencimento às futuras gerações, além de reiterar a cultura como um direito a ser desfrutado, também, pelos mais jovens”, finaliza.
Leia mais
Devido à pandemia, desde 2020, o Banho de São João está sendo realizado apenas em âmbito doméstico, dentro de casa. A festa acontecerá normalmente em 2022. A prefeitura de Corumbá recomenda seguir os protocolos sanitários.