Quando perguntada sobre o porquê de gostar tanto de animes, Júlia, 14, não consegue formular uma resposta precisa. “Não sei porque eu gosto tanto de anime. O que diferencia dos demais desenhos animados é a cultura. O Japão sempre tenta mostrar algo fofo mesmo que alguns animes sejam sangrentos”, pondera. Fã de animes desde os sete anos de idade, “Attack on Titan”, “Demon Slayer”, animações do Estúdio Ghibli como “O castelo animado” e “A viagem de Chihiro”, e o mangá “Blue Period” estão entre seus favoritos.
Júlia faz parte da geração streaming, que tem muita coisa para contar a uma geração de adultos que assistiam “Cavaleiros do Zodíaco” e “Sailor Moon” na TV aberta. Se entre 1990 e 2000, as cores, narrativas cativantes e estéticas diferentes de personagens como Shiryu de Dragão ou Usagi Tsukino. O nome foi adaptado para “Serena” na versão brasileira de Sailor Moon encantavam crianças e adolescentes da época. Por que animes continuam causando fascínio nas crianças de hoje?
Paixão que se espalha
Influenciada por seu vizinho que cuidava dela enquanto sua mãe trabalhava, Júlia começou a assistir “Naruto”, aos sete anos de idade. A paixão cresceu tanto a ponto de ser transferida para a mãe, que hoje em dia acompanha o anime junto com ela. “Eu não assisto todos os animes mas me interessei pelo convite da minha filha em assistir ‘Naruto’, para a gente passar um tempo juntas. E acabei gostando”, relata Débora, mãe de Júlia. Apesar de pularem partes consideradas pesadas durante as maratonas, “Naruto” é ambientado em cenários de guerra, Débora destaca os ensinamentos sobre amor e amizade da produção.
Vivência em família
Enquanto esse amor pelas animações japonesas é um pouco complicado de colocar em palavras para Júlia, Victhor, 17, é enfático ao justificar o seu interesse. “Curto porque eles se levam mais a sério do que desenhos do ocidente. Além de todo o estilo de animação diferente da maioria”, explica. Ao contrário de Júlia, que levou a paixão dos animes para a mãe, Victhor passou a gostar do estilo de animação por causa da irmã Izabella. Ela o convidou para assistir “Attack on Titan” com ela e o marido. Não deu outra: o menino adorou! Victhor começou a desenhar os personagens e frequentar eventos de anime e cultura japonesa com a irmã.
Localizado no centro de São Paulo, o bairro da Liberdade foi construído por negros e imigrantes de países asiáticos, como Japão e China. Entre locais que remetem à memória negra da cidade, como a Capela dos Aflitos, e decorações de luzes típicas do Japão, o bairro possui o maior reduto de lojas voltadas à cultura pop japonesa em São Paulo. em São Paulo para os apaixonados pela história do ninja que sonhava em ser hokage – nome dado ao líder de um país no universo do anime.
“Nós já fomos duas ou três vezes na Liberdade. É um passeio muito interessante, acabo me empolgando mais do que ela, como se fosse criança, querendo tirar foto dos personagens”, diz Débora Valadares.
Interesse pela cultura pop japonesa
A questão do fascínio pela cultura pop japonesa também é explicada pela cientista social Bruna Navarone Santos. O profissional pesquisa anime, mangá e sci-fi no grupo de estudos AMSEC-POP, da Fiocruz-RJ. Segundo ela, a identificação e o desejo de viver aventuras expostas pelos personagens são os fios condutores dessa relação entre animes e crianças.
Somados a técnicas de enquadramento cinematográfico, de animação e da utilização de elementos da cultura japonesa que permitem aproximação com expressões faciais, posturas e gestos comunicados pelas personagens. “O interlocutor estabelece uma relação com as personagens, proporcionando situações e sensações que podem remeter a emoções, lembranças e desejos”, conta.
Uma das características mais marcantes na estética de animes e mangás são os grandes olhos dos personagens, brilhantes e coloridos. Esses que expressam com maior facilidade sentimentos de felicidade, raiva ou tristeza. Os “heróis” dos animes passam por diversos processos de humanização que aproximam as crianças de suas histórias. Entre trajetórias tristes e felizes, a perfeição esperada do herói caricato raramente tem espaço nesse tipo de animação.
Antes e depois do streaming
Para transferir o interesse em animes para o irmão Vichtor, Izabella faz parte de uma geração que assistia animes na TV aberta. Hoje, com 31 anos, tem “Cavaleiros do Zodíaco” como uma das suas primeiras lembranças da televisão. “Eu via a maioria dos episódios, nem sabia que o nome era anime, fui descobrir na adolescência”, comenta. Animes, como “Dragon Ball Z”, “Card Captor Sakura”, “Sailor Moon” e “Guerreiras Mágicas de Rayearth” são alguns dos títulos que Izabella assistia. Porém era só com “DBZ” e “Sakura” que ela conseguia ter uma noção de continuidade, porque acompanhava pelo canal de TV a cabo Cartoon Network. Os outros ela assistia mesmo sem entender a progressão da história.
Em dezembro de 2020, houve uma nova tentativa de veicular animes na TV aberta. Foi lançada a Loading TV, com programação dedicada a animes, games e cultura geek no canal 32. Apesar da audiência do canal ter crescido de maneira expressiva, a desistência de patrocinadores, demissões massivas e condições degradantes de trabalho levaram a Loading a encerrar as atividades em novembro de 2021.
“No streaming você tem uma grande variedade de títulos, com adição quase que diária de novos conteúdos, fomentando o entretenimento e a cultura. Então, não foi só a indústria que mudou. Mas também a forma de pensar do mercado”, explica Jailson PS Junior. Ele é diretor executivo da Anistage, uma plataforma de streaming com animes 100% brasileiros. O especialista explica que a maior base de usuários da iniciativa tem entre 16 e 17 anos, seguidos de jovens adultos entre 18 e 25.
Acesso não é para todos
Ainda há muita divergência no acesso à cultura pop japonesa e geek para meninos e meninas ao redor do país. Para Caroline Muniz, uma das responsáveis pela mangateca do projeto Anime Dicria, no Rio de Janeiro, o meio nunca é pensado para incluir as crianças. “Só é possível uma pessoa menor de idade estar nesse meio se os pais ou cuidadores tiverem um poder aquisitivo em que a vida não seja limitada à sobrevivência da família”, pontua.
Idealizada pelo artista Edson Cura, a Mangateca Comunitária Dicria, localizada no Morro do Fallet, na região do Catumbi, centro do Rio de Janeiro, oferece um espaço de leitura com mangás e HQs. Também é um lugar de acolhimento e socialização para a comunidade que, antes da inauguração da mangateca, só tinha um campo de futebol como espaço de lazer.
Giselle Vasconcelos, bibliotecária do espaço onde a mangateca está inserida, reforça o ponto de Caroline: “a cena de animes e mangá no Rio de Janeiro é elitizada e escassa. Além de não possuírem preços acessíveis, não há muitos eventos focados para o público da zona norte, baixada e o público periférico”, explica. No Rio, a edição 2022 do Anime Friends, um dos maiores eventos de cultura pop do país, tem ingressos promocionais por R$ 40, enquanto em São Paulo os ingressos custam o dobro.
Identificação e pertencimento
Identificação também fala sobre pertencimento: adquirir mangás, fazer cosplays ou comparecer em eventos envolve tempo e dinheiro. Mas, entre lutas com espadas, uso de magias, deuses ou no mais simples cotidiano, o universo lúdico dos animes traz um estilo de vida que vai além de consumir produtos. Assim como ensinou Naruto, é sobre seguir o seu jeito ninja de ser e encontrar inspiração para ir atrás de seus sonhos. E esse ensinamento ninguém é capaz de tirar.
“Se você não gosta do seu destino, não o aceite. Em vez disso, tenha a coragem de mudá-lo do jeito que você quer que ele seja”, Naruto Uzumaki.
*Muitas obras de animação e mangás não possuem conteúdo adequado para crianças. Conversar sobre classificação indicativa e sobre o que as crianças consomem é recomendado e importante.
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“Naruto” no Brasil
Além do boom de animes dos anos 1990 e 2000, no dia 2 de julho de 2007, o SBT transmitiu o primeiro episódio de “Naruto”, dando início a um dos maiores fenômenos da cultura pop japonesa no Brasil. Apesar da fama que a animação teve em terras brasileiras, assim como vários outros animes, “Naruto” sofreu com diversas reprises enquanto passava na TV aberta, dificultando o acompanhamento da história em um país onde o acesso à internet ainda era caro e escasso. “Naruto” marca uma época de fansubs (grupos de fãs que se juntavam para legendar animes em português), de downloads em lan houses e de variados produtos que enchiam as vitrines do bairro da Liberdade.