Uma criança com agenda preenchida, com horário para tudo. Rotina definida para alcançar sonhos planejados antes mesmo do nascimento. Aula de dança, música, idiomas e a prática de um esporte, pelo menos. A receita vem sendo vendida cada vez mais cedo como um ativo para o sucesso. A produtividade virou uma palavra do cotidiano infantil, deixando a agenda cada vez mais lotada de atividades e a criança invadida por pressão, competitividade e ansiedade. Por isso, especialistas em educação, a escola e a família discutem os limites e as possibilidades em busca do “futuro dos sonhos”.
O planejamento entrou na vida da filha da professora Janine Arruda, 38, antes mesmo do nascimento da menina. Muito desejada pelos pais, Mariana teve uma rotina desenhada, desde os primeiros meses de vida, para que o casal conseguisse conciliar a parentalidade com a vida profissional. Nos últimos sete anos, outras atividades se somaram à escola: aula de canto, natação, inglês e matemática.
Para Arruda, a inserção nessas atividades proporciona um melhor desenvolvimento cognitivo, motor e social para a filha. “Além disso, ter o compromisso e rotina, ajuda ela a saber que existem regras”, diz. Ao mesmo tempo, a professora se sente pressionada pela sociedade a ter uma filha que alcance as melhores notas e tenha os melhores desempenhos. “Essa é uma grande preocupação para o futuro dela e o nosso também. É preciso entender, criar os limites e saber até onde ela está conseguindo ir”, ressalta.
O sentimento de Arruda é vivido por outros pais, reflexo de um fenômeno contemporâneo que correlaciona às ideias de produtividade ao sucesso. Na visão do psicólogo, escritor e colunista do Lunetas Alexandre Coimbra, essa cultura nos impede de parar e é muitas vezes baseada em conquistas inatingíveis, ligadas à insaciabilidade, o que faz com que busquemos a todo tempo a próxima meta.
“A gente está o tempo todo se cobrando por desempenho, mas essa métrica é ligada à aceleração. O problema é que, assim, a gente não tem mais pausa temporária – não conseguir ficar sem olhar o celular – ou definitiva – não precisar estar buscando o tempo todo um cargo maior”, diz Coimbra.
Essa lógica tem atingido adultos e cada vez mais a infância, batendo de frente com um dos grandes pontos fortes dessa fase da vida: desenvolver a subjetividade e a criatividade, por meio da liberdade e do tempo livre.
“A subjetividade humana é marcada pelo desejo de ser único, eu preciso descobrir quem sou, do que gosto, o que quero fazer da vida. Uma infância bem vivida deveria ser um espaço de exploração de descobertas e de abertura para a criatividade”, acrescenta Coimbra.
A lógica da produtividade e das agendas lotadas ignora, na visão dos especialistas entrevistados pelo Lunetas, a essência infantil. “A infância e a adolescência não são só estágios para a vida adulta, são momentos fundamentais. A infância vai solidificar, no positivo e no negativo, a vida adulta”, lembra o professor, gestor escolar e fundador da GOON Design e Educação, Pedro Simas.
Sem tempo livre, há mais dificuldade de desenvolver a subjetividade e, ainda, mais chances de comprometer a saúde mental da criança. Quando os pequenos passam a ter uma rotina produtivista, podem chegar à exaustão e à cobrança desmedida sobre si mesmos, sobretudo porque tudo o que não funciona sob essa ótica da excelência costuma ser mal visto. É como se a pessoa não tivesse ambição, fosse preguiçosa, não tivesse foco.
Dentro de casa, por exemplo, Arruda já se preocupa com o excesso de zelo da filha pelo cumprimento da agenda. “Muitas vezes, ela é extremamente preocupada com as atividades. Ou chega em casa dizendo e comparando a nota dos outros coleguinhas”, lembra.
Para Coimbra, quando isso acontece, significa que a criança está internalizando a cultura da produtividade. “A criança entende, muitas vezes, que a realização das atividades está ligada ao amor recebido dos adultos, e isso é muito caro para ela. Pode deixar de escutar as necessidades dela para viver em busca do reconhecimento”, diz.
Na prática, há ainda outra questão levantada pelos especialistas. Colocar a criança em várias aulas complementares pode fazê-la desenvolver habilidades técnicas, mas não necessariamente socioemocionais. “No esporte, por exemplo, a preocupação não deveria ser só ganhar ou perder. Uma criança que só ganha vai perder o interesse na atividade. Na aula de teatro, a preocupação não deveria ser a performance, mas todo o aprendizado sobre arte envolvido”, acrescenta a neuropsicóloga Deborah Moss.
Os sinais de alerta de uma agenda lotada
Ter uma filha capaz de saber um novo idioma, em específico, era um desejo de Arruda, para que ela adquira as competências necessárias para encontrar bons empregos no futuro. Para Moss, esse pensamento e a cultura da produtividade estão associados a uma mudança no perfil da sociedade. “Deixamos de ter aquelas famílias em que o trabalho do pai passava de geração em geração. O custo de vida ficou mais alto, e as famílias desejam que as crianças tenham empregos capazes de bancar essa vida no futuro”, diz.
O problema é que essa busca pode desencadear outras questões, como o cansaço e a frustração. Foi justamente num momento em que a filha estava em uma rotina de ensino bilíngue, por exemplo, que Arruda começou a repensar a quantidade de tarefas no dia a dia de Mariana. “Ela fazia aula de inglês todo dia à tarde e ainda tinha aula de balé. A rotina ficou muito cansativa para ela e para mim. Comecei a ficar um pouco mais ansiosa”, lembra.
O cansaço e a ansiedade podem ser sintomas da exaustão provocada por uma agenda lotada. E nem sempre a criança vai expressar dizendo estar cansada, às vezes ela vai apenas não querer cumprir as atividades, como aconteceu na casa de Arruda, quando a menina se recusou a participar de aulas de matemática.
“A criança tem uma potência de alma muito voltada ao que precisa de fato. Apresentar sintomas de recusa ao funcionamento produtivista é comum. Mas ela só fará uma recusa direta quando tem a garantia do afeto do adulto”, explica Coimbra. Se o ambiente e a relação com os responsáveis é autoritária, a tendência é a criança não contestar, desencadeando frustrações. Isso pode gerar problemas de convívio social com outras crianças e dificuldades de aprendizagem.
Além disso, há chances de criar uma geração inapta a lidar com o ócio, o tédio
O papel da família e da escola
Rankings de melhores alunos, outdoors com primeiros colocados no vestibular, fotografias dos mais bem sucedidos em provas semanais. Premiar a excelência em rankings e provas é, para Simas, um elemento da cultura da produtividade dentro das escolas, que mostra a aprendizagem como uma forma de estímulo à competitividade e ao resultado. Apesar de serem mais comuns nos ensinos fundamental e médio, eles podem perpassar o ensino infantil, deturpando a lógica e os objetivos dele. Por isso, é preciso que a escola também se engaje em repensar esse formato.
“O ensino infantil é o momento de propor experiências, pautadas no relacionamento com a comunidade, na ludicidade, na tentativa e erro. Por isso, oferecer múltiplas experiências, por si só, não é um problema. Mas, a gente ainda tem um ensino pautado na hiperprodutividade, de ensino mecânico, de repetição de processos”, diz o professor. É disso que vem a ideia de estudar mais matérias, acertar mais questões, saber reproduzir mais informações.
Simas, porém, lembra que as pessoas não aprendem de maneira igual e que o excesso de qualificação não necessariamente significa mais conhecimento adquirido. “O ambiente escolar é o espelho da sociedade. Se vivemos uma cultura da produtividade, a escola também absorve isso”, lamenta. Para os especialistas ouvidos pelo Lunetas, escola e família devem operar juntos para romper essa lógica, evitando que as crianças entrem em estágio de autocobrança por resultados.
Para isso, é preciso criar espaços livres na rotina dos pequenos, estimulando as descobertas e a liberdade de escolha. Assim, eles vão criar e testar as próprias hipóteses sobre o mundo que os cerca. Ao mesmo tempo, ensiná-los a enxergar o outro, entender outras culturas, resolver conflitos e, a partir disso, pensar em soluções e escolhas saudáveis e sustentáveis para o futuro.
Se houver dúvidas, o recomendado é buscar outros pais e grupos de apoio que estejam desconstruindo essa forma de pensar o futuro das crianças, para compartilhar as experiências. Também é preciso mostrar para a criança que ela não precisa ser perfeita, que o erro ou a negação de uma atividade não diminuirá o sentimento dos responsáveis por ela. “O resultado não é sinônimo de sucesso e nem o sucesso é sinônimo de felicidade. Quantas pessoas chegam no topo e estão frustradas? É importante ajudar as crianças a cuidar do emocional e a desfrutar da caminhada. Saber lidar e driblar os desafios da vida”, afirma Moss.
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