Quando é que uma família começa? Para aquelas que nasceram pela via da adoção, geralmente existe um ponto em comum: um telefonema para marcar o dia do primeiro encontro. “Eu recebi a ligação numa sexta-feira, mesmo dia em que eu me divorciei, aos 40 anos. Na segunda de manhã, fizemos uma chamada de vídeo e, à tarde, eu já levei ele para casa. Era mãe de um menino. Desde então, não desgrudamos mais”, conta Romina Duque Porto, mãe de João Gustavo, 9.
Numa sala com armários cinza de ferro, comuns em departamentos pessoais, João Gustavo, então com sete anos, entra tímido, agarrado à assistente social. Ao ver a futura mãe, sorri e corre em sua direção. “Meu amor, como você é lindo. A mamãe já te ama. Nós vamos ser muito felizes juntos, viu?”, promete ao filho, que acabou de conhecer, entre abraços e olhares. O vídeo desse momento especial viralizou nas redes sociais.
Contudo, mãe e filho, nessa recém-configuração de família, tiveram que ficar confinados em casa. Era o comecinho da pandemia de covid-19, em 2020. A dupla sentiu falta de poder sair para fortalecer o vínculo tão importante nos primeiros meses de adoção, mas para João Gustavo parecer ter sido o momento exato.
O menino apresentava sinais de desnutrição, dificuldades na fala e estava no limite de tempo para adoção, de acordo com o perfil escolhido por Porto. Por isso, a decisão da justiça foi pular o período de convivência, com visitas à criança no abrigo e idas para a casa dos futuros pais antes de se tornar definitivo. O processo durou um ano, desde a entrega dos documentos até a adoção.
A advogada conta que havia planejado engravidar de gêmeas em algumas tentativas de fertilização, quando era casada. “Mas me tornei mãe solo de um menino que chegou só com a roupa do corpo, na pandemia. Ou seja, a vida não está nem aí para planejamentos”, avalia a advogada. “O meu projeto não era esse, mas, a partir do momento que a adoção entrou no meu coração, mergulhei nela de cabeça e não tinha quem me parasse”.
Hoje, ela compartilha a experiência nas redes sociais e em cursos e palestras para inspirar outras mulheres que querem viver uma maternidade solo através da adoção. Conhecida como “Mainha”, termo carinhoso como Gustavo a chama na hora do chamego, Porto faz questão de lembrar que a maternidade não é “comercial de margarina” e aconselha a não depositar tantas expectativas na criança que vem, principalmente na adoção tardia, quando é preciso considerar as experiências prévias da menina ou do menino.
Destino que corre para o mar feito rio
É assim que Milton Nascimento narra a sua história em “O amor da adoção”, canção que gravou em parceria com o Mundo Bita. Bituca, como foi apelidado pela mãe adotiva ainda na infância, perdeu a mãe biológica com tuberculose antes dos dois anos e nunca conheceu o pai. Lília Silva Campo, na época com 22 anos, decidiu criá-lo como filho após o cantor ser entregue na pensão onde a mãe, Maria, trabalhava como empregada doméstica, no Rio de Janeiro.
Os dois pais de Francisco
A música também foi a forma que Andréia da Silva, mãe de Alan Vieira, encontrou para expressar seu apoio e amor pelo neto Francisco, filho de dois pais. “Dorme neném, que a cuca vem pegar, papai foi pra roça, papai foi trabalhar”, nina o menino, que chegou à família com um mês de vida. Depois de quatro anos e um mês aguardando esse momento, “veio um telefonema, numa terça-feira, às cinco da tarde”, conta o companheiro de Vieira, Patrick Campello.
“Estávamos muito certos do que queríamos. Só pensamos em tirar ele dali e trazer logo para casa”. Na sequência, o casal saiu “para comprar tudo o que ainda precisava, porque no dia seguinte iríamos buscá-lo”. O conselho dos pais de primeira viagem para quem quer adotar? “Confia, foca no final, e não no processo da espera. A espera não tem peso nenhum depois que seu filho chega”.
A adoção por casais do mesmo sexo foi permitida pelo Supremo Tribunal Federal somente em 2015 e ainda representa pouco em relação ao total de pretendentes. Em 2022, foram apenas 131 casais de dois homens e 91 casais de duas mulheres no universo de 3.800 adoções, como mostra os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Já com a guarda definitiva de Francisco, os pais se preocupam em garantir que ele se torne “uma pessoa do bem e com caráter”, sobretudo porque se preocupam com o preconceito. “Meu filho é uma criança negra, que tem dois pais. Acho que ele vai sofrer preconceito mais de uma vez. A nossa preocupação é que seja uma pessoa segura de si para lidar melhor com esse tipo de coisa”, defende Campello.
Nas ruas, eles recebem olhares que interpretam como “curiosidade” das pessoas. Já na internet, onde compartilham a experiência da paternidade no perfil “2 pais de Francisco”, os comentários nem sempre são acolhedores. A opção foi tratar o assunto com leveza e humor, características do casal. Agora, eles aguardam mais um capítulo dessa história com a possível chegada de um irmão ou uma irmã para Francisco, também pela via da adoção.
Depois que você chegou, o amor não tem excesso
“Eu era uma bebê gorda e estava com meus pais em volta de mim, me alimentando, eu acho, não lembro muito”, descreve Isabel, 10, sobre o dia em que encontrou pela primeira vez a família adotiva. A descrição não vem da memória, já que ela tinha só 10 meses, mas de uma foto que a mãe, Mariana Leite, lhe mostrou algumas vezes.
Leite quis ser mãe desde que se casou com o marido Jean, em 2004. Como teve dificuldades para engravidar pela via biológica, optou pela adoção. Com a espera de três anos na fila, o casal se desconectou da possibilidade de ser chamado, então, quando o telefone tocou, “foi um susto, como receber a notícia de uma gravidez”, descreve. “Estávamos esperando, só não sabíamos que seria naquele momento. E, de repente, a assistente social dizia: tem uma menininha, ela é bebê e se chama Isabel. Vocês querem conhecê-la?”. Em alguns dias, “Bebel se tornou a nossa filha”.
Apesar de poder levar a filha para casa no mesmo dia, o casal optou por esperar, para que ela estranhasse menos a nova família, sempre considerando que “a vida da Isabel começou antes da gente. Foram 10 meses que a gente não estava na história dela…”, pontua. Assim, passaram a visitá-la por uma semana no abrigo. “Nos primeiros meses, eu tinha muito medo de errar, mas depois eu entendi que era uma mãe como as outras”, relata.
É no dia a dia que as relações vão se construindo e, apesar de Leite não entender nada sobre anime e ciências, paixões de Isabel, a família faz muitos passeios a museus. O que elas têm em comum é cuidar dos cabelos juntas, depois de Leite ter visto “muitos vídeos para aprender como cuidar do cabelo afro, que é diferente do meu”.
As escolhas da família em tratar o tema com naturalidade e acolhimento fizeram com que Isabel entendesse a sua história como algo normal. “Adoção é um processo que forma a família, né?”, define. “É o encontro de pessoas que precisavam umas das outras”.
“Inclusive, eu adotei a minha cachorrinha Amora. Foi um dos melhores dias da minha vida. Quando a moça abriu a porta e saíram seis cachorrinhos numa fila, deitei no chão e comecei a brincar com todos, mas eu já sabia que queria uma pretinha, com pelos que brilhassem”, lembra Isabel.
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De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, existem hoje, no Brasil, 31.883 crianças em acolhimento. Dessas, 4.392 estão aptas para a adoção. A maioria é de crianças negras ou pardas, com mais de cinco anos, perfil que está fora dos mais procurados pela maior parte das famílias pretendentes.