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Sabor da floresta: o açaí na vida das crianças da Amazônia

Close das mãos de um bebê, lambuzadas de açaí que está numa tigela

Açaí no café da manhã, no almoço, no lanche e no jantar. O fruto faz parte da dieta do paraense, desde “zitinho” (criança pequena), como dizem por aqui. Mas, com um detalhe: nada de doces, leite em pó ou granola. O costume é outro nessa região, e foi herdado pela população nativa, que vive da floresta. Em uma tigela, a polpa é tomada fresca e pura, também combinada com farinha d’água ou farinha de tapioca, peixe, camarão e charque.

Helena, 5, mora em Belém (PA) e não deixa de tomar seu açaí sempre que pode. Engana-se quem pensa que ela prefere o doce. “Não. Eu gosto mais do açaí normal. Tem que ser natural, grosso ou médio, e misturado com tapioca. Um dia, o meu avô colocou açúcar e ‘azedou’ o açaí. Não tomei!”, conta a menina.  

Arquivo pessoal

Helena, 5, é apaixonada por açaí desde bebê

A tradição do açaí faz parte da vida e da história dos povos amazônicos, em especial do Pará, estado que tem a maior produção do fruto. O alimento entra no cardápio do paraense desde quando ele é bebê. Algumas famílias até registram o primeiro contato dos seus pequenos com o açaí, como um ritual. É o caso da Helena. Com oito meses, ela foi fotografada por seu pai, Davi Souza, se lambuzando de açaí puro na tigela. “Decidimos fazer o ensaio do primeiro açaí da Helena. Eu já trabalhava com fotografia e cenografia. Criei um cenário em miniatura para parecer uma casa de açaí. A gente postou nas redes sociais e quatro dias depois tinha mais de 4 mil compartilhamentos. Na época, isso foi bem expressivo e começaram a pipocar mensagens de gente pedindo para fazer o ensaio com seus filhos”, lembra Davi.

Arquivo pessoal

Helena, aos oito meses, se lambuzando com açaí, em ensaio fotográfico feito pelo seu pai, Davi Souza

Arquivo pessoal

As fotos fizeram sucesso nas redes sociais e, assim, surgiu o projeto “Meu primeiro açaí”. “O registro é uma forma da criança nunca se esquecer de onde ela veio”, diz Davi Souza

O ensaio de Helena fez sucesso e virou o projeto “Meu primeiro açaí”, que ganhou até exposição em estabelecimentos locais, com cenas de várias crianças fazendo bagunça e se deliciando com o açaí. “Foi um momento tão bom para a nossa família que a gente quis proporcionar essa experiência para outras. Vemos hoje a cultura muito importada e acabamos esquecendo a nossa identidade. O registro é uma forma da criança nunca se esquecer de onde ela veio”, diz Davi.  

Açaí: alimento cultural da Amazônia

A antropóloga Lanna Lima, do Grupo de Pesquisa Antropologia das Paisagens, Memórias e Imaginários na Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA), diz que a relação dos paraenses com o açaí atravessa a história dessa terra. “Antes da invasão portuguesa, os povos indígenas já haviam domesticado o fruto, e a bebida era elemento da tradição alimentar na região. Este consumo está intimamente ligado à cultura constituída em intensa relação com a natureza. O açaí é parte importante do que configura o ‘ser paraense’. Seu consumo está relacionado a um território entendido para além de um espaço geográfico, constituído como um lugar de habitação, afeto, relações sociais entre humanos, não-humanos, experiência histórica, simbólica e também política, explica Lanna.

O açaí é mais do que uma refeição, carrega uma história e sustenta famílias. Por isso, explicar às crianças a origem do que elas estão consumindo é uma maneira de fazê-las interagir com a própria ancestralidade. 

“A valorização da alimentação raiz, ligada aos povos e culturas tradicionais e comprometida com a sustentabilidade ambiental é de suma importância para as crianças da nossa região”, afirma a antropóloga.

 “Além do hábito de comer açaí, é fundamental que as crianças saibam de onde vem o alimento em sua mesa e o papel daquele que o produz. Isso envolve conhecimento ancestral, não só do manejo do açaí, mas da floresta, dos rios, dos animais que compõem o seu ecossistema. Por outro lado, tal valorização é importante para aquelas crianças de famílias produtoras e extrativistas, que têm seu modo de vida respeitado”, pontua a pesquisadora.

Vivendo há 80 anos do cultivo e extração do açaí, a família de Beatriz, 8, natural da ilha do Combu, parte de Belém que fica do outro lado do rio Guamá, tem no fruto a história de vida de quatro gerações. Além do extrativismo local, a família da menina administra um restaurante local, onde o açaí que vem do quintal de casa torna-se acompanhamento principal dos pratos. 

Arquivo pessoal

Beatriz, 8, no seu quintal cheio de açaizeiros

Além disso, os clientes podem ter uma visita guiada pela mata para conhecer os açaizeiros, a extração e a debulha do açaí. Tudo conduzido pelo irmão mais velho de Bia, Boaventura Júnior, o Boá. É ele quem anda pela mata, prepara a peconha (laço da palha da palmeira usado para segurar os pés dos trepadores ao caule da árvore para subir com mais força) e sobe no açaizeiro para pegar os cachos. Para os visitantes essa é uma experiência que proporciona uma verdadeira aula sobre a origem do fruto.

“Fazemos isso porque é um jeito de levar informações sobre a forma que vivemos. Muitas pessoas não sabem como é que se toma o açaí de verdade, do lugar de onde ele vem. Então, quando chegam aqui, a gente explica mostrando o lugar que planta e chamando para sentar à mesa e comer junto. É muito diferente do que só ver pelas fotos”, conta Boá.  Bia e Boá são exemplos de como é ser criado à base de açaí raiz. 

“A gente toma açaí todo o dia. Sem açúcar e com farinha, que é o certo, né?”, destaca Boá.

Ter o açaí na mesa é tão natural por aqui, que até passou a substituir o leite na família dos irmãos Gabriel, 5, e Ana Clara, 11. A menina tem intolerância à lactose e o irmão tem alergia a qualquer derivado do leite. “A partir dos seis meses, Gabriel começou a tomar o leite sem lactose, mas tinha um custo muito alto. Passamos então a introduzir o açaí como alimentação cotidiana”, explica a mãe, Adalcy Gonçalves. “Começou apenas pela manhã, quando ele tomava o açaí com farinha bem fina, como um caribé [bebida quente feita com água, farinha de mandioca peneirada e sal]. Quando ele já almoçava e jantava, passou a tomar açaí como a gente toma aqui em casa: com carboidrato, proteína e salada. Ana Clara foi tomando leite aos poucos, mas gosta mesmo do mingau de açaí”, conta.

A família mora em Igarapé-Miri (PA), cidade localizada na região do baixo Tocantins, conhecida como a Capital Mundial do Açaí. É de lá que vêm 30% de toda a produção nacional do fruto. “Em casa, tem açaí todos os dias. É um nutriente que faz parte da nossa história, cultura e na construção de uma sociedade que sobrevive dele. Está no dia a dia da nossa cidade. Em cada esquina tem um batedor de açaí”, ressalta Adalcy.

Pará é o maior produtor mundial

O estado do Pará é o responsável por quase 95% da produção de açaí em todo o país. Por ano, são mais de 1,4 milhões de toneladas do fruto. As condições climáticas da Amazônia favorecem a produção, pois o açaí se desenvolve em áreas de várzea ou terra firme. Cada palmeira chega a 20 metros de altura, e produz de 15 a 20 quilos de fruto por colheita. Já a touceira, que tem mais de um caule, chega a 120 quilos de açaí por safra. Além disso, o açaizeiro também dá palmito e suas folhas podem ser aproveitadas para artesanato ou para cobrir casas.    

Fonte: IBGE – Produção Agrícola Municipal, 2020

Ana Clara e Gabriel já estão acostumados a ter o açaí como base na alimentação diária. A mãe prepara as refeições com a polpa fresca. O mingau é feito com o açaí cozido junto à farinha d’água fina e um pouco de sal. Se não tiver farinha, ela coloca arroz ou crueira (raspas do preparo da farinha de mandioca que sobram na peneira). Já no acompanhamento do almoço, o açaí é natural, sem adição de açúcar. Misturado apenas com farinha, formando uma papa para ser comido junto com peixe ou carne. “Aqui é açaí de manhã, de tarde e de noite. As crianças tomam o mingau no café da manhã, comem frutas variadas nos lanches e, no almoço, eles gostam de peixe com açaí e farinha”, conta Adalcy.

Arquivo pessoal

Os irmãos Gabriel, 5, e Ana Clara, 11, têm alergias e intolerância à lactose. O açaí foi uma forma nutritiva para substituir o leite e, hoje, faz parte de todas as refeições das crianças

Para quem ainda tem dúvida se o açaí é bom para as crianças, a nutricionista paraense Silvinha Dias, especialista em pediatria, explica que o alimento sem açúcares e conservantes proporcionam vários benefícios à saúde. Para as crianças, o açaí fortalece o sistema imunológico, previne infecções, fornece energia, auxilia no sistema cognitivo e no desenvolvimento“, diz Silvinha. A nutricionista ressalta que é preciso consumir açaí de boa procedência, adquirindo o produto em locais que seguem todos os cuidados de higiene e manipulação. Assim, os bebês que já iniciaram o processo de introdução alimentar podem experimentar a iguaria sem medo, mas com algumas restrições em relação à quantidade. “O açaí pode ser oferecido a partir de seis meses para o bebê, como opção de fruta nos lanches. Uma porção para crianças dessa idade é de meia a uma xícara”, diz a nutricionista. 

Com tapioca, com farinha d’água, no mingau salgado ou na forma de sorvete, como se popularizou no resto do país, o açaí vai além de uma refeição. É o alimento que tem alma e história próprias. Ele carrega a cultura de povos originários da Amazônia e se estende na alimentação de novas gerações, que defendem o consumo sem grandes intervenções. O fruto, como diz a lenda, é um presente da floresta. As crianças daqui aprendem a valorizá-lo todos os dias.  

A lenda do açaí

Existia na Amazônia uma aldeia indígena que crescia rapidamente, mas os alimentos não eram suficientes. Para evitar a fome, o cacique Itaki decidiu sacrificar os recém-nascidos. Sua filha, Iaçã, deu à luz uma menina, que não foi salva. Triste e desolada, Iaçã passava dias e noites pedindo ao deus Tupã uma maneira de ajudar seu povo. 

Em uma noite de lua cheia, Iaçã ouviu o choro de sua filha e saiu correndo pela floresta. Ela encontrou a menina debaixo de uma palmeira. Ao abraçá-la, a criança desapareceu e Iaçã se pôs a chorar. No dia seguinte, o cacique encontrou o corpo da filha abraçado à árvore.

Ela estava sorridente e com os olhos voltados para o alto, onde havia cachos de um fruto roxo. Itaki mandou colher os frutos e descobriu que geravam um suco consistente, que podia alimentar seu povo. Ele, então, acabou com a ordem de sacrificar as crianças e deu o nome do fruto de Açaí, que significa Iaçã ao contrário.     

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