Há quem diga que é mais difícil criar filhos hoje do que antigamente. Com tantas crises globais e tragédias diante dos mal falados “dias de hoje”, a parentalidade também parece crescer em sua complexidade. Mas se hoje o mundo está repleto de incertezas, a verdade é que nunca houve momentos fáceis para a humanidade, recorda a psicóloga e psicanalista Vera Iaconelli.
“É ilusão achar que em algum momento foi só colocar o filho no mundo e deixar rolar”, diz. Apesar disso, ela concorda que nem sempre as transições foram tão traumáticas e intensas como as da era digital, trazendo facilidades e frustrações com as quais as famílias terão que aprender a lidar.
Diante disso, a psicóloga propõe uma reflexão em seu livro “Criar filhos no século XXI” (Contexto): “o que é necessário para educar uma criança, independentemente da época na qual ela nasceu?”
As páginas trazem mais perguntas do que respostas, que se traduzem como inquietações sobre o papel dos adultos em relação aos filhos. “Mais do que pensar a criança, tem sido uma constante no meu trabalho pensar o lugar dos pais, pois entendo que quando o avião despressuriza é mais inteligente que os adultos coloquem as máscaras em si mesmo antes de colocar nos pequenos”, escreve Vera Iaconelli.
Desafios atuais da parentalidade
Para ela, a infância é um momento especial de proteção e riqueza de experiências, em que a criança pode descobrir o mundo com a certeza de que alguém estará olhando por ela. Este alguém, no entanto, não pode ser apenas as mães. “Precisamos pensar em formas coletivas de criar as crianças“, reforça, recordando que toda a sociedade também é responsável por este cuidado.
Em entrevista ao Lunetas, Vera Iaconelli fala sobre desafios da parentalidade na era digital e o limite do cansaço ao qual chegaram as mulheres com acúmulos de jornada, apesar do avanço das discussões de gênero. “Mulheres são chefes de família, trabalham o dia inteiro e ainda se cobra delas a incumbência de ser a única responsável pelo cuidado com os filhos”, diz.
Leia a entrevista com Vera Iaconelli
Lunetas – Na introdução do seu novo livro, você afirma que vivemos “tempos de incertezas”. Que incertezas são essas?
Vera Iaconelli –Vivemos tempos de incerteza, porque vivemos uma revolução tecnológica. A partir de 1995, chegam os nascidos na era digital e ninguém sabe responder de pronto quais são todos os efeitos possíveis desta transição. Portanto, há um mundo de possibilidades tanto boas quanto ruins, com as quais teremos que lidar. É uma novidade, não foi sempre que passamos por transições tão traumáticas e intensas como essa da era digital. Ela pode ser comparável à Revolução Industrial, por exemplo.
O elemento “virtual”, com o crescimento de dispositivos tecnológicos à disposição das famílias, tem trazido mais facilidades ou mais frustrações na dinâmica da criação dos filhos?
VI – O virtual é um elemento em potencial, abre possibilidades magníficas e desafios gigantes, traz facilidades e frustrações. Não é um “em si mesmo”, mas uma ferramenta com a qual nós temos que aprender a lidar rapidamente para poder ensinar aos filhos a lidar também. E para uma geração que não faz parte dos nascidos digitais, é preciso correr atrás de linguagens que já são fluentes para os filhos. Então, é desafiador, pois implica que pais se organizem para estarem mais atentos do que nunca. Não é boa nem ruim, é trabalhosa e possui grande potencial de transformação.
Como isso impacta nas diferentes classes sociais?
VI – Os pais das classes mais desfavorecidas da sociedade, que possuem menos acesso ainda à questão da virtualidade, tendem a ser mais restritivos e usar menos essa ferramenta na educação dos filhos, ficando, muitas vezes à mercê, paralisados diante do novo. Então, há efeitos diferentes dependendo das classes sociais.
Como a desigualdade social afeta a carga mental das mães e a possibilidade de ter ou fazer escolhas por parte dos casais após a chegada de filhos?
VI –Vivemos um momento muito dramático do cuidado com os filhos: chegamos ao limite da ideia de que os filhos são responsabilidade das mulheres, das mães. No limite, pois hoje mulheres trabalham e são chefes de família, principalmente nas famílias de classe menos favorecidas. Ou seja, são chefes de família, trabalham o dia inteiro e ainda se cobra delas a incumbência de ser a única responsável pelo cuidado com os filhos. Então, mesmo que a lei penalize o homem ou faça com que pague pensão na separação, a carga mental e a responsabilidade ainda é total da mulher em relação ao que passa ou deixa de se passar com a criança.
“Estamos chegando a um extremo de adoecimento social em função dessa má interpretação sobre quem seria o responsável pelos filhos”
Hoje não há mais a desculpa de “homem provedor” – se é que ele já foi em algum momento. As mulheres são provedoras e responsáveis pelos filhos a partir de uma ideia de que elas são o melhor para a criança. E essa ideia é totalmente questionável. Pais e mães que puseram a criança no mundo são responsáveis, mas a sociedade como um todo também é.
“Crianças precisam de cuidados e isso independe de gênero”
Criar filhos hoje é mais difícil do que antigamente?
VI – Criar filhos sempre foi difícil. Não existe período histórico, em que a tarefa de criar filhos não se mostrasse um desafio do sujeito em relação à posteridade, ao próprio envelhecimento, em relação ao que se quer transmitir e ao que não se quer transmitir e transmite, a educação, ao cuidado, a escolhas, a separação. Botar uma pessoa no mundo nunca é um passeio, mas cada época enfrenta desafios próprios para lidar com isso. Criar uma pessoa é colocar ela em um mundo que não conhecemos, pois é um mundo do futuro. Então, que ferramentas se pode dar para essa pessoa sobreviva nesse mundo? Vivemos hoje uma espécie de revolução, que é a era digital e isso deixou tudo mais complexo. Mas nunca foi fácil, sempre houve preocupação, desafios, medos e responsabilidades. Só que agora temos os próprios desafios da nossa época, nossos filhos terão os deles.
O que é ser criança para você?
VI – Ser criança pra mim é poder explorar o mundo confiando que existe alguém que olha por mim. Isso é uma coisa que se modifica na vida adulta, quando se passa a olhar por alguém. Ser criança seria essa experiência ideal, na qual se pode ir conhecendo o mundo paulatinamente, sobre a tutela de uma adulto, que está ali, com amor, respeito e dedicação, mas também pronto para ver crescer e assumir as rédeas. Ser criança seria esse momento especial de proteção e riqueza de experiências.