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Val Munduruku: ‘Jovens precisam de alternativas para o futuro’

Uma mulher indígena, com pintura no rosto, usando um colar e uma coroa de penas coloridas. Ao redor, uma moldura ilustrada com fundo verde e folhas

Certo tempo, quando a escassez tomou conta da floresta e os homens não conseguiram pescar, as mulheres da aldeia se transformaram em peixes para alimentar suas famílias. A história do povo Munduruku, habitante do alto rio Tapajós, em Jacareacanga, Pará, marca a infância de Valdineia Sauré, mais conhecida como Val Munduruku.“ Esse é um aprendizado sobre o que significa viver em comunidade. O individual não faz sentido se não houver respeito e colaboração de todos”, diz a líder indígena e ativista ambiental. 

Val é gestora pública pela Universidade Federal do Oeste do Pará e a primeira da família com formação superior. Em 2019, participou da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP25, em Madrid, denunciando a transformação da Amazônia em rios de lama, contaminados por mercúrio, devido à atividade do garimpo ilegal de ouro, e a ameaças sofridas por lideranças indígenas e ambientais na sua região. Para os povos, cujas histórias se confundem com a geografia das águas e o caminho de plantas e animais, a morte do rio significa a morte de suas culturas.  

Atualmente, Val Munduruku integra a Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós e a organização Engajamundo, onde realiza formação de jovens ativistas. Para ela, é essencial que as novas gerações entendam como as decisões políticas podem afetar a Amazônia, a crise climática e suas vidas.

Munduruku insiste que é preciso enxergar além da beleza da floresta, questionando o desmatamento e os grandes empreendimentos que têm afetado diretamente a segurança e a vida das populações amazônicas. “Nos crescentes conflitos nos territórios indígenas, os mais vulneráveis são as crianças, que se transformam em vítimas de violência”, lamenta. Com o seu trabalho como ativista, Val reúne forças para manter a floresta em pé, os jovens conscientes e para que a voz do povo Munduruku seja ouvida mundialmente: 

“A Amazônia é nossa casa”

Confira a entrevista completa!

Lunetas – Como foi a sua infância e o que mudou de lá para cá?
Val Munduruku – Apesar de ser indígena, não nasci nas aldeias, mas no município de Jacareacanga, no Pará. Mesmo assim, nunca deixei de ter relação com meu povo e de acompanhar as mudanças que aconteceram em suas terras. Hoje, a principal ameaça na região do alto rio Tapajós é o impacto do garimpo ilegal na vida das famílias. A atividade deixou de ser artesanal e acabou crescendo de forma desordenada, afetando a segurança de todos. Faço parte de uma infância em que crianças cresciam e brincavam livres nas ruas, sem que os pais se preocupassem se filhos seriam mortos ou atropelados. Hoje, a vida das crianças é vigiada a maior parte do tempo. 

O garimpo ilegal é o principal problema da região?
VM – Sim e tornou a violência crescente, além da circulação de drogas e da prostiuição. Apesar de sentir saudades, já não me sinto confortável na minha própria cidade. Hoje, estou morando em Alter do Chão, em Santarém. Minha região sempre foi de garimpo, mas hoje existem grandes maquinários responsáveis pela devastação. Quem são os donos de tudo isso e como não pensam sobre os impactos dessa atividade?

Como foi na infância e como é hoje a sua relação com o rio Tapajós?
VM – Tenho dois momentos na memória. Um deles é quando vamos aproveitar as praias, um momento de lazer e curtição. Outro, nas comunidades, quando acordávamos cedo e tomávamos banho de rio. Me lembro de visitar a comunidade de minha tia, na infância, e ficar jogando pedrinhas no rio. Agora é tudo muito diferente, não podemos tomar água do rio e até para lavar roupa sabemos que corremos risco de ser contaminados pelo mercúrio. Por mais que os pais tenham cuidado, as crianças estão sempre expostas.  

Como as crianças são afetadas pelo garimpo?
VM – Um dos principais impactos é que crianças não podem viver livremente no território. Além da contaminação, os responsáveis pelo garimpo e os contrários à atividade entram em conflito e as crianças acabam se tornando alvo fácil. Uma das coisas mais comuns na infância e na vivência das nossas comunidades é tomar banho e brincar nos igarapés, mas muitos ficam afastados das casas, se tornando perigoso para as crianças. A maioria dos trabalhadores do garimpo são homens que vivem em situações adversas, acabam bebendo demais e se tornando um problema no território. Muitas vezes nem ficamos sabendo dos abusos que ocorrem com as crianças, elas são as mais vulneráveis. 

 

Como ativista, quais caminhos você vê para enfrentar esse cenário?
VM – Acredito que essa mudança está nas gestões públicas, na política, na forma como se olha para os territórios. Se o município incentiva outras atividades além do garimpo, as pessoas terão outras perspectivas, desenvolverão outras práticas, como a de hortas e demais cultivos. Vemos os jovens que não querem mais estudar e partem muito cedo para o garimpo. É preciso abrir portas para que tenham incentivos e outras alternativas de futuro. Existem muitos projetos de economia sustentável que são possíveis para não agredir nossos modos de vida e isso está relacionado ao bem viver. 

O que os mais velhos do povo Munduruku podem nos ensinar sobre a relação com a natureza?
VM – Meu povo é conhecido por ser organizado territorialmente, e referência para outras culturas. Ouvir as lideranças mais antigas e ser também um ponto focal para eles possibilita muitas trocas. Aprendi como o território é importante para cultura do nosso povo, a respeitar a cultura dos pajés e dos que já se foram. Aprendi a respeitar os bichos, os igarapés e as águas. Uma admiração que tenho da cultura do meu povo é o respeito pelos animais. Nos importamos com macacos e jacarés, porque na nossa história eles representam espíritos sagrados.

“A terra não é um lugar apenas de exploração. Tudo está interligado e é isso que aprendemos com a sabedoria dos mais velhos”

Alguma das histórias do povo Munduruku marcou a sua infância ?
VM – Uma das pinturas das mulheres do meu povo são os peixes. Na história, elas se transformaram em peixe para alimentar sua aldeia quando os maridos não conseguiam pescar. Esse é um aprendizado sobre o que significa viver em comunidade. O individual não faz sentido se não houver respeito e colaboração de todos. Quando nos pintamos em celebrações e quando precisamos de proteção, nos tornamos fortes e conhecemos essas histórias que nos fortalecem por dentro.  

Existe estímulo para a luta e mobilização dos jovens hoje?
VM – Nos últimos anos, temos visto um movimento crescente no envolvimento dos jovens. Isso parte do incentivo das lideranças mais antigas e também de novas pautas que surgem e que afetam os jovens. Poder contribuir com essa formação do meu povo e senti-los interessados me faz feliz. Os jovens do meu povo são muito tímidos, mas estamos quebrando isso para que as pessoas possam ouvir o que temos a dizer. 

Quais foram suas inspirações para se tornar liderança e ativista ambiental?
VM – Meu interesse pelo ativismo ambiental começou quando as lideranças do meu povo estavam envolvidas nas manifestações contra pesquisadores que não tinham autorização para entrar no nosso território e queriam a implementação da Usina Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. Me inspiro em Alessandra Munduruku e na Maria Leusa Munduruku, mulheres do meu povo. Fora da minha região, aprendo com as mulheres da minha organização que engajar e fortalecer uma mulher é fortalecer uma rede. Além de tantas outras, como Sônia Guajajara, Célia Xakriabá e, claro, minha mãe que me incentivou a estudar e a sair do município.    

O que você diria sobre a Amazônia que a maioria das pessoas não sabem?
VM – Embora as pessoas vejam que é linda – e é realmente linda – não é só isso. Ela é importante para a região e também para as pessoas que não fazem  ideia que ela existe. É fundamental para o equilíbrio das chuvas. Tudo que acontece aqui vai ter influência na vida das pessoas. Vemos pessoas de fora do país falando da Amazônia, mas aqui no Brasil estão destruindo. Temos que ter um olhar diferenciado, pois a exploração não é bem vista e não atende às nossas necessidades. Amazônia é casa, é lar, quem nos acolhe e nos dá de tudo, da alimentação ao ar. 

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