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Sindemia global: um olhar sobre o futuro da saúde das crianças

Foto de mãos negras segurando um prato vazio de cor vermelha

A crise de saúde vivida atualmente pela disseminação da covid-19 instigou o campo político, a comunidade científica e a população a olharem para os fenômenos sociais a partir de um quadro conceitual mais amplo. Buscando uma abordagem sistêmica deste momento, um artigo publicado em setembro de 2020 pela revista The Lancet – considerada uma das mais importantes publicações na área médica do mundo – defendeu que a humanidade não estaria passando por uma pandemia, mas por uma “sindemia”. O texto é assinado pelo editor-chefe da revista, Richard Horton. 

Em linhas gerais, a sindemia é uma “sinergia de pandemias”, que coexistem e interagem entre si, causando danos maiores que a mera soma das enfermidades isoladas. Isso faz com que existam pessoas mais suscetíveis a uma determinada doença, pois já sofrem com outras enfermidades, e comunidades desproporcionalmente afetadas, por serem mais pobres ou minorias étnicas.

Embora tenha ganhado espaço no léxico do novo coronavírus, o termo foi cunhado em 1990 pelo antropólogo e médico americano Merrill Singer, em seus estudos sobre HIV/aids e violências nas cidades estadunidenses. Singer defendeu que fatores sociais e ambientais facilitam as interações entre pandemias, potencializando seus efeitos negativos. 

Mas, o que isso tem a ver com a emergência climática e por que está relacionado ao prato de comida das crianças

Aumento da obesidade entre adultos e crianças

O olhar inovador ancorado no termo “sindemia” vinha sendo utilizado para análises técnicas e científicas sobre clima, desnutrição e obesidade, crises que já ameaçam a vida de grande parte da população no mundo. Em 2019, o relatório “A sindemia global da obesidade, da desnutrição e das mudanças climáticas”, lançado pela Comissão de Obesidade da The Lancet, demonstrou que a combinação entre os três fenômenos representa o principal desafio para a humanidade.

O aumento considerável nas últimas décadas no consumo de alimentos ultraprocessados passou a moldar o sistema alimentar e a influenciar os padrões alimentares populacionais, impactando negativamente a qualidade da alimentação, da saúde, da cultura e do meio ambiente”, constata o relatório.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a obesidade é um dos problemas de saúde mais graves da atualidade. A estimativa é de 2,3 bilhões de pessoas acima do peso, em 2025. Destes, 700 milhões com obesidade.

A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) aponta que, hoje, no Brasil, 20,7% das mulheres e 18,7% dos homens têm obesidade. A condição, que aumentou 67,8% nos últimos treze anos, também atinge a infância: 12,9% das crianças brasileiras entre 5 e 9 anos têm obesidade, assim como 7% dos adolescentes na faixa etária de 12 a 17 anos. 

Sistema alimentar: agente e vítima da crise climática

Brasil: “Nesta terra, em se plantando, tudo dá”. Quando Pero Vaz de Caminha revelou ao rei Dom Manuel a biodiversidade e o potencial agricultável da região certamente não contava que, 500 anos mais tarde, os biomas do país estariam ameaçados e milhões de brasileiros passariam fome, apesar de ter se tornado o terceiro maior produtor de alimentos do mundo, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

O coordenador de comunicação do Observatório do Clima e autor de “A espiral da morte – como a humanidade alterou a máquina do clima” (Companhia das Letras, 2016), Claudio Angelo, afirma que o sistema alimentar é um dos grandes agentes da crise climática, levando o país a uma zona de risco.

Um balanço feito pelo Observatório aponta que as atividades diretas e indiretas da agropecuária são as principais responsáveis pela geração de gases de efeito estufa (GEE) no Brasil. Em 2018, elas representaram 492,2 milhões de toneladas de gás carbônico, 69% das emissões totais. No mesmo ano, o setor foi a maior fonte emissora de gases de efeito estufa em 65,8% dos municípios brasileiros, um total de 3.666 municípios.

As principais fontes diretas de emissão do setor vêm do rebanho bovino (para produção de carne e leite), tratamento dos solos agrícolas – sobretudo pelo uso de fertilizantes nitrogenados -, manejos dos dejetos animais, cultivo de arroz irrigado e queima de resíduos. A Pesquisa da Pecuária Municipal, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), contabilizou 214,7 milhões de cabeças de gado, em 2019, ou seja, o rebanho bovino é maior que a população do país. 

Segundo dados do Greenpeace, desde 2010, a produção e o consumo de commodities agrícolas ligadas ao desmatamento – além do gado, estão também a soja, o óleo de palma, a borracha e o cacau – está aumentando rapidamente no Brasil. Oitenta por cento do desmatamento global é resultado direto da produção agrícola.

O “Dossiê crítico da logística da soja“, produzido pela FASE, alerta que a expansão da soja provocou estagnação da produção de alimentos, com risco de desabastecimento de produtos básicos como o arroz e o feijão.

Claudio ainda acrescenta o impacto provocado pelas atividades como desmatamento para abertura de pastagens, operação de maquinário, processamento e transporte, um roteiro também associado à trajetória da comida.

“Somando tudo, podemos dizer que um terço das emissões totais vem do sistema alimentar”

Mas, além de agente, o sistema alimentar também é uma das principais vítimas das mudanças climáticas, sofrendo com efeitos como secas, alagamentos, contaminação dos lençóis freáticos, e levando a uma intensificação da insegurança alimentar. O relatório Climate Change and Land” (“Mudanças climáticas e uso da terra”, em tradução livre), do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), com informações de 52 países, aponta para a diminuição no rendimento das colheitas e o aumento proporcional do preço dos cereais em 29% até 2050. No Brasil, culturas como feijão, soja, trigo, café e milho serão especialmente afetadas pelas mudanças climáticas até 2030. 

Além disso, o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, liderado pelos ministérios da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente, prevê uma possível perda de 11 milhões de hectares de terras agricultáveis devido às alterações climáticas nos próximos 13 anos

“O aquecimento também levará as plantas a produzirem mais açúcares do que nutrientes no processo de fotossíntese”, alerta Claudio. Temperaturas mais quentes estimulam as plantas a fabricarem maior quantidade de celulose e açúcares, e menos proteína. 

Alguns estudos apontam que CO2 em excesso tem o potencial de reduzir o teor nutricional dos vegetais, fazendo com que as plantas cresçam mais e mais depressa, mas com vitaminais, proteínas e minerais diluídas em sua biomassa. Esse é um problema alarmante, que ganhou evidência em 2019, com a publicação do livro “A Terra inabitável”, do jornalista dedicado às mudanças climáticas, David Wallace-Wells.

“No futuro, a qualidade nutricional de um alimento colhido pode ser semelhante a um processado”

Insegurança alimentar

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) traduz a segurança alimentar como a possibilidade de pessoas produzirem ou comprarem alimentos suficientes para satisfazer suas necessidades diárias, levando uma vida ativa e saudável. 

Apesar de grande produtor, as barreiras no acesso, desperdício e distribuição de alimentos intensificam o problema da desnutrição, segundo Claudio. “O sistema alimentar deixou de resolver problemas como a fome para virar um grande investimento. Ele está reduzindo a biodiversidade, o que terá um rebatimento direto no clima”, defende. 

No Brasil, mais de 10 milhões de pessoas não tiveram o que comer em algum momento entre 2017 e 2018, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Destes, 2 milhões moravam na zona rural, onde em tese há produção de alimentos, enquanto 8 milhões estavam nas cidades. Além disso, metade das crianças com menos de cincos anos (6,5 milhões) vivia em lares com algum grau de insegurança alimentar. 

Em julho de 2020, um estudo publicado na revista The Lancet estimou que a pandemia levaria à desnutrição 6,7 milhões a mais de crianças no mundo, seja por empobrecimento das famílias, dificuldade de acesso ao alimento ou problemas enfrentados pelos cuidadores.

No país, resultados do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil” mostram que 55,2% dos brasileiros tiveram algum grau de insegurança alimentar (o que inclui, por exemplo, a privação de alimentos ou pessoas que tiveram de pular refeições por falta de comida) e 19,1 milhões passaram fome (insegurança alimentar grave).

Leia também: Crianças com fome: mais um lado cruel da pandemia

Má nutrição: da desnutrição infantil à obesidade

“Estamos inseridos em sistemas alimentares pouco saudáveis, que têm o crescimento econômico como prioridade”, diz a especialista em nutrição infantil e doutora em meio ambiente e desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Claudia Choma. Ela explica que tanto a obesidade quanto a desnutrição são efeitos da “má nutrição”, que pode ter origem em problemas alimentares na infância. 

Como as crianças costumam comer aquilo que faz parte do cardápio familiar, tudo vai depender do acesso e da qualidade dos alimentos oferecidos em casa e na escola. O estudo “Impactos primários e secundários da Covid-19 em crianças e adolescentes”, realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Ibope, em 2020, constatou mudança de hábitos alimentares em 58% das famílias brasileiras que vivem com crianças. Nestas casas, o consumo de alimentos industrializados cresceu 31%.  

O consumo de alimentos ultraprocessados, considerados mais palatáveis, está diretamente relacionado à má nutrição, pois eles trazem teor elevado de gordura, açúcares e sal, ocasionando desenvolvimento precoce de doenças crônicas não transmissíveis como diabetes, cânceres, hipertensão”, afirma Claudia. 

Apesar de parecerem efeitos opostos, a nutricionista esclarece que os riscos da obesidade na vida adulta são mais elevados em caso de históricos de desnutrição fetal e infantil. Ou seja, comer menos e pior, na primeira infância, também está relacionado à obesidade. Por isso, de acordo com ela, é fundamental garantir às crianças uma alimentação rica em vitaminas e minerais desde os primeiros dias de vida. 

A OMS recomenda o aleitamento materno até os dois anos de idade, sendo exclusivo nos seis primeiros meses. “Essa prática faz parte do que entendemos por segurança alimentar, isto é, a ideia que todas as pessoas devem ter o direito ao acesso em quantidade e qualidade suficiente de comida”, explica a nutricionista.

“O leite materno é um alimento padrão ouro e vai proteger a criança contra a desnutrição e a obesidade”

Enfrentar a sindemia exige ações combinadas entre atores

O panorama apresentado pelo relatório sobre sindemia global da The Lancet sugere que apenas ações coordenadas entre atores em âmbitos local, nacional e global poderão mitigar os efeitos gerados pela combinação das crises climática, de desnutrição e de obesidade. 

“Conceituar as três pandemias como sindemia global, com fatores sistêmicos comuns e interações complexas, pode contribuir para a nova narrativa necessária para acelerar esse movimento social”, diz o texto. 

Caso contrário, o sistema agroalimentar global seguirá intensificando as mudanças climáticas, gerando eventos extremos como secas e mudanças na agricultura. Este cenário aumentará a desnutrição por meio da insegurança alimentar. Se a falta de nutrientes fundamentais para essa fase do desenvolvimento continuar atingindo a infância, como explica a nutricionista Claudia Choma, os riscos de obesidade crescem para a vida adulta.

“Ações individuais são sempre limitadas”, diz Claudio Angelo. Apesar da mudança de hábitos de consumo contribuir para a saúde do planeta e da comunidade, é a reorientação da governança que tem capacidade efetiva para mudanças. O primeiro passo? Sem dúvidas, como defende Claudio:

“As pessoas precisam aprender a votar”

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