Com a resposta para essa pergunta, a novela do SBT “As aventuras de Poliana” gerou uma enxurrada de reações de revolta e repulsa na internet. O diálogo, entre duas personagens negras, sendo uma delas criança, no qual a adulta diz para a menina que a culpa pelo preconceito está na cabeça das próprias pessoas negras.
Culpa é a responsabilidade pelo dano ou mal causado a outra pessoa.
Dizer que a culpa pelo preconceito é dos próprios negros é dizer que nós, pessoas negras que somos alvo do racismo, criamos tudo isso para que os outros, os racistas, nos tratem com discriminação. Essa ideia é tão confusa e contraditória que tenho até dificuldade em visualizar! Então nós, negros, somos os responsáveis por toda a discriminação racial que existe mesmo sabendo que essa discriminação afeta e prejudica nossas vidas?
Falar em culpa é falar em responsabilidade. Uma palavra grande para um conceito tão importante e necessário em nossas vidas. O dicionário nos diz que responsabilidade é a obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros. Então, quando uma pessoa fala que a culpa do preconceito está na própria cabeça dos negros que se enxergam de forma diferente, ela está dizendo que nós, negros, devemos responder pelas ações das pessoas racistas.
Mas a responsabilidade de quem é racista, onde fica?
A novela “As aventuras de Poliana” é escrita por roteiristas brancos para o público infantil e se propõe abordar e debater temas sociais que fazem parte da realidade das crianças, como o bullying e o racismo, por exemplo, sem a intenção de polemizar. Mas uma novela infantil alcança milhares de crianças e esses são temas muito complexos e delicados. Criar uma obra de ficção para crianças é uma responsabilidade enorme. Cada palavra dita tem um impacto na vida dessas crianças, cada cena é percebida como uma reprodução da realidade e não apenas como ficção.
Atores mirins e seus personagens se confundem na mente das crianças é realmente difícil para elas separar ficção de realidade.
Se uma coordenadora pedagógica, figura de autoridade e educadora, fala para uma criança que a culpa do preconceito é dela, discordando da percepção da própria criança de que a culpa é de quem pratica o ato racista, existe uma forte tendência que essa criança, e todas as outras que se identificam com ela e que estão assistindo a novela, se percebam como as produtoras do racismo e se culpabilizem pela discriminação que sofrem.
Com um agravante da personagem ser interpretada uma mulher negra, que faz com que o discurso abale e influencie ainda mais a autoestima e autoimagem da criança negra. Esse é um recurso muito perverso de reversão da responsabilidade e manutenção da estrutura de poder. Se o racista não tem culpa, ele é a verdadeira vítima do racismo?
Em nota ao jornal O Estado de S. Paulo, o SBT disse que a novela tem o papel de debater questões sociais como o enfrentamento ao racismo e também que é uma obra de ficção para “entreter e não polemizar”.
Quando falamos com crianças sobre preconceito há um limite muito bem definido entre fortalecer a sua autoestima e insinuar que ela tem o potencial de causar todo o mal que ela vive. A realidade nos mostra que não dá para simplesmente seguir o jogo do contente e fingir que o racismo é uma invenção da cabeça das pessoas negras com problemas de autoestima.
Racismo não é paranoia dos negros, é uma realidade.
E é preciso muito cuidado para não transferir para as vítimas a culpa pelos atos de seus algozes. Este cuidado deve ser observado por todos, pais, educadores e até mesmo roteiristas e escritores de novelas que dialogam com uma diversidade de telespectadores.
Quanto à pergunta do título e da novela, como mãe, mulher negra e educadora, creio a menina Kessya está certa: os maiores culpados pelo preconceito são os racistas.
No capítulo desta quarta-feira, 8, a aluna Kessia, interpretada pela atriz Duda Pimenta, argumenta com a coordenadora Helô, interpretada pela atriz Eliana de Souza que ela não seria acusada de vandalismo se não fosse negra. “Sabe qual é um dos maiores culpados pelo preconceito?”, pergunta a educadora. “Os racistas”, responde prontamente Késsya. “Não. A nossa cabeça. E para que os outros parem de ver a nós negros como diferentes, nós precisamos parar de nos ver como diferentes. Como piores ou melhores do que determinada raça”, diz Helô. Veja aqui a cena.