Você só precisa de você, um pouco de cor e um céu aberto, de preferência com vento, para colocar uma pipa, cafifa, pandorga, papagaio ou arraia em movimento. Dependendo da região do país, o brinquedo leva um nome diferente, mas a sensação de leveza e diversão é a mesma para quem é um pipeiro de coração. Essa arte tão comum entre as infâncias de ontem e de hoje já foi comparada a fazer poesia.
“A profissão é de poeta ou de empinador de papagaio. O que vem a dar no mesmo.” – Thiago de Mello
“Eu fico feliz porque ela voa, eu corro e me divirto”, declara Theo, 8, que mora em Santa Cruz do Sul (RS). Ele aprendeu a soltar pipa com o pai e os dois compartilham da experiência de fazer o próprio brinquedo. Assim, lado a lado, constroem juntos memórias para a vida toda.
“É muito mais gostoso e interessante se os pequenos construírem suas próprias pipas”, incentiva o professor José Carlos Antônio, autor de materiais didáticos. Para ele, “o ato de colocar a pipa nos céus envolve muito movimento, técnica e diversão, além de um pouquinho de matemática e física. É um instrumento de ensino valioso”, defende.
“Alguém que tenha aprendido a fazer pipas na infância ou em qualquer outro tempo, sabe que, para brincar e ser feliz, não há idade”
“É uma lembrança boa que eu tive e passo pro Theo, que agora me ajuda a fazer”, revela Glenio, pai do menino. “Aprendi a fazer pipa quando criança, com a gurizada. A gente fazia e ia soltando, ia experimentando e fazendo modelos diferentes, de um jeito e de outro.”
“Para manter a pipa no ar é preciso uma sintonia, um controle do movimento executado pelas mãos e pelos braços. Correr, olhar para o alto, manter a linha esticada, colorir o céu, compartilhar esses voos é uma conquista motora, social e pessoal”, explica Rosane Romanini, professora da pós-graduação em Especialização em Educação Infantil da Unisinos. “Para conseguir esse alcance, é preciso espaços abertos: ir para rua, para o campo, estar na natureza. Fazer comunhão com ela”, defende.
As cafifas do Rio, as pipas de São Paulo e as pandorgas no céu sulino
Em Niterói (RJ), os irmãos Gustavo, 10, e Guilherme, 9, chamam o brinquedo de cafifa. Para Gustavo, “é um momento para se distrair com os amigos”. Já Guilherme gosta mesmo é dos festivais.
No grupo de amigos do bairro Teixeira de Freitas, quem também compartilha da diversão é Jorge Lucas, 16. “Eu gosto muito de soltar cafifa com meus amigos. Quando eu solto cafifa eu me divirto bastante e saio dos meus problemas, entendeu? É quando eu estou na minha diversão. É como se fosse uma terapia pra mim”, declara.
Em São Paulo (SP), ver o céu cheio de pipas contagia Brayan, 14. “Soltar pipa é muito boa. Parece que você está em outro mundo. Quando eu solto pipa eu fico mais alegre. Quando tem mais pipa no alto, eu relo, daí eu grito [de alegria]”.
Já em Nova Palma (RS), Felipe, 7, participa do costume de empinar pandorgas na Sexta-feira Santa – as pipas são feitas dias antes e só voam durante o feriado. Em casa, com a ajuda do pai, confecciona o próprio brinquedo: “Eu faço a parte do rabo e o meu pai faz a parte da pipa. A minha sensação ao soltar pipa é que é legal e divertido”, conta o menino.
Como manter o vento a favor?
Se para muitos soltar pipa, assim como outras brincadeiras tradicionais, está perdendo espaço para a tecnologia ou por enfrentar os desafios da urbanização, em algumas regiões do país, há resistência de pessoas como Max Da Fonseca Cardoso, que acumula no currículo 486 participações em festivais de pipa e, há 26 anos, compartilha seus conhecimentos em oficinas de como fazer pipas, em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Sua relação com a pipa vem desde a infância: “Tem muito amor envolvido ao ver a pipa no ar. As crianças gostam, os pais se amarram e fica todo mundo encantado. É um visual muito bonito”, explica.
“Com duração de duas a quatro horas, normalmente, as oficinas são contratadas para eventos e aniversários. Lá, meninas e meninos confeccionam pipas com vareta de bambu, papel fino colorido e aprendem a enfeitar”, explica o professor. “A oficina de pipa é o resgate da tradição. É bacana você fazer o brinquedo, colocar a pipa no alto e ver que aquilo funcionou”, diz.
Sobre a concorrência que as ruas enfrentam diante da atração das telas, José Carlos Antônio defende que “brincar na rua não é só abandonar eletrônicos, é também ganhar movimento para o corpo e alimento para a alma, é vivenciar a socialização, é deixar fluir a imaginação, desenvolver diversas formas de raciocínio e, principalmente, a autonomia”.
A educadora Rosane Romanini corrobora esse posicionamento e lembra a relevância das políticas públicas que ativam o direito de brincar das crianças, trazendo o exemplo das Semanas Municipais do Brincar, que estão se tornando leis em vários municípios brasileiros. Segundo ela, alguns excessos – como a exposição a telas e o uso de mídias sociais – mudam significativamente as possibilidades de uma vida infantil saudável, no qual “o brincar de corpo presente e as interações entre as crianças são, muitas vezes, limitadas pela virtualidade”.
Embora a prática tenha reduzido com a urbanização e com a tecnologia, o costume de soltar pipa continua vivo, passando por gerações, criando memórias. Sempre haverá razões para soltar pipa, pois “quando uma pipa não sobe, é só mais um motivo para fazer outra“, sentencia o professor José Carlos Antônio.
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Atenção
Para que as pipas não se enrosquem na rede elétrica, a recomendação é procurar por locais livres de cabos de energia e nunca empinar uma pipa próximo às redes de distribuição. Para trazer mais segurança, a Lei 8562/19, no Rio de Janeiro, regulamenta os “pipódromos” como espaços públicos para a prática de soltar pipas, em caráter recreativo ou de festivais.
A venda e uso da linha com cerol (mistura feita com cola e vidro moído), linha chilena (feita a partir de cola e óxido de alumínio) ou quaisquer outro tipo de linha cortante são considerados crimes e proibidos por lei, pois podem causar acidentes, inclusive mortes. A melhor linha para soltar a pipa é feita de algodão. Veja mais cuidados no site da Fiocruz.