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Paternidades em ‘Pantanal’: entre desencontros e amores fraternos

Foto de quatro homens, personagens da novela "Pantanal", interpretados por Jesuíta Barbosa (Jove), Marcos Palmeira (José Leôncio), Irandhir Santos (José Lucas) e José Loreto (Tadeu), respectivamente

Mais do que uma simples novela, na segunda versão de “Pantanal”, o autor Benedito Ruy Barbosa criou uma mitologia própria para contar histórias de família e, sobretudo, falar da visceralidade do amor. O formato, folhetinesco, pode ofuscar a beleza e a imponência de seu conteúdo. 

Em “Pantanal”, nenhum amor é somente romântico; ele tem vernizes que flertam com as mais variadas sombras humanas. Só isso já deixa a história mais complexa, convidando o espectador a leituras menos óbvias. O amor de um violeiro pode ser impossibilitado por um pacto diabólico, o amor de uma vida inteira do casal protagonista convive com a ilegitimidade de concubinatos patriarcais, o amor da mãe ferida por perdas em série faz dela uma onça que pode matar para proteger sua cria. O amor de Juma é selvagem, urgente como a libido, em que as águas testemunham a explosão do desejo flamejante que vem com o primeiro amor. O amor que dá eixo para toda a narrativa, o amor entre pai e filho, é o tempo todo contado como desencontro, como falha e ausência sofrida. 

O amor entre pais e filhos em “Pantanal” tem a marca da quase impossibilidade de se laçar um boi marruá no meio das matas sem fim.

O amor paterno-filial entre Joventino (o grande patriarca) e José Leôncio começa como mandato: o filho que vê como único destino seguir o caminho do pai, um peão experiente que decide fazer vida no Pantanal. Um dia, este pai desaparece do nada, deixando o filho em desespero, em um luto eterno e sem corpo, suspenso pela possibilidade da vida existir e resistir. 

Neste luto interminável e angustiante, José Leôncio passa a existir como um filho órfão, cuja ferida de abandono o impede de transformar-se em pai como poderia ser; parte de seu amor está irremediavelmente ligado à busca pelo pai perdido. Suas três trajetórias paternas são errantes e erráticas: Jove é um filho que a mãe levou de volta ao Rio de Janeiro, mas que ele nunca lutou para recuperar; José Lucas é um filho desconhecido fruto de sua primeira relação sexual com uma prostituta, e que chega repentinamente à fazenda, três décadas depois; Tadeu, a relação mais problemática, é a presença mais ausente deste pai que não o assume como tal.

Joventino, o pai de José Leôncio, desaparecido misteriosamente, se transformou no Velho do Rio, uma entidade mítica e protetora de tudo o que é vivo naquele lugar. Ele se transforma numa sucuri, a cobra que abraça até a morte – outra metáfora interessante, já que, entre todos estes personagens, é dos abraços paternos que mais se sente falta. O Velho do Rio é um pai que abre mão do contato com o filho para abraçar sua missão espiritual de cuidador do bioma. Por isso, Benedito Rui Barbosa criou uma mitologia própria nesta novela: o repetitivo dilema que nossa cultura traz entre o trabalho do homem e o exercício de sua paternidade afetiva e efetiva. 

Os pais de “Pantanal” amam demais, mas não conseguem estar perto o suficiente, até que os filhos gritem e clamem por sua presença.

Jove consegue reatar o vínculo perdido com o pai ao longo de sua história, não sem antes viver dilemas homéricos entre o que o pai projetava sobre ele e quem ele pode vir a ser de fato. José Lucas, como o que chegou por último e que nem esperava um dia chamar alguém de pai, se sentiu cada vez mais independente e dono do próprio destino. Tadeu, até o último capítulo, vai recolhendo as migalhas de afeto do pai, dia após dia.

Velho do Rio, o grande pai de ‘Pantanal’

Enquanto tudo se desenrola, o Velho do Rio se mantém como o grande pai da família Marruá, cuidando da órfã Juma como a voz da verdade que ela escuta como um mantra divino. O Velho do Rio é o personagem mais formidável desta história, porque traz no rosto a marca da responsabilidade e da solidão de quem se sente diante de uma grande missão espiritual. 

A interpretação de Osmar Prado eternizou este Velho, trazendo o lirismo para se ajoelhar nas águas diante do seu cajado e de seus olhos úmidos. Osmar e seu Velho do Rio passam a ser memória que faz poesia, ao dar corpo a esta entidade que a natureza chama de guardião.

A beleza poética do Velho do Rio é o chamamento para que filhos e pais se reconvoquem, se unam apesar das emoções represadas.

Ele vai costurando os amores do Pantanal enquanto as pessoas vão se havendo com suas cicatrizes teimando em se transformar em abraço. Como um menestrel, ele vai se reaproximando da própria ferida, enquanto apoia quem sente o desamparo. O Velho do Rio é a imagem de que, mesmo diante de nossas falhas mais graves, estamos sempre na véspera de um recomeço. A dor da culpa, da tristeza e do medo podem ser dissolvidas a partir da verdade do encontro humano. 

‘Pantanal’ é inesquecível: mostra o quanto ainda somos pais falhos, ambivalentes e ausentes. Mas que, sobretudo, há uma força amorosa que pode ser sempre maior que as fissuras.

Como as águas de um rio, o destino do amor entre pais e filhos é mesmo a foz que encontra o doce e o salgado, o desatino e a sabedoria, o concreto e o misterioso. Porque o amor é mesmo o grande solvente universal de qualquer dor que possamos viver na intimidade das relações mais sagradas.

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